Vídeo: Foe, de J.M. Coetzee

E aí, party people, estão curtindo essa vibe inédita e raríssima do Livrada! de dois vídeos por semana? É, enquanto sai a cobertura da Flip, vou soltando esses que gravamos por lá. Esse é de um livro antigo do Coetzee que só foi lançado agora pela Companhia das Letras. Espero que gostem.

Clica. Na. Imagem.

Foe

Vídeo: O Labirinto da Solidão, de Octávio Paz

Olha, a comunidade acadêmica e os críticos literários em geral vão ter que me perdoar por abordar de maneira tão rasa e leve um livro do Octávio Paz, mas poxa, precisava levar esse sucesso de crítica para a tela grande (ou pequena, dependendo de onde você assiste o Youtube). Eis aí algumas palavras sobre O Labirinto da Solidão.

Ah sim, tem que clicar na imagem.

octaviopaz.Still001

Vídeo: Dora Bruder, de Patrick Modiano

Prêmio Nobel é sempre bom de conhecer, né? Pois é, só que já passou meio ano e as pessoas ainda não sabem muita coisa sobre o Patrick Modiano e as chances dele entrar pra lista dos Nobéis esquecidos (pelo menos por nós) é muito grande. De qualquer forma, pra não deixar passar, aqui vai um vídeo curtinho pra comentar um livro curtinho que ele escreveu.

dora bruder

Clica no Cauê Moura, abestado.

Ernest Hemingway – Adeus às Armas (A Farewell to Arms)

farewell to armsSei que todo mundo vibra de emoção por aqui quando eu começo a falar de um clássico moderno da literatura. Quer dizer, saber, eu não sei. Eu suponho, já que geralmente são os comentários mais alardeados sobre o assunto, e não vejo ninguém vibrando por livros mais desconhecidos ou clássicos clássicos, desses que na grafia do português original é cheio de acento onde não deve. Bom, clássicos modernos são esses livros que todo mundo gosta de ler mas não necessariamente são tão bons assim. Alguns gostam mais e enchem de porrada quem fala mal e outros gostam menos e passam a vida esgueirando-se pelos cantos para não ser apontado e escurraçado na rua como “o sujeito que falou mal de Camus” ou “aquele cara que não curte Cortázar” e por aí vai. Fato é que é muito difícil identificar um clássico moderno como tal porque não há outro parâmetro a não ser o gosto popular e o quanto ele discutido em sala de aula por crianças que não têm idade para lê-lo. Mas, acredito eu, que Hemingway seja um desses autores clássicos modernos que alimentam a alma de pessoas intelectualmente díspares e frequentemente pelas mesmas razões.

Senão vejamos: Adeus às Armas foi publicado em 1929 e, salvo engano, foi um dos primeiros livros ambientados na Primeira Guerra Mundial, o que já mostra um delay grande da literatura em relação a outras artes representativas, porque o que surgiu de filme sobre o onze de setembro uns dois ou três anos depois não tá no gibi. Mas onde é que eu estava? Ah sim. Bom, Hemingway, no fim da Primeira Guerra, era um jovem mancebo de 17 anos, mas isso não o impediu de se alistar como motorista de ambulância na Itália. Coincidentemente, olha só, o protagonista do livro também é um americano motorista de ambulância na Itália a serviço dos italianos. Frederic Henry é um cara jovem e inacreditavelmente neutro para um protagonista. Não dá pra saber porcaria nenhuma sobre a personalidade dele pelas atitudes que ele tem, e isso não necessariamente quer dizer que ele seja imprevisível ou apático, apenas que o autor não teve muita preocupação com isso. Os personagens do Hemingway, de uma maneira geral, são muito rasos e levados pelos acontecimentos. Quase sempre têm um único traço de personalidade que é repetido ao extremo, mas não dá pra culpar o cara por isso porque primeiro que construir um bom personagem é uma tarefa tão difícil que tem escritor por aí que fica famoso só por causa disso sendo que a história em si é uma porcaria, e segundo que ele se interessa mesmo é em contar história.

Ernest HemingwayE essa história, que se passa na Primeira Guerra Mundial e tem como protagonista um motorista de ambulância americano a serviço do exército italiano chamado Frederic Henry, fala de um caso de amor entre esse cara em específico e uma enfermeira escocesa louca de pedra chamada Catherine Barkley depois que ele é ferido em campo de batalha. É basicamente isso, não tem muito pra contar da história além desse resumo básico. O que podemos dizer é que eles tentam viver juntos mas esse é um mundo enlouquecido pela guerra em que as pessoas fuzilam traidores que recuam e todos estão obcecados pelo poder e a Itália tá numa pior nessa guerra aí e precisando desesperadamente de ajuda e pra eles só resta a fuga para Suíça. E aí nesse parágrafo já coloquei mais spoiler do que vocês gostariam e não avisei que tem spoiler porque senão vocês ficam mal acostumados. Cresçam.

Bom, Adeus às Armas tem aquela coisa hemingwayniana de macho que também chora, macho que só quer ser feliz mas o mundo é mais macho que ele, macho machucado, macho derrotado porque não foi tão macho, macho que não tem medo de nada a não ser de outros machos mais machos e etc. Mas também é uma história singela e bonita, escrita naquele naturalismo maroto, sem qualquer retoque na narrativa, um troço meio jornalísitico que salta aos olhos e agrada a maioria das pessoas porque é muito fácil vencer 400 páginas assim. Eu mesmo que não ando dos leitores mais ágeis do mundo, li em uns três dias. Acho massa inclusive que o tom do livro é muito leve e meio que se antecipa à censura dos filmes americanos, já que o autor não menciona o sexo entre os personagens, mas apenas sugere com eufemismos e imediatamente corta pra cena seguinte. As cenas de morte, entretanto, são descritas muito bem. É, parece mesmo cinema americano. Inacreditável como os caras não têm problema nenhum com violência, mas não podem ver uma mulher pelada que saem gritando em nome da família e do bom comportamento. Mas isso é assunto pra outra hora.

