Vídeo: dois livros de Ivan Búnin

Ivan Bunin (1870-1953) talvez seja um russo que você não conheça e nunca tenha ouvido falar, apesar de ter ganhado o Nobel de literatura de 1933. Mas tudo bem, não tem motivo pra se envergonhar disso, até porque ninguém é obrigado a nada. Nesse vídeo te conto um pouco sobre ele e sobre minhas impressões a respeito de dois livros seus, lançados pela Editora 34 e pela Amarilys.

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bunin

Vídeo: Milan Kundera – A Festa da Insignificância (La Fête de L’insignifiance)

Você ainda gosta de ver vlogs? Espero que sim, porque o nosso está apenas começando e ó, tá ficando legal. Nesse, comentamos o best-seller tcheco Milan Kundera e colocamos alguns pontos simples de entender em um livro meio complicado de sacar. Mas, como dizem pra todo mundo que já fez uma cagada nessa vida, o que vale é a intenção.

Já falei pra se inscrever no canal? Vou falar de novo, porque precisa. Me ajudem a ficar rico, gente.

Já falei que isso é só uma imagem? Você tá tentando apertar o play até agora e achando que o que tá abrindo na outra aba é pop-up desgraçado. E tá errado.

livrada

Milan Kundera – A Brincadeira (Zert)

zertEstavam com saudades? Puxa vida, hein, não dá pra ficar nem mais uma semana fora que esse povo me cobra! Brincadeira, seus queridos, vocês são até muito compreensivos, dado o fato de que não escrevi na semana passada porque fiquei jogando Skyrim. Bom, eu pago minhas contas e, por outro lado, não tem ninguém pagando pra eu fazer esse trabalho periódico de leitura e resenha, leitura e resenha, leitura e resenha, de maneira que não nutro maiores ilusões de que não posso desapontar os fãs. Mas a verdade também é que dei uma desacelerada boa no ritmo das minhas leituras esse ano, e já está ficando difícil ler um por semana para resenhar por aqui, especialmente porque preciso e quero ler uns calhamaços que sejam dignos de nota e… ah, mas vocês não vieram aqui pra ficar lendo minhas lamúrias de leitor preguiçoso e gamer proativo, então vamos ao livro de hoje.

Zert! Zert, ou A Brincadeira, esse que é o primeiro romance do tcheco Milan Kundera. Aquele da Insustentável Leveza do Ser e de A Ignorância, já resenhado por aqui. Vou dizer uma coisa sobre o Milan Kundera desde já, e que serve tanto para quem o leu quanto para quem nunca o leu: Milan Kundera é um excelente narrador e contador de histórias, mas quando ele quer mostrar que é inteligente ou quer pagar de putanheiro, sai de baixo. Ô bichinho chato. Sinceramente, não entendo porque ele faz isso, ele e um cara legal e não precisa ficar se exibindo desse jeito – mesmo porque acho que ninguém vai ler o cara por causa de sua falsa erudição. Por outro lado, talvez esteja aí o segredo do sucesso que o rapazote de 91 anos faz com a juventude. Ora, quem nunca leu A Insustentável Leveza do Ser com seus 15, 17 anos e se achou muito esperto por ler aqueles ensaios sobre a alma feminina e a união soviética? O problema é que o sujeito para de fazer a sua cabeça quando você faz a curva dos vinte e tantos (se não houve nenhum obstáculo no seu crescimento sadio), e foi por isso também que peguei esse livro para ler. Queria ver o que havia na literatura desse cara que me abalasse.

E a resposta é: pouca coisa. Mas a parte que me toca, que é a da diversão de se ler um livro gostoso, acessível e minimamente inteligente, compensa. Antes de falar do livro conteúdo, porém, um adendo sobre o livro forma: Essa capa que vocês estão vendo aí é de uma edição da Companhia das Letras que já pode ser considerada mais ou menos rara. Especificamente, essa imagem é a minha edição escaneada, porque eu mesmo não achei uma imagem boa para publicar aqui no Sr. Google imagens. Acontece que a editora tinha feito uma coleção caprichadinha com xilogravuras e outros rabiscos do Segall na capa, mas como só adolescente lê o Kundera e adolescente, no geral, é um bicho muito duro, praticamente todo o acervo do autor foi transferido para o selo de bolso. Não sou muito dado aos fetiches de colecionador, mas depois que eu compro três livros formatados na mesma edição, eu quero ter os outros da mesma forma. De maneira que, se alguém tiver Risíveis Amores ou A Identidade nessa edição, por favor entre em contato para fazermos negócio. Pois bem.

A brincadeiraO livro tem vários personagens principais, mas podemos restringi-los a três: Ludvik, um rapazote entusiasta do partido comunista que um dia, só de brincadeira, manda uma frase trotkista via cartão postal pra uma namoradinha e cai em desgraça eterna por causa disso; Helena, uma moçoila que recebe o pior dos castigos psicológicos vindo do mundo masculinizado e canastrão da literatura do Kundera; e Jaroslav, o último dos folcloristas morávios, que tenta com todas as forças resgatar as tradições ainda que nem todo mundo esteja na mesma pira. Nossa, esse resumo saiu muito mais conciso do que eu tinha imaginado. E resume bem até!

A coisa acontece mais ou menos assim: Ludvik é escrachado nas reuniões de crítica e autocrítica do partido, uma parada muito comum na época que servia pra todo mundo vigiar todo mundo e manter a humildade ao mesmo tempo. O principal carrasco de sua queda é um cara chamado Pavel Zamanek, que vem a ser o marido de Helena. Ludvik vai trabalhar numa mina de carvão junto com outros traidores do movimento e se envolve com uma menininha chamada Lucie, que o atormenta a vida toda por regular a mixaria pro rapaz sedento de sangue nozóio. Depois de muito tempo, quando Ludvik deixa a mina e se torna um carinha amargo, ele resolve tramar a vingança de sua vida, que é: tchanam: comer a mulher do seu carrasco. Sério, cara, é esse seu plano? Daí você entende porque os adolescentes gostam dele, olha que parada mais Malhação! Que revoltinha do pipoqueiro, hein, amigo. Só vivendo num mundinho de muita putaria sexista isso é considerado uma vingança. Mas tudo bem, prosseguimos. Jaroslav, enquanto isso, é um cara considerado por todos por resgatar a cultura Moravia, que é uma cultura da região de Ostrava da República Checa, onde o livro se passa. Ele faz umas procissões, toca música folclórica e nos enche o saco com mais de um capítulo explicando (com partituras até) porque a música morávia de raiz é complicada e única nesse mundo de meu Deus. Isso é legal se você é musicólogo, tá lendo Kundera e opa! Aparece uma referência rasa sobre um tipo de música a que você nunca deu muita atenção. Mas tirando isso, sério, pra quê? Pra mostrar que você manja das putarias? Você deve ser muito divertido em festas, hein, cara? Só que aí, em sua última brincadeira (outra brincadeira), ele vê que é tão sozinho quanto o rei sozinho do seu pequeno ato dramático.

