Pedro Bandeira – A Droga da Obediência (e um pouco sobre A Droga da Amizade)

Antes de começar, só uma informação inútil que sei que não faz a menor diferença para vocês, caros leitores, mas não deixa de ser um marco: cheguei, no documento de word em que escrevo esses textos mal bolados, à página de número 300. Isso teria acontecido muito antes se eu não tivesse escrito em viagem ou se começasse uma resenha nova a partir de uma página nova, mas como é tudo colado um no outro e só escrevo nesse arquivo quando estou em casa, fica por isso mesmo e celebramos agora a efeméride efêmera de 300 páginas de literary bullshit yeah!

Pedro Bandeira foi o meu escolhido para o Desafio Livrada! 2015 na categoria de livro Infanto-Juvenil (e como vão vossos desafios, falando nisso?). Já havia lido ele anos atrás, e o reli meses atrás, mas só agora estou escrevendo sobre ele, para comentar um pouco sobre um tempo de literatura infanto-juvenil que não volta mais (e não sem razão). E atenção: tem spoiler. Mas se você se ofende com spoiler de livro infanto-juvenil, talvez não esteja tão preparado para discutir literatura aqui com a gente, os caras legais.

Para quem não conhece a história, o livro é a primeira aventura da turma autointitulada Os Karas, “o avesso dos coroas, e o contrário dos caretas”, como segue o bordão (voltaremos a ele mais tarde, guarde essa informação). Os Karas são uma turma de estudantes de um colégio de classe alta chamado não por acaso de Elite. Miguel, Cadu, Crânio e Magrí, posteriormente anexando o menorzinho apelidado de Chumbinho se envolvem em uma conspiração para dominar o mundo quando descobrem que crianças de colégios chiques estão sendo raptadas, e para fins maléficos: testes com uma tal Droga da Obediência, um remédio capaz de eliminar o livre arbítrio da mente humana e transformar qualquer pessoa em um robô de carne e osso, sempre pronto para atender ordens e nunca capaz de discutir qualquer atitude. Dominação mundial, o pinky e o cérebro o cérebro e o pinky, vocês já conhecem as premissas para esse tipo de coisa. Por meio de deduções lógicas, códigos secretos e disfarces, e um pouco de ajuda da polícia, os amigos eventualmente conseguem desmantelar um esquema sinistro desses. Louco, né?

Pois bem, um pouco sobre o background da Droga da Obediência: o autor conta em diversos debates e entrevistas que teve a ideia para o livro a partir de uma enxaqueca infernal que não o deixava a menos que um remédio específico fosse tomado. Quando o laboratório fabricante anunciou a retirada do produto do mercado, Bandeira se revoltou e se viu, pela primeira vez, à mercê de farmacêuticos, de quem seu bem estar físico dependia bem mais do que gostaria. A partir disso, criou algo que remotamente dialoga com a questão da censura e do medo disfarçado de paz durante o período da ditadura militar ( o livro foi lançado em seus últimos anos). A partir daí, A Droga da Obediência vem alimentando um circulo vicioso de adoção escolar. A coisa funciona assim: as crianças que leram a Droga da Obediência na época em que foi lançado se tornaram professores de ensino infantil e, quando chega a hora de indicar algum livro infanto-juvenil pra molecada começar a gostar de ler, bate a nostalgia e esse livro aparece. Algumas crianças dessa segunda geração crescem para também se tornarem professores do ensino fundamental, e o ciclo se repete. De maneira que Pedro Bandeira hoje é um best-seller de adoção escolar e praticamente um anônimo nas livrarias, e resiste aos anos alheio ao boom de literatura infanto-juvenil fantasiosa, jovem-adulta ou o que quer que você queira chamar essas porcarias com capas super produzidas que abarrotam os expositores das megastores Brasil afora. De maneira que pode-se dizer sem muito medo de errar que o sucesso de A Droga da Obediência tem méritos muito mais sentimentais do que literários.