A edição da Bertrand Brasil tá muito bonita, e finalmente faz jus ao autor. Fonte grande, capas gráficas, papel jornal amarelado e bonito, cabeço e paginação juntas no topo da página e a assinatura do mestre no lugar do nome dele. Achei bem melhor do que a coleção antiga, e parece que tá saindo mais. Vamos ficar de olho.

Comentário final: 402 páginas em papel jornal (ou tipo papel jornal, sei lá). Macho não vacila, macho arrasa, macho não leva desaforo pra casa.

Orhan Pamuk – Neve (Kar)

orhan pamukBom dia, amiguinhos, já estou aqui, emendando um prêmio Nobel no outro neste fim de ano maluco de black fridays e adjacentes. O livro de hoje é um calhamaço e, sinto dizer, é o último deste ano resenhado aqui. Não fiquem tristes, porque a razão do recesso não é outra senão a nobre construção de um banco de resenhas que me faz muita falta. É um pouco frustrante para um sujeito que escreve periodicamente sobre livros ter de escolher suas leituras pelo tempo que elas vão consumir, para termos material toda semana, e qualquer um que entenda um mínimo de literatura sabe que isso não pode e não deve ser critério para ninguém, muito menos para um cara como eu, que procuro boas leituras sempre. Ter um banco de resenhas vai me colocar um pouco à frente das minhas postagens do ano que vem (assim espero) e isso vai me possibilitar pegar um livraço vez ou outra sem medo de gastar mais de duas semanas na leitura dele. De modo que entendam e não fiquem tristes por eu não ser uma máquina de ler livros. Tenho meu trabalho, minhas bandas, minha musculação, minhas propagandas de cueca para fazer, então achar tempo para ler um romance aqui fica muito difícil. Eu consigo, mas não com a qualidade que gostaria. Por último, ninguém tem saco pra ficar lendo resenha no fim do ano, já que todo mundo só está pensando em alugar casa na praia, comprar carrinho pras crianças e fazer piada de fim de ano com suas famílias pelancudas. De modo que, no fim das contas, não vai fazer muita diferença mesmo.

Mas vamos falar de coisa boa, vamos falar de Neve. Neve é talvez o romance mais popular do turco Orhan Pamuk, e vocês logo vão sacar o porquê. Pamuk tem essa rara habilidade nos escritores de hoje de prender a atenção do leitor com um livro de qualidade, que não gire somente em torno de ação ou intriga e suspese, embora seja muito verdade que ele comumente se aproprie de elementos policialescos para jogar a primeira isca. Resumir o romance a isso — uma trama policial –, entretanto, é um pecado digno de fazer você queimar no mármore do inferno.

A verdade é que Pamuk escreve sobre as complexidades de ser turco. A dicotomia de ocidente e oriente, de religião e estado, de fundamentalismo e secularismo e o grande dilema — para onde vai a Turquia no mundo globalizado — não estão muito longe da gente, mas vamos por um momento parar de ser paternalista e tentar fazer vocês gostarem de algo só porque a coisa se aproxima da sua realidade. Não! Experimente também o exotismo, experimente se preocupar com questões que não têm nada a ver com você de vez em quando, experimente a compaixão distante. Você vai ver, vai ser legal.

Em Neve, essas questões estão mais presentes do que nunca. O mocinho é Ka, um poeta quase quarentão que, após morar um tempo na Alemanha, vai à diminuta, pobre e esquecida cidade de Kars investigar o suicídio de garotas novinhas que foram obrigadas a descobrir a cabeça para entrar na escola em nome do Estado secular. O suicídio é o pecado-mor do islã, embora você tenda a não acreditar nisso dada a quantidade de homem-bomba que tem por aí, mas acredite, é verdade. Pois bem, o manto, que representa o islã político, representa também a visão descompassada do país com os movimentos sociais que estouram pelo mundo, mas o suicídio continua misterioso justamente por ser um pecado que garotas tão religiosas a ponto de morrer por vergonha do secularismo não cometeriam.

Mas Kars também é a cidade de Ipek, sua paixão de escola, com quem pretende casar. Rá, tem que ter romance, nem só de política um livrão desse sobrevive, não é verdade? Mas é aí que entra a genialidade de Pamuk, que pega o papel passivo da mulher que só faz romance enquanto os homens fazem política e inverte a coisa: os homens são uns bobos apaixonados e as mulheres é que são as políticas por trás de todos os atos que antecedem um golpe de Estado que toma conta de Kars.

orhan pamukNo meio disso tudo, Kars cria poemas como há muito não criava, e tudo se cria a partir da neve, uma constante na narrativa que a cada hora representa uma coisa, mas que, ao fim e ao cabo, é a expressão máxima da existência de Deus tanto em sua perfeição quanto em sua paz serena que acalma e perturba ao mesmo tempo. A neve desperta poemas que parecem surgidos de outro plano, transforma ateus em religiosos, traz o isolamento e pontua a narrativa com a lembrança constante de que Neve é um romance sobre uma vida que busca sentido após quase 40 anos de existência.

