Philip Roth – Patrimônio (Patrimony)

patrimonyFala sério, vou deixar todo mundo mal acostumado com tantos livros resenhados no mesmo mês, não é? Sei que é assim, mas regozijai-vos, irmãos, pois este colunista agora retomou o gosto pelas leituras desenfreadas e pelos comentários rápidos e rasteiros, “como quem lê a bordo de um bonde desgovernado”, como me descreveu certa vez o jornalista Pedro Rocha, de Fortaleza (um abraço, Pedro Rocha e Fortaleza!). Sendo assim, mais uma semana, mais um livro nesse blog que está a alguns passos de se tornar uma espécie de Wikipedia parcial da alta-literatura. Sim, porque diferentemente de quase todos os outros blogs literários do Brasil, aqui você não vai encontrar best-sellers (perdão pelo 50 Tons de Cinza), fast-pace, coisas que você encontra esquecidas em bolsões de aviões velhos da Gol. Aqui o bagulho é doido, jão, só figura aqui quem é bom de verdade ou, pelo menos, tarimbado no certame. Por isso as livrarias não gostam de mim, mas quem gosta de livro bão gosta do Livrada!, e é por isso que você deveria anunciar nesse espaço. Sério, me deem dinheiro, já tá na hora de eu começar a ficar rico com isso aqui.

E hoje, veja só, mais um Philip Roth. Confesso que não sei quantos livros do sujeito já figuraram por aqui, mas vou chutar que esse seja o terceiro ou quarto. Bom, Philip Roth tem aquela coisa, é uma espécie de Marcelo Camelo da literatura: as pessoas que gostam defendem com unhas e dentes, mas pouca gente sabe dizer com precisão o que há na literatura deste priáprico judeu neurótico que tanto os agrada. Eu tenho, entretanto, um palpite que serve bem a boa parte de seus fãs, crentes do tão desacreditado hype: Roth é um dos sujeitos de respeito da literatura mais fáceis de ser lido, principalmente se você pegar seus livros mais recentes, que ainda por cima são curtos. Não há a densidade de um Don DeLillo, não há a complexidade da trama de um Pynchon, não há o rebuscamento linguístico de um Cormac McCarthy, não há sequer a tradição literária resgatada de um Ian McEwan. É tudo leve, rápido e curto. É claro, há toda a formação de uma literatura formadora da imagem de um país a partir de um microcosmos, há a justaposição de invenção e memória, há a educação sentimental do macho pau mole, mas isso são coisas circunspectas a academia, que nada diz ao leitor comum, interessado somente em ler algo de qualidade e com algum conteúdo, coisas que abundam na literatura do nosso velhote. Temos que dar o crédito pela escolha precisa de palavras na voz inconfundível de sua extensa e qualitativamente constante obra. Todo mundo que pega um livro do Roth para ler já sabe o que esperar, não há nenhuma imprevisibilidade, e as pessoas bem gostam disso que eu sei.

Pegue este livro, Patrimônio, por exemplo. Apenas lendo a sinopse da orelha, em que descobrimos se tratar de uma história real sobre os últimos dias de seu velho pai, diagnosticado com um tremendo tumor no cérebro, já sabemos que 1- vai ser triste, com alguns momentos de alívio cômico 2- vai ter todo tipo de referência a judeus, comunidades judaicas, objetos judaicos e outras porcarias judaicas 3- vai ter longos momentos de solilóquio alucinado, com uma vida interior mais paranoica e arredia do que o necessário 4- vai ter discretas porém incisivas menções ao ufanista sentimento de ser americano, ser judeu-americano, ‘Merica, enfim. O resto fica por conta de cada história.

