Feliz ano novo pra todo mundo aê. Gostaria de estar um pouco mais feliz nesse começo de ano, mas janeiro é uma desgraça que só para os meus queridos conterrâneos. Em ano ímpar, tragédia no interior; em ano par, tragédia em Angra. Sacanagem não, essa época é uma tristeza que só. Mas aí, meu trabalho aqui é falar de livros e tentar dar um pouco mais de leveza pra vida, afinal, dar umas risadas também é importante. E hoje, pra recomeçar os trabalhos no Livrada!, vamos falar do livro mais triste já escrito na história da humanidade. E vamos dar risada com ele.
Trata-se de A Morte de Ivan Ilitch, do Tolstói. Escrevi o primeiro nome no título, como está no livro, mas pode chamá-lo de León, Liev, Leôncio, Laurício, Lugano ou Lombardi, afinal, tradução do russo não é uma ciência exata. Tolstói, pra quem não sabe, é o camarada que escreveu aquele calhamaço gigantesco chamado Guerra e Paz que, não, não é uma minissérie da Rede Globo. Se liga, mané. Também escreveu o Anna Kariênina, uma espécie de novela das seis de quando não tinha televisão ainda, mas tem as mesmas roupas de época, a mesma mulherada fofoqueira e traíra, e também demora mais ou menos dois meses pra você saber o desfecho. Mas isso aí é outro papo, outro tipo de livro, outra vibe, outra pegada. Deixemos esses para os intelectualóides que precisam cumprir tabela. Vamos falar de um livro que é realmente legal, um livro batráqui, um livro rélpis, um livro estrogonoficamente sensível.
A morte de Ivan Ilitch é considerado pela crítica um dos livros mais perfeitos já escritos e, embora eu não goste de ir na onda da maioria, tenho que dar o braço a torcer e concordar. E muito da sua perfeição, eu diria, vem do fato dele ser pequenininho. Um livro peso-pena, mas que tem um cruzado de direita que vai garantir um Natal gordo pro seu dentista. Vejamos a história, então.
O livro começa com a notícia do funeral do Ivan Ilitch entre seus amigos, e todos eles já começam a calcular o que isso significa para suas vidas pessoais e profissionais. Isso é a maior arapuca do autor que, como o Coiote do Papa-Léguas, tá colocando um pouco de alpiste debaixo de uma bigorna pra você curtir. Você pensa então “rá, que cara sarcástico, banalizando a morte do cara, aposto que ele era um banana de quem nem os amigos gostavam muito”. Aí que tá o golpe, maluco. Aí que você vê que, como já dizia o Mia Couto, a verdade é como o ninho de cobra, que a gente reconhece não pelos ovos, mas pela mordida. A narrativa deixa o velório e retrocede num rewind frenético até o começo da vida de Ivan Ilitch. E conta como ele nasceu, cresceu e se formou, casou e teve filhos. E vê que ele teve uma vida prosaica, normal e monótona, casou com a mulher por interesse, e tudo mais, e pensa: “Alá, sabia que era um banana, ninguém vai sentir falta desse cara”. Nesse ponto o Tolstói tá cortando a corda da bigorna que vai cair em você que tá comendo o alpiste da apatia.
Um belo dia, o mané Ivan resolve subir uma escada pra, sei lá, pendurar uma cortina, sofre uma queda e se machuca um pouco. Começa a sentir umas dores, freqüenta uns médicos, e ninguém consegue dizer o que ele tem. Convenhamos que ser médico naquela época era moleza, vai. Não tinha que passar no vestibular, não tinha que fazer residência e tinha cinquenta vezes menos matéria pra estudar, porque, se você é que nem meu avô que acha que médico não sabe de nada, imagina só no século XIX quando realmente não tinha quase nada pra estudar. Chegava-se lá, receitava uma infusão, um emplastro, uma injeção, e se o paciente morresse, você ainda assim tava prestigiado e voltava pra casa com porcos e galinhas. Pois bem, o sujeito vai ficando mais podre que compostagem e aí ele se dá conta de que vai morrer. Ele fica tão abalado, mas tão abalado que, olha, parabéns se você não ficou com dó dele. A tristeza contamina todo mundo da família, e isso só piora, porque ele vê que ele é o causador de toda infelicidade da esposa e dos filhos. Eles resolvem deixar ele de molho no quarto e escondê-lo das visitas, pra terminar de arregaçar tudo com solidão e isolamento social. Ele não consegue pensar em outra coisa a não ser na morte: como tudo é tão triste agora que ele sabe que vai morrer, como ele gostaria de viver mais e não pode, enfim, toda a tristeza do ser humano que já não se vê mais como vivente. Passa o resto dos seus dias com a companhia do filho e de um criado que são um pouco mais sinceros do que ele, até que ele finalmente morre, como o início do livro já havia dito. E, fechando a última página, se você não estiver se debulhando em lágrimas, vai ao menos pensar que foi no mínimo injusto com ele desde o início ao não sentir sua morte como ele próprio sentiu. E o Coiote Tolstói fez mais uma vítima.