Personagens memoráveis nesse livro, minha gente. Sendar bei, o jornalista que publica notícias que ainda vão acontecer e que não acredita no que escreve; Azul, o terrorista clandestino que tem verdadeiro amor por sua própria imagem de terrorista; e Fazil (i sem pingo aqui, não sei qual é o significado,mas acho maneiro), o estudante que às vezes acredita demais no etéreo, e às vezes não acredita em absolutamente nada.  Todos eles, de alguma forma, representam a personalidade esquizofrênica da Turquia, já comentada antes. O resto é história, e a história deve ser lida e não contada num blog mequetrefe que nem funciona direito em dezembro.

Ah, esqueci de dizer uma coisa. O narrador da história também é um escritor chamado Orhan, que também é escritor. É engraçado como o Orhan da história se mistura ao escritor Orhan Pamuk, que às vezes não sabe do que não viu e às vezes é onisciente o bastante para saber os detalhes mais íntimos de momentos insignificante da vida de Kars, de quem é amigo. Um bom joguinho é tentar descobrir qual Orhan narra qual capítulo, mas isso é só pros nerdões de plantão.

O livro é um livrão, em formato grande mesmo, da Companhia das Letras. Tem o selinho do Nobel que encarece tudo e uma foto maravilhosa na capa. Comprei esse pra digníssima num sebo em que entramos para escapar da chuva e ele estava praticamente intacto pela bagatela de 20 dilmas, mas ainda tem bastante desses nas lojas por aí, então não se preocupem. Fonte Electra e papel pólen pra dar aquela suavizada no material. Resumindo, o tipo de livro que é difícil largar.

Relaxa que ainda boto mais um post aqui de fim de ano falando de mais coisas. Semana que vem ainda tem mais!

Comentário final: 482 páginas de puro calibre turco. Maktub.

Yasunari Kawabata – A Gangue Escarlate de Asakusa (Asakusa Kurenaidan 浅草紅團)

Asakusa KurenaidanKawabata para as massas! Kawabata, Kawabata, Kawabata! É o puro suco da literatura japonesa. Referências a Rodney-Dy à parte, vamos falar hoje mais uma vez desse grande mestre da literatura japonesa que raramente deixa a desejar no que se propõe a fazer. A Gangue Escarlate de Asakusa foi escrito entre 1929 e 1930 – quando o grande mestre tinha apenas 30 anos e estava empenhado em ser um nome moderno para a literatura do Japão. Se não me engano, até então ele só havia publicado A Dançarina de Izu, que era uma narrativa muito modesta, de modo que esse livro é o seu primeiro romance longo.

Pode ser impressão minha ou vontade inconsciente do autor, mas o fato é que Kawabata estava impregnado daquele espírito ocidental do flanêur, da peregrinação urbana de descoberta e estranhamento, descoberta e estranhamento. Pra falar a verdade, depois que descobri que A Gangue Escarlate de Asakusa tinha sido escrito mais ou menos na mesma época da Dançarina de Izu, fez sentido a minha impressão de achar o tom dos dois muito parecidos. Mas volto a isso mais tarde, vou falar um pouco sobre a história do romance para que vocês não fiquem perdidos.

Asakusa era um bairro de Tóquio, mas não qualquer bairro. Era o bairro da boemia, era a Lapa de Tóquio, o Largo da Ordem de Tóquio, a Boca do Lixo de Tóquio, o Kreuzberg de Tóquio, a Montmartre de Tóquio, a… enfim, deu pra entender. Era o lugar sujo com as prostitutas e os buracos de jazz e os freak shows e tudo mais. De certa maneira, o lugar representava a precoce decadência ocidental em um lugar há não muito tempo ocidentalizado como o Japão. Vê que os sujeitos assimilam tudo muito rápido, a começar pela nossa decadência. É lá que o autor-narrador (o próprio Kawabata, imagino), perambula com uma amiga, Yumiko enquanto descobre o lugar, seus atrativos e a tal Gangue Escarlate, também chamada de Companhia Escarlate. Basicamente, uma gangue de pequenos trambiqueiros, composta por jovens adultos e adolescentes imberbes que já saíram do seio da família e foram colocados na teta da maldade. Rodney Dy e Hermes e Renato no mesmo post sobre um prêmio Nobel de literatura, hein? Só aqui no Livrada! você encontra isso. Mas dizia eu, a tal gangue exerce uma espécie de fascínio temerário no narrador, que tenta conhecer um de seus membros enquanto passeia e descobre o bairro com seus olhos de flanêur. É lá que ele conhece uma mocinha de cabeça raspada que sonha em encontrar o homem pela qual sua irmã se apaixonou profundamente, assiste a um espetáculo de um homem que come através de uma boca aberta em sua barriga e assiste cenas cotidianas meio bizarras, como um homem que come comida de carpa e um show de pequenas prostitutas.