Philip RothPois bem, veja o que é o drama de seu pai, Herman Roth. Não, não é o tumor no cérebro, é ser filho de um canalha que começa a escrever um livro a partir do momento que descobre que você está com câncer. Porque é exatamente isso o que ele confessa no final (ops, spoilers!). Percebe-se que o sujeito começa a passar mais tempo com o pai para ter material para o livro – premiadíssimo, aliás, pelo Círculo de críticos americanos. Há uma cena emblemática no livro, de onde é tirada o título. O pai passa por um período longo de prisão de ventre após um procedimento médico, e sem querer caga o banheiro inteiro quando ele e o filho recebem visitas. Tem merda fora do vaso, na parede, na toalha, nas escovas de dente, a coisa não fica muito distante de uma cena escatológica do Trainspotting. O Philip Roth aparece lá, ajuda o pai a se limpar e a limpar o banheiro, e o pai envergonhadíssimo pede para que o filho não conte para ninguém o que aconteceu. “Não vou contar”, escreve o sujeito em um livro que vendeu milhares de cópias após a morte do velho. Filhão nota dez, esse, hein? Não sei se vocês sabem, mas muitos escritores têm filhos, e é frequente escrever livros sobre esses filhos, mas você vai ter dificuldade em achar um em que o escritor narra as vezes em que o filho cagou nas calças, mijou na cama ou fez qualquer coisa muito embaraçosa, e não é porque eles estão fugindo da verdade enquanto Roth está indo de encontro a uma crueza objetiva do cotidiano, mas porque existem diversas maneiras de prestar homenagem a pessoas em um livro, e manter segredo de acontecimentos em que é pedido sigilo é uma delas. Philip Roth oportunista e canalha? Nãããooo, diriam seus asseclas. Trata-se da realidade que serve de matéria-prima para um dos maiores ficcionistas vivos. Não é, nem de longe, um romance autodepreciativo, isso é óbvio, até porque o drama está na figura do pai. E repare no subtítulo: “Patrimony – A true story”. “True story”? Sério mesmo? Então tudo o que o senhor resolveu botar nesse livro é a mais pura e simples “truth”? Bom saber, senhor ficcionista premiado. Bom para o senhor.

Gosto muitíssimo do Philip Roth. Ora, e qual homem não gosta? E gostei de Patrimônio, porque mostra que a literatura justifica a filhadaputice no olhar desse cara. Mas, sinceramente, acho que ele ainda se dá melhor com as aventuras do velho priáprico xarope, seja ele qual for. E, senhor Herman Roth, sinto muito que seus últimos e sofridos dias tenham servido para colocar mais um desnecessário tijolinho na belíssima e longeva carreira do seu filho, mas como foi o senhor que o educou, por outro lado, o problema é seu.

Comentário Final: 190 páginas. Livroterapia no cérebro!

Yu Hua – Irmãos (Xiōng Dì兄弟)

Xiong diLivraded!, your personal high-literature website is back, oh yeah! Ainda estamos em janeiro, e qualquer resolução de ano novo que seja abandonada ainda em janeiro não é digna de nota, digo eu. Pois bem, prometi a mim mesmo dedicar mais miolos a encher esse recôndito culto da internet de abobrinhas criadas a partir de leituras cada vez menos esporádicas, e é isso que pretendo fazer nessa bela segunda-feira de sol (na verdade, como estou escrevendo isso no domingo, não sei se vai ter sol, mas espero que em algum lugar do mundo em que haja um leitor, isso seja verdade).

E hoje, por que não, um daqueles livros grandes o bastante para validar o apodo deste humilde blog que, por força das circunstâncias, mergulhou em um período de fast-pace mais relacionado às poucas páginas de seus títulos do que propriamente a fugacidade de seu conteúdo. Irmãos, de Yu Hua, é a bola da vez. Sim, meus amigos, esse chinês com vocação para escrever as piores desgraças infligidas a humanos por humanos é a minha grande descoberta literária do ano passado. Descobri sozinho, sem ler uma resenha, receber uma indicação ou saber qualquer coisa a seu respeito. Um desses livros que a gente pega por força da curiosidade, o Crônicas de um Vendedor de Sangue foi o primeiro, e agora já posso dizer que conheço toda a obra do sujeito publicada em português. Infelizmente, isso não é um título muito impressionante se levarmos em consideração que se tratam de apenas três livros traduzidos até o momento, mas há um agravante na pancada amortecida se considerarmos que Irmãos é gigantesco: nada menos do que 630 páginas. Qualquer livro com mais de 400 páginas para mim é considerado grande, e qualquer um com mais de 550 é considerado muito grande. E para você, o que é um livro grande para você?

