Daniel Defoe – Robinson Crusoé

Daniel DeFoeO pessoal da nova crítica que acha que é facílimo falar bem de clássicos porque o tempo fez o trabalho de separar os Dan Browns dos Saramagos parece que não sabe que alguns Best-Sellers de antigamente também chegaram até aqui pela força popular e por eventuais sentidos que a galera resolveu imiscuir na obra de tanto que ela ficou pairando pelas estantes por aí. Poderia citar alguns exemplos aqui, mas temo decepcionar um ou outro eventual pseudo que gosta de se achar porque leu um livro que foi escrito antes dele nascer. Melhor se ater ao exemplo e objeto de análise de hoje, que é este Robinson Crusoé, do Daniel DeFoe, publicado em 1719. DeFoe escreveu esse livro pra ganhar dinheiro, e escrever livros era o jeito de ganhar dinheiro com arte ao alcance do homem comum naquela época, já que ser cineasta era impossível, ser músico requeria uma vida de estudos, ser grafiteiro era crime e ser vlogueiro então, nem se fala. É claro que a parada acabou sendo meio revolucionária pela linguagem despojadona e moderna, mas veja, isso é o que se fala de um livro centenas de anos depois, quando se percebe isso. Na época, vendia porque era bom, e era bom porque dava vontade de ler.

Talvez você conheça a história de Robinson Crusoé do filme com o Pierce Brosnan, mas eu preciso te avisar que essa não é exatamente a história do livro por ter, como sempre, umas invencionices bizarras pra deixar o filme com mais cara de “aventura”. O que é uma palhaçada, porque o livro tem doses de ação suficiente para dispensar aquela cena grotesca da luta entre ele e o Sexta-Feira em cima de uma ponte cheia de espinho ou algo assim. A história original fala de um garoto pacato que tinha muito o desejo de ser uma espécie de mochileiro daquela época. Viajar o mundo, ver umas coisas interessantes e depois voltar para uma vida pacata que pode ser aliviada pelo excesso de vivência. O pai dele bem que fala pra ele não fazer isso, porque o bicho só vai se dar mal nessa vida para a qual ele claramente não foi preparado, mas adolescente já era teimoso naquela época, de modos que ele vai sem medo de ser feliz e enfrenta um zilhão de perrengues. Naufraga umas duas vezes, vira escravo dos piratas berberes, perde uma grana, quase morre, vem parar no Brasil, onde começa um engenho de cana de açúcar e tudo parece ficar bem. Até o dia em que ele inventa de ir ele mesmo buscar uns escravos na África e é claro que o navio naufraga e ele vai parar na tal Ilha do Desespero que, vejam vocês, fica no oceano pacífico. Como alguém que sai pra África vai parar no Oceano Pacífico é ainda um mistério que nem lendo com muita atenção as páginas que tratam da passagem me permitiram decifrar. Na minha interpretação, ele deve ter achado que a América Central insular era vazada e isso permitiu com que ele fosse do  Orinoco à ilhota em questão. Mas eu sou meio tapado também, posso estar errado.

Enfim, quando ele chega lá, sendo o único sobrevivente do navio, começa uma vida nova. Se virando com o que consegue pegar do naufrágio e aprendendo a fazer as coisas na marra, o livro é um relato solitário de sobrivencialismo otimista por uma boa parte, até que ele conhece o selvagem sexta-feira e o livro se torna uma experiência intercultural com um tiquinho de violência mais para o fim.

Daniel DefoeAcho que a primeira coisa que dá pra perceber pela leitura do Crusoé, a respeito do protagonista, é seu otimismo inabalável, diretamente proporcional ao crescimento de sua religiosidade. A cada ano ele fica mais carola e mais conformista, evidenciando que as duas coisas não são fenômenos isolados, então fica a dica. Ao mesmo tempo, ele procura manter a postura de europeu imperialista na ilha, tentando ser senhor de tudo e dominando o ecossistema e os tais “selvagens” que ele eventualmente encontra. Mas isso vai além do universo da ilha e pode ser observado no fato de que, à exceção de Sexta-Feira, nenhum dos outros personagens têm nome. Nem mesmo os europeus. Isso quer dizer que o que não foi criado ou batizado por ele, é meramente secundário para a história, mesmo que sejam amigos e que sejam pessoas boas. Aliás, isso é outro ponto do romance: o otimismo do sujeito é o otimismo do autor, porque tudo quase sempre dá certo e todo mundo é muito bonzinho. Não tem espaço para a maldade no universo de Robinson Crusoé, e mesmo os selvagens o são por um força cultural acima do bem e do mal. É, então, aquele lance do otimismo do Leibniz que ia ser escrachado pelo Voltaire no Cândido estava muito na moda naquela época e, parando pra pensar, o Cândido meio que tira uma onda com a história do Crusoé, com toda aquela coisa dos selvagens e tal.