kawabata asakusaNeste livro, que a pessoa que fez a orelha (provavelmente a tradutora, a grandessíssima professora Meiko Shimon) descreve como um exemplo da progressão da arte de Kawabata rumo ao desenvolvimento total de sua corrente neo-sensorialista Shinkankaku-ha, por meio de experimentações com a linguagem e o uso MUITO estranho de expressões e analogias nunca antes usadas, como por exemplo “estava andando e de repente parei como se alguém tivesse empurrado um buquê de flores vermelhas contra o meu peito”.  Mas para mim, o maior espanto com essa leitura de Kawabata foi ver a completa ausência de hierarquia entre narração e descrição para o autor. O cenário não serve à narrativa nem à narrativa serve ao cenário exclusivamente, mas ora uma se torna mais importante que a outra, mas nunca a ponto de cidade ou história serem fixados como a linha condutora do romance. Isso não só deve ser difícil pra caramba de fazer como arriscaria dizer que a única forma de fazer isso com a perfeição de Kawabata é uma completa despreocupação sobre a própria força narrativa aliada a uma tradição descritiva milenar da literatura japonesa, digna de uma Sei Shônagon. E é exatamente por isso que achei o livro parecido com a Dançarina de Izu. Em ambos também, Kawabata traz os olhos ocidentais que se espantam com as cenas japonesas mais estranhas, e também com as mais clássicas. É um olhar completamente inocente e desprovido de preconceitos ou expectativas. Isso traz uma sensação para o leitor de estar descobrindo junto com ele as características de Asakusa, e, se lido com atenção, o livro pode trazer um mapa mental perfeito do bairro sem nunca ter ido lá. E essa não é a graça da literatura, afinal de contas?

A Gangue Escarlate de Asakusa é o mais novo lançamento de Kawabata pela Estação Liberdade, uma editora muito simpática e competente que, por alguma razão que me foge completamente a lógica, não está alçada ainda ao panteão das grandes casas editoriais brasileiras pela crítica mainstream, que solenemente a ignora. O que é uma pena, pois não só a editora tem um acervo caprichado de grandes autores, como também tem edições bonitas e bem trabalhadas. A própria tradução desse livro, que sempre é comentada, é exemplo disso. Tudo bem que ela podia ser mais comentada, porque muita coisa sobre o Japão é subentendido como de conhecimento do leitor, o que não é verdade na grande maioria das vezes, mas acho que isso é reflexo dessa falta de interesse de nós, ocidentais de olhos redondos, pelas belezas que se escondem na boa e velha literatura japa. As páginas brancas offset estão sendo substituídas aos poucos pelo confiável pólen soft em alguns livros e a fonte Gatineau dá um charme às páginas internas, completas com cabeço superior e ilustrações originais de Ota Saburo (que fez as ilustrações para a primeira edição do livro) no começo e no final das páginas. Um pitéu.

Comentário final: 216 páginas offset com fonte Gatineau. Sayonara, compadres!

Ernest Hemingway – O Velho e o Mar (The Old Man and the Sea)

the old man and the seaOra, ora, ora, mais um clássico da literatura do século 20 por aqui. Aliás, um clássico curtinho. Clássico curtinho da literatura do século 20. O melhor tipo de clássico para o leitor comum. Rápido, acessível, geralmente barato, e quase, quase, quase sempre, permite qualquer leitura rasa que você queira fazer dependendo da sua disposição. Enfim, eis o arquétipo do livro universal. Taí pra quem quiser ler do jeito como quiser ler. O Velho e o Mar, que foi o último livro do Hemingway publicado em vida, é um desses casos e, graças a sua verve quase jornalística de narrar as coisas da maneira mais econômica possível, permite um sem fim de interpretações filosóficas, sociológicas, biológicas, metafísicas, naturalistas, políticas, gastronômicas, ergonômicas, psicodélicas, escalafobéticas e estrogonóficas sobre a manjada história do velhinho tentando pegar um peixe. E um aviso pros mal comidos de plantão: tem spoiler mesmo, na cara dura, sem dó. Te acostuma aí, boneco. Fica peixe.

Pra quem chegou agora no planeta Terra, a coisa gira em torno do véio Santiago, um cubano pescador que, já completamente desprovido da vitalidade de outrora, tenta sem sucesso tirar seu sustento do mar. Pra quem estranha a nacionalidade do sujeito e a ambientação do romance, fique sabendo que o autor morou um tempo em Cuba, onde ele inventou, segundo a lenda, o mojito. O velho tem como único amigo um garoto, que lhe ajuda nas pescarias e que lhe dá de comer quando tudo mais rareia na geladeira – uma amizade que seria muito útil pra mim, tendo em consideração o constante e deplorável estado da minha geladeira (por enquanto esse amigo continua sedo o motoboy do delivery). Os pais do moleque, mesmo assim, não gostam que ele vá pescar com o Santiago porque ele é azarado, e se tem uma espécie supersticiosa nesse mundo é pescador. Aliás, qualquer pessoa que frequenta muito o mar, de surfista a pirata. É uma coisa natural. Uma hora a parada vira, você fica num mato sem cachorro e pra te acharem naquele mundaréu de água salgada só com muita reza braba e foguetório sinalizador. De modo que o velho sai pra pescar sozinho, na esperança de fazer uma economia aí pros dias que se apertam, uns peixinhos que dê pra vender sem precisar vender muito o peixe, e não é que aparece um PEIXE-ESPADA MONSTRUOSO ASSASSINO VINGATIVO AMIGO DO PCC. E o velho tá lá, mãozinha na fieira, puxando o bicho na maior história de pescador que poderia ter imaginado. O bicho é irascível, e cansa o velho, que passa dias e noites com a linha na mão ponderando sobre a sua fraqueza, sobre a sua habilidade de pescador e sobre a beleza e magnitude do peixe que agora precisa pescar para recuperar sua honra de pescador não-azarado. Isso é 90% do livro. Uma narrativa sintética com monólogos do velho Santiago sobre essas questões aí. A coisa segue nessa toada até que ele consegue finalmente pegar o bicho, e dá um jeito de amarrar ele no bombordo do barquinho, numa proeza que nenhum Pesque e Cia. até hoje mostrou.