E que podemos mais dizer sobre esse livro? Bom, ele é, primeiro, uma cutucada no comunismo, uma tara que qualquer leste-europeu tem vez ou outra nessa vida. A coisa do partido que se leva a sério demais e que se empenha mais em castigar seus adeptos do que discutir as ideias que podem levar a coisa pra frente, a linha tênue que o regime guarda com um tipo mundano de religiosidade, essas coisas, você sabe. Isso não é novo, só que ele também fez. Depois, é um livro em que o Kundera desfia – não com tanta maestria como na Insustentável Leveza do Ser – o seu medo de ser corno. A traição está em seus livros como a maior de todas as desgraças, e ele fala um pouco mais sobre ela aqui justapondo-a com outro de seus medos: o de parecer um liso que não come ninguém. Por isso, ele mostra, encarnando no personagem do Ludvik (sempre tem um personagem que é ele mesmo), que manja do que a mulherada quer, e sempre que pode solta algo do tipo “então, teve uma vez que comi uma mina assim, teve outra vez que veio uma cocota e aí… pãnz”, etc. Sinceramente, amigo, já passei da idade de achar isso uma parada legal. E, por último, é uma história bem contada sobre vidas na Chéquia, e isso é o que vale pra mim. Vocês podem gostar do que vocês quiserem no livro, mas pra mim, é só um livro bom que se esforça pra ser um livro ótimo e que não consegue e fica elas por elas. Finito.

Comentário final: 352 páginas em papel pólen. Machuca osso, cartilagem, ideologia política e faz uma boa sequela para o século vindouro.

 

Lev Tolstói – A Sonata a Kreutzer (Крейцерова соната)

Крейцерова сонатаTolstói, galera! Esse russo maluco não deixa pedra sobre pedra quando resolve falar sobre as coisas que incomodam seu coraçãozinho. Mais especialmente, sobre suas ideias sobre casamento. O doido já havia escrito Anna Kariênina quando publicou esse tresloucado e surpreendentemente convicente A Sonata a Kreutzer que não, não é um livro sobre a pungente obra de Beethoven, outro malucão a seu modo, e igualmente brilhante. E só pra avisar os desavisados, esse aqui tem spoiler, e se você acha que isso é um impeditivo pra você, sai do meu blog e vai ler policial do Jô Soares, seu mané.

Falemos um pouco de Tolstói. Vejamos… Tolstói era como um Lobão russo, guardadas as devidas proporções. Ele era muito popular já em sua época, e tudo o que ele falava valia ouro, mas aí ele começou a pirar na batatinha e lá pelo fim da vida dele, só tinha ideia maluca que ninguém levava a sério, embora nunca deixassem de tê-lo na mais alta conta. Não, acho que ele não era bem um Lobão russo, ninguém nunca levou o Lobão muito a sério e ele nunca foi muito popular… Digamos, um Mario Vargas Llosa russo. Pronto, agora preciso ficar importando analogia do Peru… francamente. Esse, meus senhores, é o país que vai receber uma Copa do Mundo. Vão vendo.

Enfim, aqui nesse livro Tolstói expôs sua real ideia sobre o matrimônio. Diz ele, basicamente, que não há como manter um casamento por tanto tempo. É uma ideia arcaica, inventada por gente que não queria saber de dividir riquezas em tempos extremamente monótonos. A única forma de ser casado pro resto da vida é ou ser infiel, ou ser abstêmio ou matar a esposa. Ele coloca essa ideia por meio da história de Pozdnyshev, um sujeito intrometido que entreouve uma conversa e começa um monólogo que basicamente é o livro inteiro. Ele conta então como escapou da condenação pelo assassinato da própria esposa.

Ele conta como tudo começou muito bem entre eles até começarem as briguinhas de casal. Uma parada insignificante e o outro já está gritando, e cada palavra dita é mal-interpretada, pervertida em seu significado e jogada contra quem a proferiu – algo que todo mundo que já namorou uma pessoa maluca pode entender –, aquela paz de espírito que nunca chega e, se chega, dura só um pouquinho e vai embora, etc. Vida dura.

Liev TolstoiNo meio disso tudo, surge um violinista. O sujeito é suave e ligeiro, e chega de conversinha pedindo umas coisas para nosso protagonista, mas trava nas quatro quando vê a esposa. Aí surge um pretexto de tocarem juntos, já que ela toca piano também, e o resto dá pra imaginar. O Pozdnyshev até aproxima os dois só pra ver a reação da mulher, que dubiamente rechaça o violinista, não se sabe se por cinismo ou verdadeiramente. Mas ela vai se aproximando dele, com aquela cara de “mas não é minha culpa!”, e o marido vai se roendo de ódio. Até que inventam de se apresentarem juntos, e agora o cara descobre que o potencial Ricardão agora está visitando sua esposa quando ele não está em casa. A peça escolhida é justamente a Sonata a Kreutzer. Agora, sobre isso, é importante dizer duas coisas. A- Tolstói era um cara que levava a música muito a sério, do tipo que chorava todas as vezes que escutava uma música triste, e se irritava quando não entendia que tipo de sentimento a música em questão queria lhe transmitir. B- Tolstói odiava Beethoven, como odiava qualquer compositor clássico, mas talvez um pouco mais. Ele achava que a verdadeira música vinha do povo – os funks e arrochas eslavos, por assim dizer – e que esse povo metido a besta que faz música clássica quer mesmo é ficar mostrando virtuosismo e ganhar dinheiro com uma arte belíssima e pura. Junte A + B e você consegue imaginar o furacão de sentimentos para o qual um personagem tolstoiano é arremessado ao ouvir a Sonata a Kreutzer, um petardo das sonatas para piano e violino, quem já ouviu sabe. O primeiro movimento, em especial, tem uma grandiloquência que não combina com nenhum evento menor como o proposto pelo romance. Já não lembro qual era, acho que era o equivalente ao nosso churrascão de domingo. Imagine tocar Beethoven no churrascão de domingo, uma situação em que até um Caetano Veloso já soa demais. Isso tudo deu para o personagem a ideia de que a potência da música dizia respeito não ao evento, mas à relação velada desses dois. Pronto, agora os momentos finais eu deixo para o leitor se deleitar, porque eu mando spoiler na testa dos recalcados, mas também não fico entregando as paradas desnecessariamente. Viu como eu sou bonzinho.