Mas falemos do Irmãos. Bom, a tara do tal Yu Hua, que já comentamos por aqui antes no tristíssimo Viver, são os romances de formação. Os três livros publicados no Brasil tratam da vida de sujeitos fadados ao miserê desde o nascimento até a sepultura. Que ele consiga fazer isso em duzentas e tantas páginas como no livro supracitado é admirável, mas que ele consiga estender para um mega romance como esse é fodástico, principalmente se a gente se lembrar que o estilo dele é calcado majoritariamente em ação. Ação, ação, ação, com pouquíssimo tempo para analisar, cheirar as rosas, contemplar as belezas ou se lançar a qualquer lampejo poético entre atos. A imaginação dele é invejável, digo isso do alto de quem sempre desprezou justamente essa qualidade em romances fantasiosos como As Crônicas de Gelo e Fogo. Há uma diferença clara de quando se faz isso num mundo em que não se conhece de quando se faz isso num mundo em que se conhece demais. Enquanto o primeiro é brecha para glitches mal-feitos, o segundo é o claro objetivo de se descrever aquele universo por meio de seus personagens.

E é exatamente a isso que Irmãos se propõe. Os irmãos do título são Li Carequinha e Song Gang, na verdade meio irmãos. Enquanto o primeiro é filho da sofrida Li Lan, o segundo é filho do bonitão e basqueteiro Song Fanping, que se casam depois que seus respectivos cônjuges morrem – algo escandaloso para a época pré- Revolução Cultural, diga-se de passagem. Li Carequinha é safadão, gaiato e arrogante, enquanto Song Fanping é subserviente, nobre e correto em todos os sentidos. E basicamente é isso o que se precisa saber sobre os dois personagens principais da história. Isso porque Irmãos não é a história de Song Gang e Li Carequinha, mas a história da China, da Revolução Cultural à abertura econômica, e nada melhor para detalhar a saga de tão grandioso e complexo país quanto personagens voláteis com espíritos rígidos à sua própria forma. A China de Mao, que se escandaliza quando Li Carequinha é pego espiando bundas no banheiro público na pequena e ficcional cidade de Liu, é diferente da China de Jiang Zemin, que realiza as Olimpíadas do Hímen, ou Concurso Nacional da Beleza Virginal. A China das bugigangas falsificadas, dos acordos com o Japão, das novelas coreanas, da indústria das cirurgias plásticas, é um universo completamente diferente daquela outra, comunista, que massacrou pessoas em sessões de crítica e autocrítica. Basicamente é essa a passagem que o livro conta, e como as personalidades de Li Carequinha e Song Gang encontram seus lugares em cada uma delas.

Yu HuaNão há, aqui, um resumo que eu possa dar sem que incorra nos tais spoilers que resultam em uma enxurrada de hatemail que recebo, e nem que comporte a magnitude das ações que se desenrolam ao longo das centenas de páginas de Irmãos. O que podemos dizer é que, órfãos desde que Song Fanping é espancado até a morte na rodoviária da cidade, a primeira metade da vida dos irmãos é de uma tristeza sem fim, compartilhada com outros personagens recorrentes no livro e, tais como eles, desprovidos de qualquer profundidade. Tanto é que o nome deles já denota tudo o que podem ser na história: Zhang Alfaiate, Yu Boticão, o dentista, Wang Picolé, o sorveteiro, Tong Torquesão, o ferreiro, e Guan Tesourão, o amolador de tesouras. Somam-se a eles Su Mamãe e Su Mocinha, donas da lanchonete, e Lin Hong, a beldade do vilarejo a quem Li Carequinha espia, o que lhe garante pratos de macarrão especial em troca da descrição da bunda mais bonita da cidade, para fazer menção a uma infame banda da minha cidade. E, claro, uma trupe de personagens não estaria completa sem os dois panacas Liu Escritor e Zhao Poeta, os chamados Talentos Promissores da Cidade de Liu. Pronto, está montado o palco para a comédia da miséria humana.