Mas aí vem o pulo do gato que só quem leu sabe. A coisa não ia ficar por isso mesmo, é lógico. A tubarãozada, vendo aquele sangue derramado e o cheiro de peixe morto, vem logo pra fazer a janta de ocasião, e aí começa uma luta do velho com os cartilaginosos ardilosos, uma luta que eventualmente ele perde, e chega na costa só com a espinha gigantesca amarrada no barco, provando que sim, ele ainda é o pescador azarado de sempre. Nada dá certo, desgraça total, todo mundo pobre, Fidel preparando pra tomar a ilha e o velho continua sem comida e longe de seu esporte favorito, o beisebol.

o velho e o marFica claro numa leitura possível de O Velho e o Mar a relação de medo, admiração e força do homem com as forças da natureza, aqui melhor do que nunca representado pelo mar e pelo seus peixes maloqueiros. O velho, que já fora campeão de uma histórica contenda de queda-de-braço, se vê agora rezando e lutando com a decadência do próprio corpo para conseguir e defender o sustento que vem difícil e vai fácil. Isso, ao mesmo tempo em que se compara com Joe Dimaggio, o grande jogador de beisebol de sua época, numa desproporcional competição de força física e propósito de vida que, de alguma maneira, sempre foi um parâmetro para os homens. O Velho e o Mar pode ser uma alegoria para muita coisa: para o fato de que a natureza sempre vence, para a ignorância da própria impotência da raça humana, para a concretização das superstições marítimas, para a aurora dos ídolos do esporte ante a ruína do ocidente, para o medo cósmico do homem que precisa da natureza mas gostaria de não precisar. O Velho e o Mar é um desses livros cuja leitura que você faz diz muito mais sobre você do que sobre o próprio livro, em grande parte pela ausência de maiores significados explícitos no texto. Quer ser misterioso e discutido ao longo de décadas? Pode ser o easy way – criando polêmica atrás de polêmica – ou pode ser o Hemingway – jogando o dom da interpretação pra galera. E não está aí a maravilha de um clássico, numa daquelas definições de clássico do Italo Calvino em Por Que Ler os Clássicos? Um clássico, dizia ele, é um livro que nunca termina de ser lido. Ou comentado. Sei lá, não sou desses nerds que ficam vasculhando a biblioteca pra fazer uma frase. Sei que eu deveria ser, mas não sou. Não hoje.

A Bertrand Brasil, do grupo Record, é quem publica a obra do Hemingway no Brasil. Pra comemorar, sei lá, os 60 anos do prêmio Nobel do autor, dado em 1954, eles resolveram dar uma mais do que necessária repaginada na coleção dele. E valeu a pena, porque tá lindíssima. Essa capa, que costumava ser horrorosa, cheia de degradê de cores, letras gigantescas e mal diagramadas, passou a ter um look mais gráfico, a assinatura do autor, cabeço com a paginação, um tamanho maior de página e papel pólen, o que já é 60% das melhorias do projeto. E, claro, manteve as belíssimas ilustrações de Charles Tunnicliffe e Raymond Sheppard que já figuravam na primeiríssima edição do texto em livro, em 1952 – essa é a 80ª edição no Brasil. Curti e aprovei. Vamos esperar as próximas!

Comentário Final: 124 páginas com papel pólen soft. ‘Tá aqui o bicho!’

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Apostas do Nobel:

premio nobelComo vocês devem saber, o prêmio Nobel de literatura sai hoje. Alguns leitores apostaram no Facebook, como é tradição fazermos todo ano por aqui, então vamos deixar as apostas registradas pra depois não falarem que tem marmelada. O vencedor leva o Homem Lento, do Coetzee. E reforço, para quem perdeu de apostar, que curtam a página do Livrada! no Facebook. Sim, tem que ter Facebook pra curtir a página, se não tem perde essas barbadas que aparecem vez ou outra.

Thaisa Meraki: Haruki Murakami

Priscilla Scurupa: Joyce Carol Oates

Pedro Víctor Santos: Philip Roth

Vitor Nascimento: Amos Óz

Guilherme Sobota: Assia Djebar

Rafael Pousa: Alice Munro

Fidel Zandoná Forato: Willian Trevor

Mo Yan – Mudança (Bian)

bianNo ano passado, este blog fez um bolão do Nobel para ver quem iria acertar o ganhador do prêmio literário máximo daquela vez. Muitos apostaram com o coração e outros tantos com a lógica, mas quem ganhou mesmo foi o Guilherme Sobota, que, muito malandro, foi conferir o nome mais cotado nas casas de aposta antes de emitir seu palpite. Como a coisa já faz mais ou menos um ano e como foi aniversário do nosso leitor ontem, vamos falar do até então único livro do prêmio Nobel Mo Yan traduzido para o Brasil.

Sempre acho que um nome mais ou menos obscuro aqui que é laureado com o Nobel, eu encaro a coisa como uma lança no peito da curadoria editorial das casas especializadas do país. É certo que a corrida começa imediatamente depois do anúncio, e poucos conseguem um contrato mais permanente porque a verdade é que os tempos de “O que é bom para os Estados Unidos (ou, o que é bom para Estocolmo), é bom para o Brasil” do senador Juraci Magalhães já se foram há muito, e a verdade é que, com nossa própria literatura nivelando por baixo, se o cara for sisudão, a coisa nem vinga por aqui. Por exemplo, a Elfriede Jelinek, vocês sabem. É claro que o Nobel não é exatamente um bom termômetro da qualidade literária de um autor, já que o prêmio é sempre dado pelo conjunto da obra e por razões outras que não a própria literatura.