Muito engraçado a forma como os críticos do livro – o tradutor, o grande Boris Schaiderman (somos todos gratos pelo seu trabalho, ó grande Boris) e o maluquete que fez a orelha – se empenham para falar que as ideias de Tolstoi sobre o casamento são todas furadas e que não dá pra levar a sério uma porcaria dessas. Mas a verdade é que Tolstói é muito convicente em sua argumentação, e suas ideias, longe de serem tresloucadas, são frutos de uma conexão íntima do homem moderno com seu passado evolutivo. O homem que se questiona onde o motor da história falhou e deu origem a esse projeto utópico de civilização, com sentimentos e valores maiores do que a própria humanidade em si, falha e abjeta como só ela. Coisas como o amor, a devoção matrimonial, todo esse pacote de cultura deísta que a prática já mostrou ser furada completa para 99% das pessoas, e agora o sujeito precisa conviver com isso, pois questionar esses valores, como Tolstói fez, é perigosíssimo, um atentado capaz de ruir a sociedade por dentro. Afinal, quase todo mundo sabe que ela se escora apenas em seus próprios dogmas. Aliás, dogma é uma parada que foi inventada para sustentar paradas insustentáveis, não acham? Se acharem, por favor, façam uma imagem com a minha foto e essa frase circularem no Facebook. “Dogma é uma parada que foi inventada para sustentar paradas insustentáveis” – Livrada! Conto com vocês.

Mas eu acho que a razão pela qual o livro é tão rechaçado é sua suposta misoginia. Tolstói esculacha a mulherada nesse livro com frases do tipo: “As mulheres procedem exatamente como os judeus, que se vingam por seu poderio financeiro da opressão que lhes é infligida”. BOOM! Ou: “”Assim como aquelas (as prostitutas) aplicam todos os seus recursos para atrair os homens, fazem estas também. Nenhuma diferença. Numa distinção rigorosa, deve-se apenas dizer que as prostitutas a curto prazo são geralmente desprezadas, e as mulheres a prazo longo, respeitadasBOOM BOOM BOOM BOOM. E nessa toada ele aproveita para, paradoxalmente, meter o pau no sexo, o verdadeiro motivo da ruína de nossa civilização, segundo ele. Claro, ninguém em sã consciência falaria mal do sexo ou das mulheres, mas é aí que está. Tolstói está se referindo ao sexo e às mulheres tal qual são apresentadas na sociedade. A primeira, um ser tratado como inferior que busca ardis para dar sentido a uma existência passiva; o segundo, como a extensão do domínio da luta, já dizia nosso querido Michel Houellebecq. Sim, diz Tolstói, do jeito que estão, as coisas estão podres, e ele não necessariamente propõe nada melhor do que a abstinência sexual, mas faz sua denúncia com categoria.

Enfim, cabe aí a crítica do grande Tolstói a nossos valores defasados. E temos mais uma história de ciúmes, traição, vingança e purgação, para se somar a tantas outras obras dessa flor de obsessão da literatura russa. Tudo isso vem embalado nesse projetinho maravilhoso da Editora 34, essa linda que gosta mesmo é de clássicos de qualidade e capricha na edição, quer você goste do livro ou não. Papel pólen, fonte Sabon, xilogravura de Emil Nolde (alemães também fazem xilogravura, qualé?), e tradutores competentíssimos que têm a maior paciência do mundo pra te explicar tudo o que você não entende sobre a Rússia e seus russos. Como não gostar?

Comentário final: 113 páginas de papel pólen soft. Dogma é uma parada que foi inventada para sustentar paradas insustentáveis.

Franz Kafka – O Veredicto/Na Colônia Penal (Das Urteil/In der Strafkolonie)

Das Urteil/ In der StrafkolonieÉ gente, eu avisei. A coisa tá corridona. Vamos fazer assim? Deixemos as resenhas apenas para os domingos, alright?

E pra quem não viu, temos um patrocinador. O Sr. Victor Almeida está divulgando seu novo livro, que saiu na forma de e-book para kindle também. Cliquem ali no banner de seu Juntos no Paraíso para saber mais e comprá-lo, pra ele ver que é boa ideia anunciar aqui.

Olha só, um ano se passou e nem me toquei que não tinha falado ainda de Franz Kafka (não confundir com Franz Café, aquele Coffee Shop que fica aberto 24 horas ali na Praça da Espanha que só dá um povo bem esquisito que nasceu em Arapongas, mora no Cotolengo, usa cachecol em fevereiro e acha que é britânico). Já li essa coleçãozinha inteira dele, à exceção de O Processo, livro que não engulo nem misturado na sopinha. Restava falar de um de seus inúmeros livros de contos, incluindo o belíssimo Um Médico Rural, ou então falar do óbvio A Metamorfose, cuja resenha você pode ler em qualquer outro blog miguxesco por aí (aqui, ora pois, tratamos de literatura não-óbvia), ou então os inomináveis Carta ao Pai ou O Castelo (que raiva que eu tenho desse livro O Castelo, depois dele nunca mais li livro póstumo nenhum, só O Mestre e a Margarida por razões óbvias). Pensei então que poderia falar de O Veredicto e o insuperável Na Colônia Penal, dois contos/livrinhos surpreendentes e dignos de tudo o que se fala de bom do Kafka. Porque convenhamos, o sujeito escreveu muita porcaria também. Sério, tem um conto naquele A Contemplação, que foi o primeiro livro de contos dele, que quase me deu vontade de tacar o livro na testa do desinfeliz que deixou eu comprá-lo.