Estranhamente, a segunda parte do livro revela uma veia cômica de Yu Hua pouco explorada em seus outros romances. A coisa fica realmente engraçada, embora, de certa forma, nunca deixe de ser triste. Piadas de humor negro com retardados mentais, aleijados, mudos, cegos e surdos, charlatões, falsas virgens, pensamentos tacanhos e outras ignorâncias de um país que se viu obrigado a espertar-se diante de um mundo que se abriu de uma hora para outra tornam o livro muito mais leve, coisa que não imaginaria depois de uma avalanches de socos na boca do estômago que esse livro te dá nas primeiras duzentas páginas. Pensando bem, poucos aguentariam uma dose dessas por mais 400 páginas…

Ainda sobre os apelidos, é engraçado pensar que apenas Song Gang e Song Fanping são os personagens sem apelidos em Irmãos. Eles e as mulheres Li Lan e Lin Hong. Acho que o china quis atestar a nobreza de seus dois personagens mais queridos, que não se dobram ante piadas e apelidos, apenas quando seus destinos mudam a coisa também muda de figura. Pensem nisso se um dia estiverem com esse livro em mãos, tal informação pode ser crucial para o entendimento dele, mas sobre esse assunto nem mais uma palavra sob o risco de jogar mais spoilers sobre essa casca dura de leitores impiedosos de internet.

No final, a gente vê que não é só porque um livro não é cheio das floreações poéticas, análises psicológicas e vida interior rica que ele é ruim. Pelo contrário, o fato de Irmãos ser recheado só de ações o aproxima da tradição teatral das grandes tragédias e dá substância ao material de que a vida é composta sem oferecer o substrato mastigadinho pro leitor preguiçosão. Certeza que esse é um dos livros mais legais que já li, e é difícil que alguém não sinta a mesma coisa depois de se envolver tão intensamente com uma longa história como essa. Tirem a prova e me digam: o que há para se não gostar nesse livro? Até a superficialidade dos personagens é adoravelmente cômica, o sujeito não deixa margem pra você criticar sem parecer um metidinho rancoroso que não come ninguém. Recomendo.

Por último, uma ressalva a essa edição da Companhia das Letras: por mais que o livro seja muito bonito e tudo mais, é um absurdo fazer uma edição que pesa um quilo com uma capa de papel cartão, que corre o risco de quebrar a qualquer hora com o peso das páginas seguradas. Cuidado com isso quando lê-lo.

Comentário final: 630 páginas. A saudosa fratura exposa e afundamento de crânio estão de volta, dessa vez para ficar!

Robert Walser – Jakob Von Gunten

jakob von guntenHurray! Livrada, ano III, edição número 157 (pra quem gosta de roubar, é um bom número!). Mais um ano, mais leitores, mais aporrinhação, mais haters, menos tempo, mais livros, menos amor, mais porrada, talvez um pouco mais de cultura em vossas vidas. Mais Livrada!, pois não.

Como vocês foram de fim de ano? Espero que bem, e andei sondando com os nossos queridos fãs no Facebook sobre suas metas de leitura e andei pensando em oficializar isso, fazer um Desafio Livrada! 2013 em que você faz o seu próprio desafio, colocar as fotos dos bravos que aqui se comprometeram para atestarem seu sucesso ou autodecepção no fim do ano, o que acham? Digam aí que a gente faz aqui.

Como resolução de ano novo, resolvi ser mais conciso e dar mais atenção ao Livrada!, quem sabe, até aumentar a periodicidade das postagens, vamos ver como isso se sai. Mas, como diz o povo lá no AA, um dia de cada vez. Por ora, vamos ao livro de hoje, que reservei para essa ocasião especial porque acho que as pessoas que vem ao Livrada! o fazem não só para ler esses três parágrafos de encheção de lingüiça que eu faço comumente, mas também para descobrir clássicos esquecidos, pouco comentados, ostracisados e relegados à patotinha beletrista que você vê tomando café na livraria mais charmosa da cidade sem nem ao mesmo se dignar a tomar banho para tal. E acho que Jakob Von Gunten, a obra mais famosa do suíço Robert Walser, é um exemplo que encaixa bem ao caso.

Veja, não é o primeiro suíço que a gente comenta aqui no Livrada, vocês podem se lembrar da resenha do Schertenleib aqui, mas o Walser é de outro período e de outra grandeza. De outro período porque é do começo do século 20, enquanto o outro é do final, e de outra grandeza porque influenciou gente do naipe de Franz Kafka e Robert Musil (não tinha uma dessas marcas de granola que era Musil?), enquanto o nosso querido Hansjörg Schertenleib influenciou gente do naipe dos arrivistas suíços que decidem escrever um livro depois de encarar a trigésima fila de autógrafos de suas vidas, e acho que isso se deve ao fato dele ser muito contemporâneo, modernoso e ter um nome complicado pra caramba, desses que você precisa sempre soletrar quando faz ficha na loja de informática. Robert Walser também é legal porque ficou maluco, foi pro hospício, o verdadeiro lar dos Vida Loka, e morreu na neve misteriosamente, e se tem uma coisa que a comunidade literária gosta hoje em dia é de escritores malucos que morrem misteriosamente – por si só já o transformaria num hype.