Felizmente, Mo Yan é um autor fácil e divertido de ser lido, e confesso que fui parcial na minha pré-avaliação dele porque ainda estou embasbacado com a literatura do Yu Hua, seu conterrâneo que já passou pelo Livrada! em duas ocasiões: aqui e, principalmente, aqui. Mas Mudança, seu primeiro título cá nesta terra de pecadores, não é um romance, é um livro de relatos, o que deixa o primeiro encontro com a literatura dele um pouco imprevisível, porque não dá pra ter uma medida muito certa do tipo de escrita que o sujeito pratica, ainda mais que ele conta na apresentação que escreveu o livro meio contrariado e meio sem saber o que estava fazendo. A ideia era escrever um texto que resumisse as principais mudanças na China maoista até sua abertura. A megalomania do projeto é pra desanimar qualquer um mesmo, ainda mais se você não é exatamente um estudioso da coisa e só tem uma memória prática dos acontecimentos.

Mas é justamente aí que está a graça do negócio. Mo Yan escreveu um livro pequenininho, de tão pequeno que chega a ser uma afronta à proposta original, e escreveu sobre sua própria vida, de garoto apagado e pobre do interior à vida no exército e suas primeiras publicações. É por meio dele que você aprende que tipo de mudanças econômicas a morte do camarada Mao trouxe para a população mais pobre, que pôde sair dos buracos onde moravam para visitar a onipotente Pequim, ou como os caminhões soviéticos passaram de objetos de consumo para velharias imprestáveis, e como o sonho de ser caminhoneiro entre os pequenos chineses morreu com a abertura para novos negócios. Mo Yan mostra como as pessoas que não tinham nada puderam enriquecer muito rapidamente depois da abertura, e como algumas publicações em revistas já alçaram o autor a um patamar gigantesco. Então a gente entende que o título do livro, “Mudança” é uma só, a mudança da China, mas é contado a partir de mudanças, no plural, que são pequenas e entrevistas nos detalhes das vidas narradas, mas significativas no conjunto para a compreensão da conjuntura política e social do país dos amarelos.

MudançaE tudo isso é contado na maior despretensão, como um senhorzinho que conta as memórias da infância dele sem se preocupar em ser dramático ou prender o interlocutor, mas preocupado, antes de tudo, em fazer o leitor entender a lógica diferente daqueles dias diferentes e as preocupações de uma geração que se dividia entre o dever cívico e os sonhos materialistas, como andar de caminhão (a capa do livro é um desenho técnico de um desses caminhões russos) e visitar a capital.

No fim, Mudança é um livro singelo, mas honestíssimo na fidelização do ponto de vista do autor-narrador e que se sabe incapaz de dar conta de explicar todas as transformações da China no século 20, mas que dá sua contribuição empírica pra extensa bibliografia já publicada e a cada dia mais engrossada por tomos novos. E isso, para nós, leitores leigos que não nos pretendemos sábios entendedores da questão chinesa, nos contenta e nos satisfaz. De quebra, ainda conhecemos um autor Nobel novo, o que, por si, só, já torna a experiência da leitura mais reveladora.

O projeto gráfico da Cosacnaify é lindão como sempre e o livro, em seu tamanho, é quase um pocket. Um 19 x 12cm com fonte Milo Serif em cor roxa, papel pólen bold e um texto preparado e revisado por orientais (se isso não agrega valor ao cuidado da editora, eu não sei o que agregaria). E, claro, a famosa cinta promocional pra avisar o leitor desavisado de que sim, é esse o chinês laureado em 2012. Vida longa à literatura da China!

Comentário Final: 125 páginas de papel pólen bold. Não machuca, mas agrada a quem olhar.

Wole Soyinka – O Leão e a Joia (The Lion and the Jewel)

the lion and the jewelLiteratura africana, pois sim! O povão vira a cara, fala que não gosta, mas tem que ler, cara, tem que ler literatura da África porque enquanto seu escritor germânico favorito precisa suar a camisa pra encontrar temática substancial capaz de preencher um livro (geralmente com histórias de desagregação familiar), o africano caminha pelas ruas e os dilemas e a vida complexa brota do chão para que ele colha e faça literatura de qualidade com ela. Wole Soyinka, nigeriano prêmio Nobel de literatura de 1986, sabe fazer isso, mas a gente não sabe que ele sabe porque até a Geração Editorial lançar O Leão e a Joia, a gente não tinha absolutamente porcaria nenhuma dele traduzida.

O Leão e a Joia, entretanto, é uma peça de teatro, e embora o sujeito tenha escrito toneladas de peças, também escreveu toneladas de romances e ensaios, então não dá muito pra saber qual é a vertente principal dele, se é que ele tem uma. De qualquer forma o livro dá uma boa ideia das questões que lhe preocupam, já que é uma peça estritamente alegórica, sendo bem pobre de valor literário, na verdade.

