Sabe, pode não parecer, mas eu presto atenção no que vocês comentam aqui no blog. Trato de responder a todos os comentários (às vezes me atraso, mas entendam que fazer crítica literária de graça, duas vezes por semana, no seu tempo livre não é, exatamente, jogar caxeta com a sua avó, por isso me mandem dinheiro) e procuro responder na altura de relevância e interesse. Por isso, o post de hoje foi feito em homenagem a um leitor aqui do Livrada! que comentou apenas em um livro. O Sr. Augusto Lessa passou por aqui no pior post que eu fiz, que foi sobre a Marca Humana, do Philip Roth (nem vou botar o link porque é indigno, quem quiser que leia depois, mas não recomendo), na época em que eu escrevia um post por dia. Ai ai, o viço da juventude… Enfim, nos comentários ele pediu para que eu resenhasse o livro Ruído Branco, do Don DeLillo, que é um autor que até então eu nunca tinha lido, mas cujo estilo e gênero casavam com a linha editorial deste blog (viu, Baére, não adianta pedir pra eu ficar resenhando livro de programação de computador), então resolvi ir atrás, certo que o leitor estava de que eu, baseado no que tinha visto resenhado por aqui, iria gostar do livro.
Pois bem, ganhei o livro de natal da querida Tia Alba, excelente veterinária e contadora de piadas, e li em, basicamente, dois dias, graças a uma viagem de desnecessárias cinco horas para Floripa. E bem, vamos dizer que o Sr. Lessa estava com a razão, porque eu não só gostei do livro como o coloco fácil no top 10 da literatura contemporânea até então, embora eu odeie essa para de top não sei das quantas. Lembro daquele filme Alta Fidelidade e tenho vontade passar uma lixadeira na cara do animal que escreveu esse lixo. Enfim, quis dizer que é um dos melhores que eu já li nesse estilo de literatura anglófona contemporânea pós-moderna da Silva Sauro. Falemos dele então, já que já enrolei por dois longos parágrafos.
Ruído Branco é um livro que foi escrito em 1984, época em que eu não existia, mas imagino que deva ser uma excelente época para ser criança. Fui criança na outra metade da década, por isso imagino isso da primeira metade. Bom, o livro fala de um professor chamado Jack Gladney, e já imagino o bigode escroto, o blazer marrom cocô e os óculos de grau da Ray-ban, que inventou uma matéria na faculdade chamada Hitlerologia. Ele tem uma esposa, que já é a sua segunda ou terceira esposa, chamada Babette, que dá aulas de modos à mesa ou algo do tipo, pra velhinhos. Pausa. Nessas aí você já vê a genialidade do autor. Que ocupação foi achar pra esses vatos! Bom, tentando contextualizar mais, Jack tem uma penca de filhos, tudo pingado de seus outros casamentos, e tem um amigo acadêmico chamado Murray que, aqui, funciona como uma espécie de deus ex machina, discutindo suas teorias com o protagonista enquanto, com elas, amarra as questões principais do livro. Quer dizer, o sujeito tem uma ideia mega oportunista e faz um sucesso com isso, tem uma família mais quebrada do que decaimento alfa de Ununóctio e tem como principal amigo um colega de trabalho. É visionário ou não é? É século XXI ou não é?
A primeira parte de Ruído Branco é totalmente surreal, e você acha que não dá pra ficar mais doidchão, mas fica. Começa simples: vai ter um simpósio sobre nazismo ou algo que o valha e Jack é o grande nome para o evento, já que foi o cara que inventou a hitlerologia. Só que ele não sabe falar alemão e isso, por mais que não impeça o estudo da matéria, pode ser visto com maus olhos por seus pares almofadinhas. Então corre atrás de um professor particular. É, portanto, uma tiração de onda com os malditos academiscistas que chegam na sala pra te dar uma aula de filosofia e começam a escrever ὑποκείμενον no quadro-negro (não vou citar nomes, você sabe quem é, manezão). Boa sátira, ponto pro DeLillo.
Eis que um vagão de trem vira a uma distância considerável da cidadezinha onde Jack mora, e libera um gás tóxico que exige que a cidade seja evacuada. Nisso, vai geral naquela loucura, sem saber direito do que estão fugindo, e o filho do meio de Jack, cujo nome já me esqueci, é quem consegue reunir as informações sobre o evento, e passar para as pessoas, virando um verdadeiro herói entre os bitolados. Essa parte mostra duas coisas: a primeira, o poder da informação e, principalmente, da falta dela, sobre as massas, e a segunda, mais importante, a confrontação de Jack com a sua mortalidade. Não falei isso, mas o bicho tem muito medo da morte, embora não conte pra ninguém. E aí ele é exposto à fumaça tóxica, e fica sem saber se isso vai afetar sua saúde, se ele vai morrer, etecetera.
Sobre a terceira parte do livro não vou contar nada, porque é a mais legal e já entreguei spoiler demais. Mas tudo isso pra dizer o seguinte: DeLillo foi genial nesse livro, e enquanto abordava as questões que pretendia com a vida dos Gladneys, discute elas mais livremente com as teses de Murray. As discussões entre os professores na universidade são partes memoráveis do livro, e até anotei uma, de alguém que não lembro: “queremos catástrofes, precisamos delas. Dependemos delas, desde que não aconteçam no lugar onde estamos. É aí que entra a Califórnia. Avalanches de lama, incêndios florestais, erosão na costa, terremotos, assassinatos em massa. Esses consegue curtir esses desastres sem problemas porque no fundo a gente acha que a Califórnia merece isso tudo. Os californianos inventaram o conceito de estilo de vida. Só isso já justifica”. GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOL! Já falei disso antes, mas às vezes sinto vontade de levantar e gritar como se grita um gol ante algumas passagens geniais que não poderiam estar em melhor lugar e situação. O pensamento aqui pode ser óbvio, mas é tão bem casado com o contexto que torna tudo genial. Outra: “É aquilo que perdoamos no leito de morte, não a falta de amor nem a ganância: perdoamos nos outros a sua capacidade de se distanciar de nós, tramar silenciosamente contra nós, de certo modo matar-nos”. Foi, foi, foi, foi ele! Carimba, Godói! (tadinho do Godói, galera). Vale lembrar que o livro ganhou o American Book Award de melhor romance, em 1985, como diz na capa. Enfim, se eu ainda não deixei vocês com vontade de ler DeLillo, sou um incompetente mesmo.
E esse projeto gráfico da Companhia das Letras? Gente, esse livro é velho. A editora lançou ele em 1987, e edição que eu tenho é de 2003. Ou seja, ficou sete anos mofando em alguma loja — mofando não!, amadurecendo e encorpando — até que a Tia Alba me desse esse presentão. Bom, a capa é totalmente anos 80, com o título escrito em bolinhas à lá Lichtenstein (o picareta, não o país que nem parece país) e diversas outras partículas brancas (no caso da minha edição, cinzas já pelo desgaste) em alto-relevo. A fonte é Garamond em corpo minúsculo, o que dá um desânimo, mas a gente encara se for coisa boa. Papél pólen é de praxe. A tradução é do Paulo Henriques Britto e eu li esse livro num período que tava lendo uma tradução do Britto atrás da outra. Gente, o cara é frenético! Bom, se o virem na rua, tratem de o abraçar bastante, que ele merece. Sr. Lessa, taí então, segui sua recomendação. Obrigado.
Ps: Gente, a vida tá difícil. Não sei se vai ter post na quarta. Se não tiver, me perdoem, ok?
Comentário final: 319 páginas em papel pólen. Pa-panamericano!