Mas não, Robert Walser não é só um rostinho bonito jogado na neve, Robert Walser é conteúdo. Seu romancinho (inho porque é pequenininho), Jakob Von Gunten conta a história de um personagem que tem o mesmo nome do título (mistérios!) e que é um rapaz abastado que, contudo, rejeita o berço para ingressar numa escola para criados, o infame Instituto Benjamenta, regido pelo senhor Benjamenta e sua irmã Benjamentinha. Longe de ser uma instituição séria e tradicional, a coisa parece mais um alojamento coletivo em que as pessoas aprendem a ser submissos e subservientes aos dois diretores do instituto, mediante uma taxa de inscrição. Aí está a primeira grande sacada do Walser. Ao invés de fazer um Memórias Póstumas de Brás Cubas, ou seja, do ponto de vista do malandro que arrumou um jeito de ter mordomos de graça – que ainda pagam para ele! – o sujeito resolveu fazer isso do ponto de vista da pessoa que mais tinha a perder com a empreitada: o sujeito rico que não sabe nada sobre o mundo real. Como o livro é narrado todo em primeira pessoa como um diário, ou seja, o fluxo temporal narrado é o mesmo em que a história se passa, a história dá voz ao ser inferior, que não deixa de ter consciência por causa disso. Vejam vocês que essa é a ideia diametralmente oposta a que o Kafka pensou naquele conto Um Relatório Para a Academia. Naquele, o macaco capturado da selva resolve virar humano porque sagazmente percebe que esse é o único jeito de viver num mundo civilizado, enquanto o Von Gunten em questão faz o oposto: resolve deixar de ser humano para sobreviver como máquina num mundo de ordens e disciplina.

robert walserOra, que transformações o mundo passava naquela época. O fim dos homens vitorianos, o aumento da chamada classe média, escolas abarrotadas de alunos… era preciso colocar ordem no barraco e os caras oldschool sentiram que estavam perdendo sua individualidade para um mundo cada vez mais formatado por padrões e perfis (coisa que os félas que te mandam propaganda pelo correio sabem muito bem). Esse era o pesadelo do burguesinho que se achava sozinho no mundo livre, e essa é a saída dramática do passivo-agressivo que acha que vai fazer falta em um mundo indiferente. Veja só que coisa engraçada, o Villa-Matas fala do Robert Walser no Doutor Pasavento, uma história sobre o ato de desaparecer. O protagonista do livro desaparece e fala de Walser, que escrevia cada vez com uma letrinha menor para “se eclipsar” na escrita, mas não é menos verdade que Jakob Von Gunten também tem esse desejo de desaparecer no meio da ordem.

Mas, obviamente, essa não é uma história contada por uma pessoa comum. Robert Walser terminou a vida no hospício, se vocês bem se lembram, e não é à toa que o romance vai ficando cada vez mais maluco e contraditório. Não há uma coerência clara no discurso de Von Gunten porque o sujeito que o criou tinha o melão estragado por chocolates e relógios suíços. De maneira que não sobram significados para um livro que parece mais um teste de Rorschach, no qual você enxerga qualquer coisa que você quiser. Não há frase sem sua antítese dita pela mesma pessoa mais para frente, não há uma moral clara e não há um movimento que se repete, dando a entender um caminho a ser seguido. O que há em Jakob Von Gunten é isso: uma intenção, um desconforto com o mundo e uma solução perturbadora para os problemas.

Agora, uma coisa que seria mais importante ainda para entender esse livro é ter outras obras do sujeito traduzidas no Brasil. A Companhia das Letras só lançou essa por enquanto e vamos ter que ficar na vontade de entender um pouco mais sobre esse caudilho se não quisermos aprender alemão pra ler no original. Sendo assim, fica a dica pra todo mundo. Mais livros e alemão!

Comentário final: 150 páginas em papel pólen soft. Pra fazer o cabôco cair de cara na neve!