Basicamente, é um triângulo amoroso entre a jovem Sidi, que é a gostosinha da tribo yorubá de Ilujinle, ou a joia de Ilujinle, Baroka, que é o velho bale da tribo (bale é tipo um vassalo do Obá, que é o rei da nação), também chamado de Leão, e Lakunle, o professor da tribo. Aí você já consegue perceber os contornos das alegorias: Baroka representa a África hardcore, a parada tribal, ritualística, tradicional, de faca no bucho e tripas na frigideira, e Lakunle é a cultura europeia assimilada, a caricatura pós-colonizatória do africano pseudo-intelectual. E Sidi, ela mesma, é a África dividida entre abraçar o novo ou aferrar-se às raízes. Contudo, sua personalidade egocêntrica é a própria razão da sua ruína. Cabe que ela fica se achando a gostosa depois que um rapaz de Lagos, que está para Ilujinle assim como São Paulo está para Curitiba, tira fotos dela, o que automaticamente alça a garota a um patamar superior ao do próprio bale.

Wole SoyinkaMas Sidi não está necessariamente inclinada a um ou a outro. Ela acha Baroka velho demais para ela, e como o cara já é cheio de esposas, ela acha que isso é um futuro pouco digno pra preciosidade que ela é. Por outro lado, Lakunle é bundão, não quer pagar o “preço” da noiva, e é cheio de ideia de zé ruela, tipo achar que as mulheres são mais burras que os homens e que isso é um fato cientificamente comprovado. Fazendo uma leitura rápida, dá pra sacar que se por um lado, optar por permanecer no que os europeus consideram primitivo, somente à guisa de automatismo, é por demais pobre e simplista para um continente tão rico e poderoso. Por outro lado, o povo africano não se sente completamente pronto para abarcar uma opção civilizatória feita nas coxas, sem qualquer estrutura maior do que a apresentação dos elementos. A coisa parece falsa, e mais do que isso, parece forçada e caricata. E isso não sou eu quem estou dizendo, é tudo o que os personagens dizem sobre os papeis que representam com gestos, falas e atitudes.

Acho que falar mais do que isso sobre a trama seria estragar muito a diversão, já que essa é uma das maiores qualidades do livro: seu desfecho razoavelmente imprevisível. O que posso acrescentar a essa breve explanação, e não pretendo me estender muito no post de hoje, é que, como parte de todo espetáculo africano, a coisa é construída muito mais do que com palavras. Danças, pequenas peças dentro da própria peça (peçaception?), e gestos muito caricatos por parte dos personagens não deixam muita margem para sutilezas. Tudo em O Leão e a Joia é muito escancarado, o que é uma coisa boa se você não tem muita paciência pra teatro, mas uma coisa ruim se você esperava um pouco mais de profundidade dos personagens. No fim das contas, é uma peça extremamente didática, dessas pra ser debatidas na sala de aula mesmo (atenção, professores que ainda não foram rendidos pelo sistema!), mas dificilmente seria um material literário mais rico do que isso. Tenho certeza, contudo, de que essa peça montada deve ser um show.

Aliás, essa edição da Geração Editoral, embora tenha uma capa que não é muito do meu agrado, é bem completa com fotos de montagem da peça, diversas notas para explicar as coisas africanas que a gente não entende e um prefácio razoavelmente esclarecedor para os mais ávidos por subtextos. Papel pólen, fonte grande e uma gramatura boa para fazer um livro de dramaturgia parar em pé e ainda por cima, machucar alguém, caso arremessado com força suficiente. Vou parando por aqui.

Pra quem quiser ler um pouco mais sobre literatura nigeriana, deixo aqui outras duas resenhas que eu fiz. Meio Sol Amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie, e O Mundo se Despedaça, do Chinua Achebe. E para quem quer mais África geral, fica esse aqui.

PS: Seu blogueiro atencioso agendou o post de hoje para sair ontem, de modo que ele já está a 24 horas no ar e isso não é justo com o assinante do Livrada! De maneira que vou fazer uma promoção relâmpago no dia de hoje. Quer ganhar esse livro? Seja o último a comentar nesse post até a meia-noite de hoje. Vale comentar quantas vezes quiser. Vai.

Comentário final: 150 páginas em papel pólen. Epa epa Ê!

Para começar a ler J.M. Coetzee

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O sul-africano John Maxwell Coetzee, vencedor do prêmio Nobel de literatura em 2003, é um linguista inveterado. Isso se reflete claramente em sua formação acadêmica: Seus dois bacharelados, concluídos na Cidade do Cabo, foram em língua inglesa e matemática (um outro tipo de linguagem, não se pode esquecer). Escreveu em Londres sua tese sobre o escritor britânico Ford Madox Ford, que teve grande influência na formação da linguagem usada na literatura inglesa do século XX; Por fim, tirou seu doutorado em língua inglesa e língua germânica, com foco na literatura de Samuel Beckett. Sua relação íntima com a linguagem faz de sua literatura uma experiência também intimista.

Não é fácil perceber o estilo de seus livros. Sua escrita é daquelas de fluidez aparentemente simplória. Um olhar menos analítico poderia ver apenas uma prosa que não se dá excessivamente a descrições e adjetivações. Em compensação, mesmo um desatento não deixaria passar despercebido sua predileção por digressões psicológicas, precisas em sua escolha de palavras, como uma conta de matemática.

Mas não se engane: há muitas coisas em comum a todos os seus livros: o desconforto provocado no leitor é uma delas. Coetzee constrói protagonistas sofridos, incapazes de estabelecer relações interpessoais sadias, ou mesmo constantes. Quem sabe um reflexo da própria personalidade — sua fama de esquisito e misantropo justifica a recorrência dos distúrbios de personalidade que permeiam sua obra. A tristeza e a impotência perante um mundo ao qual não se pertence e ao qual se deseja pertencer também são constantes. A academia de Estocolmo reconheceu essa idiossincrasia em Coetzee ao ressaltar que o autor “retrata de várias formas o surpreendente envolvimento de quem está à margem”.