Pois muito bem. O Veredicto (Veredicto não tem mais esse c mudo, ou tem? Taí algo que faz a gente se sentir velho. “No meu tempo, netinho… cof…cof… Veredito se escrevia com c antes do t… agora passa esse balão de oxigênio aí… cof…”) é um livro curtinho cuja história, de longe, pode não impressionar muito. Um carinha que tem um amigo que mora longe, e com quem tenta se comunicar por cartas (os estadunidenses chamam isso de “pen-pal”, ô palavrinha feia da gota!) embora não tenha resposta dele há muito tempo, fica preocupado se comunica ou não que está noivo de uma gatinha. Ele está tomando conta de seu velho pai, assumindo os negócios da família, aquela coisa de homenzinho que acha que virou homenzinho. Até que o pai sobe nas tamancas, fala umas verdades, revela umas revelações e condena o filho à morte por afogamento, ao que ele responde com uma saída abrupta de casa para se afogar pulando de uma ponte. É isso aí, contei Spoiler e nem avisei que ia spoilar a bagaça toda. Deal with it. Como diz o Boça, eu também sei ser maloqueiro e quando eu quero zoar, sai de baixo, meo!

Nesse livro é legal a gente observar, em primeiro lugar, a relação do filho com o autoritarismo do pai. Falei que é legal observar isso porque qualquer crítico Mané vai te fazer enxergar esse fator e ai de você se desconsiderar o paralelo entre o pai de O Veredicto e o pai de Kafka. Assim são os críticos. Sabe quando você pede uma porção de batata frita pra todo mundo e sempre tem um babaca que joga ketchup na batata inteirinha, desconsiderando o gosto dos demais por ketchup? Pois esse é o crítico. É o cara que obriga você a degustar as coisas do jeito dele, e que se dane sua própria experiência. Quer dizer, não é todo o crítico que é assim. Só o são os críticos do cânone, os críticos do óbvio, os críticos do “ó-meu-deus-eu-sou-tão-esperto-que-se-eu-fosse-mulher-eu-me-traçava”. Aqui eu estou fazendo esse papel ingrato porque tem um povo que tá entrando aqui e falando que as minhas leituras são muito superficiais, então taí uma leitura que você pode ler no posfácio do livro e que, mesmo assim, todo mundo alardeia. Satisfeito?

Pode ver nesse livro também o absurdo do mote de Kafka, que vem de um certo estoicismo ao qual ninguém se acostumou direito depois da febre da Profecia Celestina. Veja só o que é o pai mandar o filho se afogar e ele ir, contra a vontade, morrer afogado? É uma forma de passivo-agressividade fora de controle (o que é ótimo porque eu acho que o gene da passivo-agressividade tem que ser extinto), uma rebeldia adolescente que a gente vê muito hoje em dia. Já viram a cena: o moleque, de preto dos pés à cabeça, com uma camiseta do Good Charlotte, muita maquiagem no olho, dizendo “eu queria nunca ter nascido!”, os pais fazem aquele drama de “és base, é protetooooooooooooor” e o moleque sai de casa batendo porta pra fumar Carlton Red na porta do Shopping Center com os amiguinhos de cabelo ensebado dele. É mais ou menos isso, só que no começo do século, e com morte de verdade, não apenas a morte da rebeldia verdadeira.

Falemos agora de Na Colônia Penal, o conto/livro mais sinistro já inventado por uma mente humana meio doente. Lembro que na época do Orkut tinha uma comunidade chamada “Kafka, fica de boa…” e realmente, ele precisava mesmo dar uma relaxada. Acho que o carinhômetro dele estava sempre em baixa. Deve ser por causa dessa cara feia que ele tem. Inclusive peguei essa foto aqui pro post de hoje porque tinha um porteiro no meu antigo prédio que era a cara do Kafka.

Divaguei, desculpem. Comecemos de novo. Na Colônia Penal é doente, já disse isso, né? Então, a história é isso aí, um cara vem de outro país para visitar uma colônia penal no país da história, e eles estão para executar um coitado com um método muito do sinistro. Consiste numa geringonça que deixa o infeliz penduradão e vai matando ele aos poucos enquanto várias faquinhas vão escrevendo uma frase de pára-choque de caminhão nas costas dele, uma lição de moral ou algo assim, até que ele morre esvaído na própria papa de sangue. É mais ou menos como aqueles “shows” em que os hã… malucos ficam pendurados por ganchos nas costas achando tudo o máximo. Acho que essa modalidade tem nome, mas tô com preguiça de procurar no Google e vou chamá-la de falta de enxada e meio lote pra carpir.

A crueldade da execução choca o estrangeiro (espero não estar confundindo com um conto do Italo Calvino) e pro executor, tá tudo numa naice. E aqui lá vamos nós jogar ketchup na sua batatinha de novo. A ideia do sofrimento sem uma sensação de que ele logo terá fim é uma constante nos livros do Kafka que falam do assunto. Você bem sabe que quando você se prepara para fazer algo sofrido, parte do sofrimento é amenizado pela sensação de fim iminente. Como por exemplo fazer uma tatuagem, tirar sangue, tratamento de canal, exame de próstata, andar de Cabral/Portão, etc. Agora, e se o sofrimento não tiver um fim visível na linha do horizonte? E não só isso, pensem também na engenhosidade de uma máquina projetada para te fazer sofrer. Eu sei que vendem máquinas assim pela televisão no Shoptime, que dá pra dobrar e guardar embaixo da cama, mas essa é projetada para o mal extremo, a morte e uma lição de moral ainda por cima. É doente ou não é, meu povo?

Chega que a resenha tá longa. A saudade é um prego, o coração é um martelo, por isso me estendi. Esse projeto gráfico da Companhia das Letras é sensacional. Livros branquinhos que já vem encardidos da livraria porque ninguém compra tanto Kafka quanto deveria, posfácios mais que elogiosos do tradutor Modesto Carone, o homem-Kafka (equivalente ao Elidio Lopes para o vinho), fonte Garamond e imagens da capa de Amilcar de Castro (embora tenha quase certeza de que um dos desenhos é uma fraude feita por outra pessoa, mas teria que verificar e já tá tarde pra isso). É uma beleza. Faltou mesmo pra minha coleção O Processo, edição esgotada há muito tempo, só acho de bolso. Uma vez vi um cara com esse livro num ônibus e pensei seriamente iniciar ali minha carreira de assaltante. E aí, quem topa fazer uma campanha para me doar essa edição d’O Processo pra eu completar a coleçãozinha?