Por fim, Robinson Crusoé é uma história que dá vontade de ler, e isso às vezes é mais do que um livro precisa para circular por séculos entre nós leitores. As trezentas e poucas páginas do romance passam voando, e ele ainda tem um prefácio muito maneiro e detalhado sobre a obra do cara. Ah, e descobri uma coisa sobre eu mesmo lendo esse livro: eu gosto muito, mas muito mesmo, de edições comentadas. O tradutor é como se fosse um amigo mais inteligente que vai me explicando as coisas e comentando as passagens do livro, como os termos que ele usa no original e o jeito como ele pinta os conquistadores espanhóis como excessivamente sanguinários e cruéis. Ao sr. Tradutor Sérgio Flaskman, gostaria de agradecer pela companhia durante a leitura desse livro.

E aquela coisa, né? A Penguin-Companhia tem o mesmo padrão para todos os livros, mas devo dizer que a cada vez gosto mais desse acervo. No começo tava achando tudo marromenos, meio chato demais, mas agora tem altos livros legais e estou lendo cada vez mais o catálogo dessa editora. Recomendo, porque para a qualidade e o tamanho do livro, até que ele é baratinho. Ah, e gostei dessa capa meio irônica também, de achar no google maps a ilha onde o cara se perdeu e que, na época, não estava no mapa. Sagaz e sacana, gosto assim, seu Penguin.

Comentário Final: 401 páginas de puuura aventura exótica na ilha deserta.

Paulo Scott – Habitante Irreal

paulo scottTinha algumas metas de leitura esse ano, que até estipulei para mim mesmo no Desafio Livrada 2013 (como estão vocês com os seus?), mas se dissesse que consegui cumprir algum deles, estaria mentindo. O que não quer dizer que não tenha conquistado outros objetivos com os livros que me passaram pelas mãos ao longo do ano (e devo dizer que este ano foram poucos, em comparação com anos anteriores. Vida que freia, sabe como é, todo mundo precisa parar e respirar mais). Conheci mais dos russos, descobri autores novos muito bons e, mais do que isso, realmente me empenhei em encontrar autores brasileiros contemporâneos que valem a pena ler (e valer a pena ler já é demais pra grande maioria da produção atual). Paulo Scott, com esse Habitante Irreal, foi uma descoberta surpreendente. Jamais imaginaria tanta profundidade cultural, temática e literária em um romance escrito em 2011. Recado pros mau-amados da área: tem spoiler.

O romance tem como ponto de partida o final da década de 80 e um protagonista chamado Paulo, portoalegrense descontente com os rumos que o PT tomou depois de conquistar a prefeitura na capital do Rio Grande do Sul e com seu trabalho numa firma de advocacia. Ele resolve pedir a desfiliação do partido, as contas no emprego e fica meio perdido na vida até que encontra uma indiazinha de 14 anos na beira da estrada pedindo carona. Ao dar carona pra ela, ele começa a se envolver com a vida de Maína, que é o nome da indiazinha, numa espécie de compensação político-cultural pela opressão colonial e pelo descaso do seu partido com as minorias marginalizadas. Pelo menos foi isso que eu entendi. Só que, obviamente a parada pega mal, porque se esse negócio de “estupro de vulnerável”, como costumam chamar, já é complicadíssimo, com uma índia dimenor, rapaz, a turma dos direitos humanos cai matando. O sujeito vai pra cadeia depois de uma merda com a polícia e passa um tempo em Londres porque, sei lá, passar a pior em Londres não é coisa só de Orwell. Enquanto isso, no Brasil, Maína, que tinha engravidado do Paulo, dá a luz ao Donato, um rapaz índio que acaba sendo adotado por um casal de assistentes sociais, ou algo assim. E a partir daí, começa uma história sobre passado, cultura, política, erros e acertos cujo teor preciso generalizar para esse blurb sob pena de entregar mais do livro do que já entreguei.

por Renato ParadaO pior de tudo é que está justamente nesse desenrolar a maravilha do texto do Scott, de modo que fica bastante complicado fazer uma resenha adequada desse livro só com essa sinopse geral, mas vou deixar assim mesmo. Se você ainda não teve vontade de ler esse livro pelo que eu falei aqui, leia pelo que eu ainda não falei. O jeito como o autor conduz a obra é de uma maturidade literária jamais vista nessa geração de escritores, e lembra gente do naipe de Don DeLillo e Philip Roth. E a temática – isso de discutir a geração que atualmente está no poder no Brasil, e debater as relações delicadas com nossas raízes – é igualmente sem paralelo na nossa atual literatura. Scott sabe separar bem os estilos, e se resolve ser prosador poético em um capítulo, o faz distintamente da prosa geral do livro, que é densa e sem maiores floreios.