Esse envolvimento, porém, é extremamente limitado em várias formas por agentes externos à motivação de seus protagonistas. Os anti-heróis de seus livros são massacrados por esse ambiente quase como em Kafka, especialmente em seus primeiros romances, ambientados em seu pais de origem, de onde vem a famosa frase de seu livro Juventude: “A África do Sul é como um Albatroz em torno de seu pescoço”, numa alusão ao poema de Coleridge, O Conto do Velho Marinheiro, que usa a ave para metaforizar um fardo existencial. A John Maxwell, lhe custa não só o estigma de ser considerado para sempre — por uma desventura geográfica, segundo o próprio no mesmo livro — a ser um autor africano, mas também não ter raízes em sua terra natal, sendo para sempre, onde quer que esteja, um marginalizado como seus personagens.

Prosa, ensaio e memória

A multiplicidade de gêneros em um mesmo livro é outra característica marcante de J.M. Coetzee. Seu livro Elizabeth Costello, lançado em 2003, por exemplo, tem como tema principal não a personagem, escritora de sucesso (alter ego do próprio autor), que frustra a todos e a si própria nos eventos que frequenta, carregando o ambiente com discursos inadequados ao momento. Trata-se principalmente de um compêndio de palestras e ensaios sobre a literatura e seu poder na sociedade que, sim, aplicados na ocasião correta (e não em um cruzeiro marítimo para aposentados) têm grande serventia para a reflexão sobre a arte de escrever. A mistura entre ficção e ensaio, porém, é tão coerente que leva o leitor a acreditar que o autor se aventurou a escrever palestras ruins de propósito. Outro exemplo é seu livro novo Verão, terceira parte da trilogia Cenas da Vida na Província, ficção memorialística sobre sua própria vida. Em Verão, um jornalista com aspirações literárias quer revolver a vida pessoal do autor, que, na ficção, já está morto. Entrevistando um amigo e ex-namoradas, e consultando um diário, o jornalista remonta sua trajetória. Essa mescla de gêneros é, como em Elizabeth Costello, perfeita em sua intenção: mesmo escrevendo sobre si próprio, Coetzee não hesita em expor suas excentricidades e defeitos pela boca de seus personagens.

Qual livro ler?

Embora a bibliografia de Coetzee seja mais vasta, existem apenas onze livros do autor publicados no Brasil atualmente. Seus leitores costumam dizer que, dentre eles, há um que é o mais importante de sua carreira — Desonra — e outro que alguns atestam que seja o melhor escrito — Homem Lento.

Homem Lento é um de seus livros mais brandos. É também o primeiro ambientado completamente em Adelaide, na Austrália, morada atual do escritor. Conta a história de um homem sexagenário (como o próprio) que perde uma das pernas ao ser acertado em sua bicicleta por um carro distraído. Necessitado de cuidados especiais, recebe em sua casa uma enfermeira croata, por quem passa a ter um incontrolável desejo afetivo e sexual, embora ela seja casada, com filhos crescidos e até um pouco feia.

O livro traz uma curiosidade: Elizabeth Costello, a personagem do livro com o mesmo nome que também aparece em A Vida dos Animais (um livro de ensaios sobre a ética animal e o vegetarianismo), dá o ar de sua presença ao aparecer na residência do Homem Lento em questão, graças a um mistério metalinguístico. Apesar de ser um livro triste, de esperanças vãs e carências não-correspondidas, Homem Lento não é, nem de longe, massacrante como o resto da obra de Coetzee. Tem todo o brilhantismo de suas análises e a fluidez que lhe é peculiar, por isso talvez seja o melhor título para conhecer sua literatura.

Já Desonra é, de fato, um marco em sua carreira. Graças a esse livro, Coetzee alcançou em 1999 uma proeza única na história da literatura: foi o primeiro escritor a ganhar dois Book Prize (o primeiro havia sido em 1983, por Vida e Época de Michael K., uma história brutal sobre a África pobre). Desonra trata de David Lurie, um professor de uma universidade da África do Sul que é afastado de seu cargo após se envolver com uma de suas alunas. Sem saber o que fazer, vai morar com sua filha, uma fazendeira de trejeitos masculinos que comandava uma pequena cooperativa de agricultores. No interior, conhece a ferocidade e a violência da vida africana, pouquíssimo valorizada e que a todo custo, sobrevive em meio à selva criada pelos próprios homens. É um de seus livros mais tristes (junto com À Espera dos Bárbaros e Vida e Época de Michael K.) e um dos últimos a ser ambientado no país de origem — na época ainda morava na Cidade do Cabo, onde, assim como seu protagonista, lecionava na universidade da capital. Desonra é a obra de Coetzee que melhor representa sua literatura, abrangendo quase que todos os elementos inerentes de sua escrita: a violência humana, a desonra pública, a inadequação aos lugares e a incapacidade de se relacionar. Ficar impassível diante desse livro é quase uma impossibilidade para o leitor.

Embora esteja longe do continente africano e tenha afirmado em Juventude que não criou raízes em parte alguma, Coetzee é um legítimo escritor africano na medida em que narra para fora, e não para seus conterrâneos, as agruras de sua terra. Por meio de sua escrita, sentimos a crueldade da vida e dos homens, e, assim como seus personagens, somos fracos ante sua obra.