Comentário final: Kafka, fica de boua, meo…

Ismail Kadaré – Vida, jogo e morte de Lul Mazrek (Eta, Loja dhe vdekja e Lul Mazrekut)

ETA, LOJA DHE VDEKJA E LUL MAZREKUTQuase que a Copel deixa esse blog sem mais um post, mas não é a falta de luz que vai apagar o Livrada! Aê! Bom, como vocês viram no post anterior, a votação para o The Bobs está rolando e o Livrada! já está perdendo feio para blogs mais ambientalmente conscientes (e nós aqui, consumindo coisas feitas de árvores derrubadas, sem levar em consideração o esforço de heroínas como Dorothy Stang). Vamos continuar votando para fazer coro, alright? Não vamos ganhar, mas vamos nos divertir. Sim, o Livrada é o América do Rio, é o União da Ilha, é o L.A. Clippers, é o candidato à presidência do Psol, é a delegação olímpica da República Centro Africana, é o sujeito que sai vestido de Bob Esponja na São Silvestre. Vamos nessa.

Antes de mais nada, gostaria de fazer um comunicado importante. Pelos próximos dias, estarei trampando num trampo sinistro que exigirá muito do meu tempo, então não garanto postagens regulares, embora desde já prometa fazer o possível. A boa notícia de tudo isso é que eu vou ter dinheiro e não vou mais precisar mentir pros meus amigos, dizendo que estou indo almoçar com outros amigos quando na verdade estou indo para um lugar afastado comer um sanduíche que eu trouxe de casa. Resumindo: vou ter dinheiro, aê, que alegria! (sim, amigos, agora vocês já sabem). Adiante.

Ismail Kadaré de novo? Sim, de novo. Se você ainda não percebeu, o cara é um habitué do Livrada! por méritos conquistados na meritocracia que é este blog. Autor bom entra, autor ruim sai, e autor consagrado, quando necessário, recebe um leve esculacho pra ficar ligado. E quem gostou lê, quem não gostou, não faz nada. Fica peixe. Bom, o livro de hoje não é muito recente. Acho que tem lá uns bons dez anos. Mas é um dos melhores dele que eu já li, e terminei de lê-lo essa semana, então a memória está fresquinha (assim espero) para comentá-lo.

Vida, jogo e morte de Lul Mazrek é mais um livro sobre a Albânia comunista do ditador Enver Hohxa (dia desses eu e Chico fizemos uma lista de nomes legais de estadistas — não confundir com lista de nomes de estadistas legais — e Enver Hoxha ainda é meu preferido, junto com Kamehameha I, do Havaí). Nela, um jovem ator como Lul Mazrek, ao ser reprovado no vestibular de artes, se vê obrigado a servir o exército (quem pensou na história do Hitler — outro nome legal de estadista e NÃO de um estadista legal — tá certo, embora ele não tenha nada a ver com a história), mais especificamente em Saranda, uma espécie de Costão do Santinho Albanês, por onde os fugitivos do governo resolvem escapulir, direto pra Grécia, pela antiga cidade de Butrint, um lugar que, como tudo o que já foi cidade grega, é formada de parede velha e caída e mais coisas completamente destruídas. Pois bem, Lul Mazrek precisa estar ali pra meter bala em quem tentar fugir. O que também não tá certo, o governo não entra num consenso se mostra pra população os cadáveres abatidos ou ocultam, e fica nesse problema de logística de achar, transportar e exibir cadáver. Como diz a Avril Lavigne: complicated.

Ao mesmo tempo, temos essa deusa albanesa (uma incoerência, porque se você procurar ‘albanesas gatas’ no Google, ele vai perguntar se você não quis dizer ‘japonesas gatas’), chamada Violtsa Morina, contratada pelo governo para identificar, seduzir e caguetar os fujões, segundo tese do governo que fugitivo fica todo sensível antes da fuga e acaba por dar com a língua nos dentes. E o que acontece, rapaz? É claro, os dois se apaixonam. Aí rola todo aquele lance de amor proibido, não é o trabalho dela, o exército não deixa o cara sair pra namorar, os fujões vão fugir se ela baixar a guarda, quem está tomando conta do lojinha, etc.

Bom, esse livro serviu para o Kadaré explorar todo o tipo de história espelhada possível. Não vou contar mais pra não estragar a diversão de quem vai ler (sim, o Livrada! é legal, tem fita VHS roxa com selo da UBV e marca d’água), mas, se você reparar, são vários os paralelos que se pode traçar entre as vidas de Lul e Violtsa depois que se encontram, além da comparação explícita entre Violtsa e Andrômaca que, pra quem não sabe, além de ser uma personagem da mitologia, também é um capítulo muito serelepe do Kama Sutra. Sim, já que o papo é Grécia, sexo e exército, por que não falar de Andrômaca?

Mais uma vez, o autor mostra uma Albânia feita não se sabe para quem, com regras que agradam muito pouca gente, e pessoas que vivem seus dramas pessoais de pertencerem a um lugar que inibe todo o potencial delas. Foi assim no Abril Despedaçado, foi assim no Dossiê H, enfim, o cara fala disso mesmo, get over it. E, claro, é um livro com doses moderadas de literatura erótica e doses nada moderadas de realidade dura, tipo letra do Ndee Naldinho. Vale a pena? Vale a pena.

O projetinho da Companhia das Letras para o autor é bacana, vai dizer. Já falei sobre ele antes: fonte Electra, papel pólen e tradução do único, do inigualável, do insubstituível (insubstituível mesmo, gente,ou tem alguém aqui que fala albanês?) Bernardo Joffily. A capa não sei daonde é, que o livro tá longe, mas imagino que seja do CORBIS. Se não for, depois eu corrijo com o rabo entre as pernas.