E essa também não é uma história bonita, muito pelo contrário. A literatura dele, comumente suja, chega atropelando em tabus e vira para lados que o leitor não necessariamente quer ler, mas é confrontado com um mundo sujo e amoral à força. E as conexões que o livro sugere são ainda mais assustadoras, mas isso é trabalho para o leitor e não para o comentador do livro.

O projeto gráfico da Alfaguara é demais, e essa capa é meio engraçada e meio assustadora, mas, no geral, não foge muito dos outros livros da editora. À exceção de alguns capítulos, que o autor escreve inteiramente no formato de nota de rodapé, pra dar a entender que a história ali não está sendo narrada, mas meramente comentada e preparada paras as próximas páginas. No mais, é um livro sombrio, delicado e raivoso. Gostei

Comentário Final: 260 páginas de papel pólen. Uma porrada na cabeça do PT.

Ernest Hemingway – O Velho e o Mar (The Old Man and the Sea)

the old man and the seaOra, ora, ora, mais um clássico da literatura do século 20 por aqui. Aliás, um clássico curtinho. Clássico curtinho da literatura do século 20. O melhor tipo de clássico para o leitor comum. Rápido, acessível, geralmente barato, e quase, quase, quase sempre, permite qualquer leitura rasa que você queira fazer dependendo da sua disposição. Enfim, eis o arquétipo do livro universal. Taí pra quem quiser ler do jeito como quiser ler. O Velho e o Mar, que foi o último livro do Hemingway publicado em vida, é um desses casos e, graças a sua verve quase jornalística de narrar as coisas da maneira mais econômica possível, permite um sem fim de interpretações filosóficas, sociológicas, biológicas, metafísicas, naturalistas, políticas, gastronômicas, ergonômicas, psicodélicas, escalafobéticas e estrogonóficas sobre a manjada história do velhinho tentando pegar um peixe. E um aviso pros mal comidos de plantão: tem spoiler mesmo, na cara dura, sem dó. Te acostuma aí, boneco. Fica peixe.

Pra quem chegou agora no planeta Terra, a coisa gira em torno do véio Santiago, um cubano pescador que, já completamente desprovido da vitalidade de outrora, tenta sem sucesso tirar seu sustento do mar. Pra quem estranha a nacionalidade do sujeito e a ambientação do romance, fique sabendo que o autor morou um tempo em Cuba, onde ele inventou, segundo a lenda, o mojito. O velho tem como único amigo um garoto, que lhe ajuda nas pescarias e que lhe dá de comer quando tudo mais rareia na geladeira – uma amizade que seria muito útil pra mim, tendo em consideração o constante e deplorável estado da minha geladeira (por enquanto esse amigo continua sedo o motoboy do delivery). Os pais do moleque, mesmo assim, não gostam que ele vá pescar com o Santiago porque ele é azarado, e se tem uma espécie supersticiosa nesse mundo é pescador. Aliás, qualquer pessoa que frequenta muito o mar, de surfista a pirata. É uma coisa natural. Uma hora a parada vira, você fica num mato sem cachorro e pra te acharem naquele mundaréu de água salgada só com muita reza braba e foguetório sinalizador. De modo que o velho sai pra pescar sozinho, na esperança de fazer uma economia aí pros dias que se apertam, uns peixinhos que dê pra vender sem precisar vender muito o peixe, e não é que aparece um PEIXE-ESPADA MONSTRUOSO ASSASSINO VINGATIVO AMIGO DO PCC. E o velho tá lá, mãozinha na fieira, puxando o bicho na maior história de pescador que poderia ter imaginado. O bicho é irascível, e cansa o velho, que passa dias e noites com a linha na mão ponderando sobre a sua fraqueza, sobre a sua habilidade de pescador e sobre a beleza e magnitude do peixe que agora precisa pescar para recuperar sua honra de pescador não-azarado. Isso é 90% do livro. Uma narrativa sintética com monólogos do velho Santiago sobre essas questões aí. A coisa segue nessa toada até que ele consegue finalmente pegar o bicho, e dá um jeito de amarrar ele no bombordo do barquinho, numa proeza que nenhum Pesque e Cia. até hoje mostrou.