Parabéns pra você que não sentir um aperto no peito lendo esse livro, é um forte sem coração, no mínimo. Claro que eu devo ter tirado metade da graça do livro com essa explanação tosca e cheia de spoilers, mas hey, esse não é o papel da crítica? Ah, não? Ih, fiz cagada então, desculpaí. Bora falar do projeto gráfico do livro então. A morte de Ivan Ilitch faz parte da Coleção Leste da editora 34, coordenada pelo Nelson Ascher, que é o cara e ninguém precisa ficar dizendo isso. A tradução é do Boris Schnaidermann, que já fez uma ou outra tradução em parceria com o Ascher, se não me engano, e a imagem da capa é do Evandro Carlos Jardim, um desses desenhos que os caras falam “até meu filho faz isso”. Dependendo da quantidade de músculos do pai, não vamos tirar a razão dele, né? Que mais? Tem posfácio do tradutor e apêndice do Paulo Ronái, um intelectual já defunto que manjava muito desses bichos de literatura clássica. No mais, papel pólen Bold e fonte Sabon. Tamos conversados? De volta ao blog então, vamo que vamo.
Ah, vou colocar uma enquete ali do lado, se conseguir. Respondam, vai ser maneiro!
Comentário final: 92 páginas em papel pólen bold. Mais fácil machucar alguém dando esse livro pra ela ler do que dando uma porrada na cabeça com ele.
Aee, o Livrada está de volta! Estava com saudade.
Que bom que gostou do livro, fico feliz!
Beijos!
Adorei o livro e adorei que o seu foi o primeiro comentário da postagem de 2011, ê!
Beijo!
opa! Que o ano seja muito promissor aqui! Muitas leituras e inspiração! Este é um livro que está na minha lista, tenho vontade de ler Guerra e paz, mas confesso uma certa preguiça e Ana Karênina eu até tenho, mas o desleixo é o mesmo. rs
Abs
Valeu Raphael! Olha, a opinião geral é que esses calhamaços fazem uma vista boa na estante, e Guerra e Paz parece ser uma saga muito fiel à época, mas tirando isso, a vida está cheia de livros mais legais, acho eu. 🙂
Abraço!
Boa volta, Yuri.
Esse livro é fantástico. Não vou ficar fazendo análise aqui, porque esse é o seu trabalho, mas vou dar uma interpretação que pode não ser bem aceita, mas é minha. O tal personagem do livro é a anunciação da consciência ocidental moderna. Passa a vida em um cronograma, não é uma vida de verdade, e quando uma coisa estúpida, como uma queda, faz com que ele adoeça, acaba em uma agonía, e grita, como você deve lembrar. Quero crer que os gritos e gemidos dele são muito mais a dor da angústia de não ter vivido, mas ter cumprido com um ato contínuo estúpido, do que propriamente o avançar da morte. O senhor russo é um homem sério que entendia do espírito humano. Vale muito a leitura.
Abraço.
Oi Lucas, andava sumido por aqui! Feliz ano novo pra você.
Acho boa a sua leitura mais subtextual do livro, se bem que essa análise sobre a vida do personagem na ótica do próprio personagem há de ser um pouco anacrônica, afinal, que sabe um mala desses sobre a vida de verdade e a falta dela, lato sensu?
Acho que esse livro foi escrito pelo Tolstói pra ele poder racionalizar sobre o medo da morte que ele tinha (e ele se cagava de medo!), e, quem sabe assim, superá-la um pouco. Isso diz muito sobre a nossa percepção da morte: se um sujeito letrado e catilogente como o Tolstói, primor de inteligência e de pensamentos avançados, transporta seus medos para a ficção e o resultado é um morimbundo que grita por três dias antes de morrer, que se espera de nós, reles mortais?
Quanto ao fato da vida ser um cronograma a ser cumprido, bom, isso é um pouco difícil de se escapar hoje em dia, imagino que àquela época devia ser muito mais. Então só mesmo pirando de vez igual ao Tolstói e fugindo de casa pra morrer de frio no fim da velhice pra fugir do cronograma. Ou fazer como o Alexander Supertramp, do Na Natureza Selvagem. De um jeito ou de outro, uma coisa é certa: você vai acabar morrendo de frio em algum cu de mundo. 🙂
Abraço!
um dos melhores livros que ja li… ..mas na ocasião me chamou a atençao a qualidade da traduçao da ediçao da lpm, vera karam foi a tradutora. Sou meio chato com traduçoes ,que sempre me parecem tirar a fluides dos livros, sobretudo dos russos, a que atribuo minha dificuldade em levar adiante a leitura de muitos classicos. Mas enfim, fica o registro dessa ediçao alternativa e meu apoio àqueles q julgam esse livro como um marco.
Abraço e parabéns pelo blog
Valeu pela dica, Wande. apareça sempre!
Abraço!
“tradução do russo não é uma ciência exata”
hahahahahaha
Li esse livrinho na edição de bolso da L&PM (com uma capa mais bonita) lá diz que a tradução é premiada, só não sei que prêmio foi esse… tipo um livro chamado Branco Neve, Vermelho Rússia. Escrito por uma escritora Polonesa Premiada… fui procurar saber que premio era esse e vi que só existiam 8 escritores na Polônia e que todos ganharam os mesmo prêmio ao passar dos anos, tipo dança da cadeira =p
Acho ótimo um prêmio que dá valibrinde pra todo mundo, afinal de contas, todo mundo tem o direito de ser feliz! Agora, oito escritores na polônia é sacanagem ahahahah
É, ao que parece, a tradução da LPM vale então, beleza. Fica a dica então pra quem quiser economizar, valeu!
Abraço!
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