Por último, preciso abrir meu coração: conversando com a colega Patricia, da minha turma de alemão, ela me solta essa: “o meu cunhado também gosta de literatura, e ele não é gay!”. Tá vendo, macharada iletrada? Mais uma virtude desejável vai parar na fama ilibada dos homossexuais. Já disse, vamos fazer os livros serem legais de novo. Reforço meu pedido, mulheres: se o gatinho te levar na casa dele, com vinho chileno e hortinha de manjericão na sacada, mas não tiver livros em casa, não transe! Simples assim.

PS1: Esqueci de dizer, mas agora o Livrada! tem uma página no Facebook. Entrem lá e fiquem por dentro das atualizações: http://www.facebook.com/pages/Livrada/209104299099609

PS2: Tô vendendo um PS2, tratar aqui.

PS3: Esqueci de dizer, mas estamos na mídia!

Comentário final: Se alguém me enviar pelo correio um exemplar novinho de “O Livro Verde”, do Kadafi, eu resenho, prometo!

 

Lev Tolstói – A Morte de Ivan Ilitch (smiert Ivana Ilhitchá Смерть Ивана Ильича)

smiert ivana ilhitcháFeliz ano novo pra todo mundo aê. Gostaria de estar um pouco mais feliz nesse começo de ano, mas janeiro é uma desgraça que só para os meus queridos conterrâneos. Em ano ímpar, tragédia no interior; em ano par, tragédia em Angra. Sacanagem não, essa época é uma tristeza que só. Mas aí, meu trabalho aqui é falar de livros e tentar dar um pouco mais de leveza pra vida, afinal, dar umas risadas também é importante. E hoje, pra recomeçar os trabalhos no Livrada!, vamos falar do livro mais triste já escrito na história da humanidade. E vamos dar risada com ele.

Trata-se de A Morte de Ivan Ilitch, do Tolstói. Escrevi o primeiro nome no título, como está no livro, mas pode chamá-lo de León, Liev, Leôncio, Laurício, Lugano ou Lombardi, afinal, tradução do russo não é uma ciência exata. Tolstói, pra quem não sabe, é o camarada que escreveu aquele calhamaço gigantesco chamado Guerra e Paz que, não, não é uma minissérie da Rede Globo. Se liga, mané. Também escreveu o Anna Kariênina, uma espécie de novela das seis de quando não tinha televisão ainda, mas tem as mesmas roupas de época, a mesma mulherada fofoqueira e traíra, e também demora mais ou menos dois meses pra você saber o desfecho. Mas isso aí é outro papo, outro tipo de livro, outra vibe, outra pegada. Deixemos esses para os intelectualóides que precisam cumprir tabela. Vamos falar de um livro que é realmente legal, um livro batráqui, um livro rélpis, um livro estrogonoficamente sensível.

A morte de Ivan Ilitch é considerado pela crítica um dos livros mais perfeitos já escritos e, embora eu não goste de ir na onda da maioria, tenho que dar o braço a torcer e concordar. E muito da sua perfeição, eu diria, vem do fato dele ser pequenininho. Um livro peso-pena, mas que tem um cruzado de direita que vai garantir um Natal gordo pro seu dentista. Vejamos a história, então.

O livro começa com a notícia do funeral do Ivan Ilitch entre seus amigos, e todos eles já começam a calcular o que isso significa para suas vidas pessoais e profissionais. Isso é a maior arapuca do autor que, como o Coiote do Papa-Léguas, tá colocando um pouco de alpiste debaixo de uma bigorna pra você curtir. Você pensa então “rá, que cara sarcástico, banalizando a morte do cara, aposto que ele era um banana de quem nem os amigos gostavam muito”. Aí que tá o golpe, maluco. Aí que você vê que, como já dizia o Mia Couto, a verdade é como o ninho de cobra, que a gente reconhece não pelos ovos, mas pela mordida. A narrativa deixa o velório e retrocede num rewind frenético até o começo da vida de Ivan Ilitch. E conta como ele nasceu, cresceu e se formou, casou e teve filhos. E vê que ele teve uma vida prosaica, normal e monótona, casou com a mulher por interesse, e tudo mais, e pensa: “Alá, sabia que era um banana, ninguém vai sentir falta desse cara”. Nesse ponto o Tolstói tá cortando a corda da bigorna que vai cair em você que tá comendo o alpiste da apatia.

Um belo dia, o mané Ivan resolve subir uma escada pra, sei lá, pendurar uma cortina, sofre uma queda e se machuca um pouco. Começa a sentir umas dores, freqüenta uns médicos, e ninguém consegue dizer o que ele tem. Convenhamos que ser médico naquela época era moleza, vai. Não tinha que passar no vestibular, não tinha que fazer residência e tinha cinquenta vezes menos matéria pra estudar, porque, se você é que nem meu avô que acha que médico não sabe de nada, imagina só no século XIX quando realmente não tinha quase nada pra estudar. Chegava-se lá, receitava uma infusão, um emplastro, uma injeção, e se o paciente morresse, você ainda assim tava prestigiado e voltava pra casa com porcos e galinhas. Pois bem, o sujeito vai ficando mais podre que compostagem e aí ele se dá conta de que vai morrer. Ele fica tão abalado, mas tão abalado que, olha, parabéns se você não ficou com dó dele. A tristeza contamina todo mundo da família, e isso só piora, porque ele vê que ele é o causador de toda infelicidade da esposa e dos filhos. Eles resolvem deixar ele de molho no quarto e escondê-lo das visitas, pra terminar de arregaçar tudo com solidão e isolamento social. Ele não consegue pensar em outra coisa a não ser na morte: como tudo é tão triste agora que ele sabe que vai morrer, como ele gostaria de viver mais e não pode, enfim, toda a tristeza do ser humano que já não se vê mais como vivente. Passa o resto dos seus dias com a companhia do filho e de um criado que são um pouco mais sinceros do que ele, até que ele finalmente morre, como o início do livro já havia dito. E, fechando a última página, se você não estiver se debulhando em lágrimas, vai ao menos pensar que foi no mínimo injusto com ele desde o início ao não sentir sua morte como ele próprio sentiu. E o Coiote Tolstói fez mais uma vítima.