Mas aí vem o pulo do gato que só quem leu sabe. A coisa não ia ficar por isso mesmo, é lógico. A tubarãozada, vendo aquele sangue derramado e o cheiro de peixe morto, vem logo pra fazer a janta de ocasião, e aí começa uma luta do velho com os cartilaginosos ardilosos, uma luta que eventualmente ele perde, e chega na costa só com a espinha gigantesca amarrada no barco, provando que sim, ele ainda é o pescador azarado de sempre. Nada dá certo, desgraça total, todo mundo pobre, Fidel preparando pra tomar a ilha e o velho continua sem comida e longe de seu esporte favorito, o beisebol.

o velho e o marFica claro numa leitura possível de O Velho e o Mar a relação de medo, admiração e força do homem com as forças da natureza, aqui melhor do que nunca representado pelo mar e pelo seus peixes maloqueiros. O velho, que já fora campeão de uma histórica contenda de queda-de-braço, se vê agora rezando e lutando com a decadência do próprio corpo para conseguir e defender o sustento que vem difícil e vai fácil. Isso, ao mesmo tempo em que se compara com Joe Dimaggio, o grande jogador de beisebol de sua época, numa desproporcional competição de força física e propósito de vida que, de alguma maneira, sempre foi um parâmetro para os homens. O Velho e o Mar pode ser uma alegoria para muita coisa: para o fato de que a natureza sempre vence, para a ignorância da própria impotência da raça humana, para a concretização das superstições marítimas, para a aurora dos ídolos do esporte ante a ruína do ocidente, para o medo cósmico do homem que precisa da natureza mas gostaria de não precisar. O Velho e o Mar é um desses livros cuja leitura que você faz diz muito mais sobre você do que sobre o próprio livro, em grande parte pela ausência de maiores significados explícitos no texto. Quer ser misterioso e discutido ao longo de décadas? Pode ser o easy way – criando polêmica atrás de polêmica – ou pode ser o Hemingway – jogando o dom da interpretação pra galera. E não está aí a maravilha de um clássico, numa daquelas definições de clássico do Italo Calvino em Por Que Ler os Clássicos? Um clássico, dizia ele, é um livro que nunca termina de ser lido. Ou comentado. Sei lá, não sou desses nerds que ficam vasculhando a biblioteca pra fazer uma frase. Sei que eu deveria ser, mas não sou. Não hoje.

A Bertrand Brasil, do grupo Record, é quem publica a obra do Hemingway no Brasil. Pra comemorar, sei lá, os 60 anos do prêmio Nobel do autor, dado em 1954, eles resolveram dar uma mais do que necessária repaginada na coleção dele. E valeu a pena, porque tá lindíssima. Essa capa, que costumava ser horrorosa, cheia de degradê de cores, letras gigantescas e mal diagramadas, passou a ter um look mais gráfico, a assinatura do autor, cabeço com a paginação, um tamanho maior de página e papel pólen, o que já é 60% das melhorias do projeto. E, claro, manteve as belíssimas ilustrações de Charles Tunnicliffe e Raymond Sheppard que já figuravam na primeiríssima edição do texto em livro, em 1952 – essa é a 80ª edição no Brasil. Curti e aprovei. Vamos esperar as próximas!

Comentário Final: 124 páginas com papel pólen soft. ‘Tá aqui o bicho!’

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Apostas do Nobel:

premio nobelComo vocês devem saber, o prêmio Nobel de literatura sai hoje. Alguns leitores apostaram no Facebook, como é tradição fazermos todo ano por aqui, então vamos deixar as apostas registradas pra depois não falarem que tem marmelada. O vencedor leva o Homem Lento, do Coetzee. E reforço, para quem perdeu de apostar, que curtam a página do Livrada! no Facebook. Sim, tem que ter Facebook pra curtir a página, se não tem perde essas barbadas que aparecem vez ou outra.

Thaisa Meraki: Haruki Murakami

Priscilla Scurupa: Joyce Carol Oates

Pedro Víctor Santos: Philip Roth

Vitor Nascimento: Amos Óz

Guilherme Sobota: Assia Djebar

Rafael Pousa: Alice Munro

Fidel Zandoná Forato: Willian Trevor