650x375_pedro-bandeira-escritor_1442936Convenhamos que, ao mesmo tempo que existe um processo de infantilização geral da juventude em andamento, a inocência é muito pouca, e uma história de aventuras desse tipo, tão simples e tão linear, pode ser muito pouco atrativo para um adolescente hoje que lê três ou quatro livros de 300 páginas (de pura bosta, mas vá lá) por semana. Temos aqui falas heroicas, recursos narrativos manjadíssimos de Cliff hanger e coisas do tipo, e, ulteriormente, uma inocência comovente, reforçada particularmente no último livro da série d’Os Karas, a Droga da Amizade. Escrito 14 anos depois da última história da série, Bandeira mostra Os Karas já adultos e fazendo coisas absurdamente irreais, como ganhando prêmios Nobel, curando epidemias e a fome na África, ganhando Oscars e, revelação máxima do final do livro, descobrimos que Miguel se tornou presidente do Brasil, o que é uma coisa que faz completo sentido para leitores norte-americanos, mas não conheço nenhuma crianças que aspire o cargo executivo hoje em dia, muito menos atribuindo significado tão grandioso para a faixa presidencial em um sistema de coalizão que já deixa claro quem é que manda nessa bagaça e qualquer criança que consegue ler um romance pode muito bem saber disso. Presidente do Brasil, ora essa…

Não é de estranhar que o slogan d’Os Karas tenha um significado arcaico impossível de ser resgatado hoje com os mesmos valores. Primeiro porque ser “o cara” já não é muito mérito em épocas de feminismos e afins, segundo porque ser o avesso dos coroas e o contrário dos caretas pode sugerir a imagem de uma praia com a natureza fornecendo subsídios para a construção de arte natural a ser comercializada entre um baseado e outro. A frase pode ser tão pervertida pelo sentido que as palavras têm hoje em dia que não há como não questionar a inocência nos livros do Pedro Bandeira. Aí alguma professorinha nostálgica de sua época de jovem leitora vai dizer que é justamente a inocência de nossas criancinhas que precisa ser resgatada no Brasil. Não, dona, a senhora está errada e se alguém começar um movimento de resgatar a inocência pode ficar com o pé atrás que existe um significado oculto de retrocesso nesse resgate de inocência a qualquer custo. O mais irônico é que a mensagem que a Droga da Obediência passa é que inocência e obediência não são valores a serem preservados, pelo contrário: “só a desobediência é capaz de transformar o mundo. A obediência só perpetua os mesmos erros de sempre”, diz em certa altura o protagonista do livro, mas estou parafraseando.

O que ficou para mim de lição da releitura dos livros do Pedro Bandeira é essa ideia de que clássicos são clássicos porque nunca terminaram de dizer algo sobre um assunto, e esse não é o caso aqui. A Droga da Obediência é um clássico porque o sistema atual de ensino assim o quer, da mesma maneira como obras literárias clássicas de valores altamente discutíveis (mas não entremos nesse mérito por agora) perpetuam leituras chatérrimas e fazem um desserviço à leitura em geral. Minha mãe, que é professora, deu de presente um A Droga da Obediência para um priminho meu, pra ver se ele começava a gostar de ler. Ele nem se ligou. Mas por outro lado, demos um Lemony Snicket e ele tampouco se importou, então não esperem conclusões de nada disso. O que queria dizer é que existem coisas que fazem sentido durante um certo período de tempo e que são alçadas a condição de clássico por fatores outros que não o mérito literário da coisa. Por outro lado, o que as professorinhas fazem com Pedro Bandeira, muitos críticos afetuosos fazem com outras obras sem quem conteste, mas alguns são mais referendados do que outros e a coisa fica por isso mesmo. Mais uma vez, deixo a questão no ar.download

A Droga da Obediência já foi publicada em trocentas edições, mas a edição que eu tenho é da editora Moderna, que fez uma capa que, me disseram, já foi chupada de Marvel Comics – a História Secreta, publicada pela Leya, e vou até deixar a foto aqui pra vocês tirarem suas próprias conclusões. Nada de muito notável para adicionar sobre o projeto gráfico, exceto que ele mantém ilustrações muito antigas feitas a lápis que até servem para ilustrar eventos dos capítulos sem, contudo, revelar os rostos dos personagens. Acho que isso tem a ver com o fato de que Pedro Bandeira jamais determinou a idade dos Karas, tentando deixar a obra a mais aberta possível para a identificação com o leitor. Acho que é isso, já falei demais, falem vocês aí.

Comentário final: 150 páginas de inocência perdida. Yeah!

Vídeo: Entrevista com Diego Vecchio

Estava na Flip e me foi oferecido uma entrevista com o convidado argentino Diego Vecchio, que publicou o livro “Micróbios” pela Cosacnaify, uma proposta bem interessante e um livro bem resolvido depois de um começo meio decepcionante.

Como expliquei na descrição do vídeo, ia ter legenda, mas acabou que não teve porque não tô mais com tanto tempo livre assim, e essa máquina não para. Mas ele fala direitinho e devagar, não acho que alguém vá ter problema para entender o castelhano do cara.

Clica na imagem aí!

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