Parabéns pra você que não sentir um aperto no peito lendo esse livro, é um forte sem coração, no mínimo. Claro que eu devo ter tirado metade da graça do livro com essa explanação tosca e cheia de spoilers, mas hey, esse não é o papel da crítica? Ah, não? Ih, fiz cagada então, desculpaí. Bora falar do projeto gráfico do livro então. A morte de Ivan Ilitch faz parte da Coleção Leste da editora 34, coordenada pelo Nelson Ascher, que é o cara e ninguém precisa ficar dizendo isso. A tradução é do Boris Schnaidermann, que já fez uma ou outra tradução em parceria com o Ascher, se não me engano, e a imagem da capa é do Evandro Carlos Jardim, um desses desenhos que os caras falam “até meu filho faz isso”. Dependendo da quantidade de músculos do pai, não vamos tirar a razão dele, né? Que mais? Tem posfácio do tradutor e apêndice do Paulo Ronái, um intelectual já defunto que manjava muito desses bichos de literatura clássica. No mais, papel pólen Bold e fonte Sabon. Tamos conversados? De volta ao blog então, vamo que vamo.

Ah, vou colocar uma enquete ali do lado, se conseguir. Respondam, vai ser maneiro!

Comentário final: 92 páginas em papel pólen bold. Mais fácil machucar alguém dando esse livro pra ela ler do que dando uma porrada na cabeça com ele.

 

Ismail Kadaré – O Acidente (Aksidenti)

O AcidenteFala aí, meu povo, tudo certo? Viram só, o último livro teve comentário ilustre do próprio autor. Um abraço pro Xico Sá aê! E não, eu não fui lá mostrar o meu blog imbecil pra ele, não sei como o cara achou. Mas enfim, achei legal e vamos tentar fazer mais autores visitarem a espelunca. O livro de hoje é do Ismail Kadaré, e ele tá vivo. E pô, se o cabra fala albanês, português pra ele deve ser pito! Quem tem a moral de ir lá esfregar essa resenha naquela cara de Augustinho-da-Grande-Família-depois-do-desterro dele? Quem tem? Tô desafiando!

Antes de começar a falar do livro, uma pergunta para vocês: estou pensando em colocar aqui no espaço outros textos relacionados a hábitos de leitura e aspectos físicos do livro, o que acham? Digam lá nos comentários.

Pois muito bem. O Acidente é o último livro do albanês Ismail Kadaré. Sim, ele, o amargurado, o tio sério que não gosta de piada, o sujeito massacrado pela cultura do país, o cara que queima muitos ATPs para dar uma risada, o paladino blasé. Nesse livro, a história não podia ser mais down: um acidente de carro que mata um casal, logo na primeira página, intriga investigadores e detetives com muito tempo livre que resolvem reconstituir o passado dos dois porque se descobre que o rapazinho tem ligação com o governo. Pelo menos foi isso que eu entendi, rá rá rá.

E aí o levantamento do passado dessa relação dos dois revela uma paixão doentia, com mulheres virando prostitutas, lésbicas, casaca, olhinhos por boçais, etc. A história dessa tensão sexual entre o cabra, Bessfort Y. e a mulher, Rovena St., é tensão de verdade, não é aquela coisa afrescalhada do Vermelho e o Negro. E, claro, é triste pra caramba, a bichinha tá num mato sem cachorro e parece que nem percebe. E o bonitão lá, na rédea curta com a moça, fazendo ela de gato e sapato feito aqueles safados que seqüestram garotinhas na Austrália por não sei quantos anos. Nada bom para a bunda da Rita Cadillac, ou, como ela chama, o moral.

Penso que, como tudo na escrita de Ismail Kadaré é política, essa relação entre Bessfort Y. e Rovena St. pode representar a tensão entre sérvios e albaneses, já que cada um do casal é ligado a um dos países. Mas, já fazendo a minha mea culpa, não vou entrar nesse mérito por saber quase nada do assunto. A gente aqui fala besteira, mas fala com propriedade, valeu?

Ismail KadaréAgora, vejam só vocês como são engraçadas as coisas: o release do livro, e a orelha, usa o termo “acontecimento banal” para descrever o acidente de carro que mata o casal protagonista, querendo dizer que o caso não mereceria normalmente a atenção que ganhou por parte dos investigadores do governo. E isso acontece porque o autor inicia o livro com o mesmo termo, para assegurar o leitor de que o tal “acidente” do título não é esse do carro. Mas faça aí uma busca rápida no Google e veja quantas críticas e resenhas a esse livro também se referem ao acidente como “acontecimento banal”. Desde quando acidente de carro que joga as pessoas contra o pára-brisa, os corpos saem voando e se arrebentam no barranco é “acontecimento banal”? Pô, será que esse povo não viu À Prova de Morte, do Tarantino? Será que todo mundo agora é crash test dummy pra achar acidente de trânsito corriqueiro? Coé, críticos do meu Brasil, vamos parar de repetir o que vocês leem no release igual coro de música do Afrika Bambaataa e vamos admitir que esse acidente foi coisa feia sim!

Eu não sei se eu tava com muito sono quando li esse livro, mas o fato é que achei a leitura dele bem lenta e arrastada, dada a complicações pela troca constante de estilo que o autor usa na narrativa. Uma parada meio saramaguiana que rola por umas páginas faz o peão rodar bonito e ficar mais perdido do que filho da p*** em dia dos pais. Nem por isso o livro é ruim, só demora a pegar no tranco (ou quem demora sou eu, não sei). Da metade em diante ele fica excepcionalmente bom, e o final é uma porrada na sua cara. Aposto que por um desfecho como esse vocês não esperavam. Pensem só como alguém pode inventar e surpreender numa história onde você sabe que os protagonistas já estão mortos?

Esse projeto da Companhia das Letras ficou bem bonito, mas me dá uma tristeza no coração quando os caras fazem uma coleção bem bonitinha do autor e aí resolvem mudar o padrão. Gostei das cores, principalmente: cinza e azul petróleo (azul petróleo é como eu chamo qualquer azul que eu não sei que azul é). A tradução ficou por conta, como sempre, do grande Bernardo Joffily, que traduziu a bagaça direto do albanês. Direto do albanês, gente! Acendam uma vela pra esse homem hoje à noite, que ele merece. A capa é de um cabra chamado Fabio Uehara, e, sei lá, eu gostei bastante, tá mais espontâneo que as capas da coleção do Kadaré, então ponto pra ele. Mas bem que poderiam mudar as capas então, né? No mais, papel pólen e fonte Electra, padrão da editora para caras tristes como esse. E o título original, Aksidenti, fez você aprender pelo menos uma palavra em albanês, aê garoto!

