Kawabata para as massas! Kawabata, Kawabata, Kawabata! É o puro suco da literatura japonesa. Referências a Rodney-Dy à parte, vamos falar hoje mais uma vez desse grande mestre da literatura japonesa que raramente deixa a desejar no que se propõe a fazer. A Gangue Escarlate de Asakusa foi escrito entre 1929 e 1930 – quando o grande mestre tinha apenas 30 anos e estava empenhado em ser um nome moderno para a literatura do Japão. Se não me engano, até então ele só havia publicado A Dançarina de Izu, que era uma narrativa muito modesta, de modo que esse livro é o seu primeiro romance longo.
Pode ser impressão minha ou vontade inconsciente do autor, mas o fato é que Kawabata estava impregnado daquele espírito ocidental do flanêur, da peregrinação urbana de descoberta e estranhamento, descoberta e estranhamento. Pra falar a verdade, depois que descobri que A Gangue Escarlate de Asakusa tinha sido escrito mais ou menos na mesma época da Dançarina de Izu, fez sentido a minha impressão de achar o tom dos dois muito parecidos. Mas volto a isso mais tarde, vou falar um pouco sobre a história do romance para que vocês não fiquem perdidos.
Asakusa era um bairro de Tóquio, mas não qualquer bairro. Era o bairro da boemia, era a Lapa de Tóquio, o Largo da Ordem de Tóquio, a Boca do Lixo de Tóquio, o Kreuzberg de Tóquio, a Montmartre de Tóquio, a… enfim, deu pra entender. Era o lugar sujo com as prostitutas e os buracos de jazz e os freak shows e tudo mais. De certa maneira, o lugar representava a precoce decadência ocidental em um lugar há não muito tempo ocidentalizado como o Japão. Vê que os sujeitos assimilam tudo muito rápido, a começar pela nossa decadência. É lá que o autor-narrador (o próprio Kawabata, imagino), perambula com uma amiga, Yumiko enquanto descobre o lugar, seus atrativos e a tal Gangue Escarlate, também chamada de Companhia Escarlate. Basicamente, uma gangue de pequenos trambiqueiros, composta por jovens adultos e adolescentes imberbes que já saíram do seio da família e foram colocados na teta da maldade. Rodney Dy e Hermes e Renato no mesmo post sobre um prêmio Nobel de literatura, hein? Só aqui no Livrada! você encontra isso. Mas dizia eu, a tal gangue exerce uma espécie de fascínio temerário no narrador, que tenta conhecer um de seus membros enquanto passeia e descobre o bairro com seus olhos de flanêur. É lá que ele conhece uma mocinha de cabeça raspada que sonha em encontrar o homem pela qual sua irmã se apaixonou profundamente, assiste a um espetáculo de um homem que come através de uma boca aberta em sua barriga e assiste cenas cotidianas meio bizarras, como um homem que come comida de carpa e um show de pequenas prostitutas.
Neste livro, que a pessoa que fez a orelha (provavelmente a tradutora, a grandessíssima professora Meiko Shimon) descreve como um exemplo da progressão da arte de Kawabata rumo ao desenvolvimento total de sua corrente neo-sensorialista Shinkankaku-ha, por meio de experimentações com a linguagem e o uso MUITO estranho de expressões e analogias nunca antes usadas, como por exemplo “estava andando e de repente parei como se alguém tivesse empurrado um buquê de flores vermelhas contra o meu peito”. Mas para mim, o maior espanto com essa leitura de Kawabata foi ver a completa ausência de hierarquia entre narração e descrição para o autor. O cenário não serve à narrativa nem à narrativa serve ao cenário exclusivamente, mas ora uma se torna mais importante que a outra, mas nunca a ponto de cidade ou história serem fixados como a linha condutora do romance. Isso não só deve ser difícil pra caramba de fazer como arriscaria dizer que a única forma de fazer isso com a perfeição de Kawabata é uma completa despreocupação sobre a própria força narrativa aliada a uma tradição descritiva milenar da literatura japonesa, digna de uma Sei Shônagon. E é exatamente por isso que achei o livro parecido com a Dançarina de Izu. Em ambos também, Kawabata traz os olhos ocidentais que se espantam com as cenas japonesas mais estranhas, e também com as mais clássicas. É um olhar completamente inocente e desprovido de preconceitos ou expectativas. Isso traz uma sensação para o leitor de estar descobrindo junto com ele as características de Asakusa, e, se lido com atenção, o livro pode trazer um mapa mental perfeito do bairro sem nunca ter ido lá. E essa não é a graça da literatura, afinal de contas?
A Gangue Escarlate de Asakusa é o mais novo lançamento de Kawabata pela Estação Liberdade, uma editora muito simpática e competente que, por alguma razão que me foge completamente a lógica, não está alçada ainda ao panteão das grandes casas editoriais brasileiras pela crítica mainstream, que solenemente a ignora. O que é uma pena, pois não só a editora tem um acervo caprichado de grandes autores, como também tem edições bonitas e bem trabalhadas. A própria tradução desse livro, que sempre é comentada, é exemplo disso. Tudo bem que ela podia ser mais comentada, porque muita coisa sobre o Japão é subentendido como de conhecimento do leitor, o que não é verdade na grande maioria das vezes, mas acho que isso é reflexo dessa falta de interesse de nós, ocidentais de olhos redondos, pelas belezas que se escondem na boa e velha literatura japa. As páginas brancas offset estão sendo substituídas aos poucos pelo confiável pólen soft em alguns livros e a fonte Gatineau dá um charme às páginas internas, completas com cabeço superior e ilustrações originais de Ota Saburo (que fez as ilustrações para a primeira edição do livro) no começo e no final das páginas. Um pitéu.
Comentário final: 216 páginas offset com fonte Gatineau. Sayonara, compadres!