Ps: Por que diabos a letra ficou tão grande hoje?

Comentário final: 232 páginas em papel pólen. Pimba na gorduchinha (na gordinha mesmo, não na bola de futebol).

Milan Kundera – A Ignorância (L’Ignorance)

E aí, meus queridos, como vocês estão? Já superaram a derrota do Brasil na Copa do Mundo ou não? Já estão conseguindo tomar suco de laranja, calçar um tamanquinho sem chorar, ir pra marcha da maconha sem pensar naquele país baixo (de baixeza) que já está vivendo no futuro faz tempo? Quem precisa da Holanda, não é mesmo? E, se serve de consolo, pensem que vocês, caros leitores, foram privilegiados com um alfabeto de 26 letras diferentes, enquanto o alfabeto de lá é igual o seu álbum da copa: cheio de figurinha repetida. Só tem A E E E E J J J J L K K K K V V V O N N N T e acabou. Agora enxugue essas lágrimas e torça para o próximo técnico montar uma seleção com mais moleques e menos caveiras, meu capitão.

Em homenagem ao herói dessa copa, Felipe Melo (que, junto dos vilões das outras copas, como Ronaldo em 98 e Roberto Carlos em 2006, há de se reunir com os da sua laia no Corinthians), o livro de hoje tem um nome sugestivo: A Ignorância, do velho tcheco metido a rapazote Milan Kundera. Sim, o cara é da República Tcheca, aquele país que até hoje só conseguiu exportar escritores orelhudos e atrizes pornôs. Mas também, amigo, com aquele visu alucinante de Praga, quem iria querer trabalhar?

Milan Kundera, para quem precisa ter a memória refrescada, é o autor de A Insustentável Leveza do Ser, um dos livros favoritos das patricinhas metidas a inteligentes. Juro que não me entra na cabeça como garotinhas cujo filme favorito é Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças podem entender o que Kundera escreve. Tudo bem que ele é considerado um escritor lúdico (na linguagem acadêmica, literatura lúdica quer dizer “bobeirinhas”, e não venham me corrigir nessa), mas ele tem alguns pontos — pelo menos cinco em cada livro — onde ele se debruça em pensamentos profundos e cuja referência cultural exige muito do leitor. Talvez a garotada leia pelas frases e pensamentos de efeito, afinal, e não pela história toda, mais ou menos como acontece com o Oscar Wilde.

A Ignorância é o último romance publicado pelo autor. Um livrinho muito mixuruca perto da obra dele, com pouquíssimas páginas, então dá pra encarar sem medo, ok? Fala de dois sujeitos, um homem e uma moça, que, depois de um tempão no exílio, cada um no seu canto, se reencontram por acaso no país natal. Eles tinham começado uma relação amorosa quando eram jovenzinhos, mas, tentando reatar, descobrem que as lembranças de cada um daquela época são meio diferentes, e aí se desenrola umas paradas sinistronas que só lendo pra saber, afinal, não sou escroto a esse ponto.

Acho que, mais do que tratar a questão da relevância da memória na nossa vida, o livro dá uma pincelada boa no que é o exílio, baseado mesmo na sua experiência. Ele, que vive na França hoje, considerado cidadão francês (não viu que o título original do livro tá fazendo biquinho pra você?), é um cara desses sem pátria, ou, pelo menos, sem o conceito de pátria que nós, pessoas normais que crescemos sem essas mordomias de “tchau, vou morar na França agora” temos. Tudo bem o cara começar a falar outra língua, mas deixar de escrever na língua mãe é assinar atestado de clandestinooooo (bateu saudade de ouvir Manu Chao, malandro?). É inclusive um mal do escritor tcheco, não escrever em tcheco pra sempre. Acho que é uma dessas coisas que acontece quando você mora num país do tamanho de um ovo e o resto do mundo não entende seus acentos circunflexos de cabeça pra baixo, nem o que eles estão fazendo em cima de letras inocentes como o S. Tem que facilitar o caminho da sua literatura pro mundo, bicho. Pensa nisso.

E, como bons exilados, querem fazer bonito ante os conterrâneos que permaneceram na terrinha. Grande sacada essa que tem no livro. Acredita-se tanto na experiência de vivência que nêgo que viaja começa a se achar muito mais esperto do que quem fica. Quem já viu aquele filmeco da Lisbela e o Prisioneiro há de lembrar do cearense que foi pro Rio e voltou todo metido, falando chiado. Memorável é a cena, em A Ignorância, que a fulana chega lá pros amigos tchecos e fala “e aí, vamos beber um vinho?”. Justo pra quem senão o maior bebedor de cerveja da face da terra! Vai ser jeca assim no inferno!

Vou dizer: um pecado que a Companhia das Letras não publique os outros livros do Kundera no formato normal. É mó ruim ficar lendo livro pocket, e comprá-los é mais ingrato ainda. Parece que você tem uma biblioteca de anão em casa. Salvo o preço, não vejo vantagem no formato, nem pelo tamanho. Só é uma coisa mais rentável pra editora. Mas essa coleção do autor é muito linda, com umas litografias de nada mais nada menos que Lasar Segall (se você não conhece a peça, saia deste blog agora, vá pesquisar esse nome no Google e depois volte aqui pra pedir desculpas por ter precisado interromper a leitura). Tudo montado pelo genial João Batista da Costa Aguiar, que prepara algumas de minhas capas favoritas da editora. No mais, glorioso papel pólen soft e fonte Sabon, uma fonte que, verdade seja dita, é um pouco antiquada para os dias de hoje. Tá valendo mesmo assim.

NEWSFLASH! Galera, agora o Livrada! tem um twitter! Sigam @bloglivrada e acompanhem as novidades, já que vocês cismam em não assinar o RSS (tem exceções). Vou procurar adicionar informações importantes ou não sempre que possível, ok?

Comentário final: 156 páginas em pólen soft. Machuca o viadinho que usa Gillete Mach 3 para um barbear macio e delicado pra você, mocinha delicada.