Vamos falar de Coreia do Norte, já que o assunto é a Coreia do Norte por esses tempos. Os proto-chineses estavam ameaçando bombardear os Estados Unidos caso a Sony Pictures lançasse o filme A Entrevista, uma comédia bobalhóide (olha eu inventando palavras) do Seth Rogen e do James Franco em que eles vão até o supracitado país para matar seu líder extremo, o rechonchudo Kim Jon-Un, neto do presidente eterno do país Kim Il-Sum. Hackers invadiram o sistema da Sony, todo mundo amarelou no projeto, as pessoas começaram a dar nota máxima pro filme no Imdb em solidariedade, a Sony voltou atrás, lançou A Entrevista e o filme agora concorre a várias categorias no Framboesa de Ouro, que premia as piores porcarias que a sétima arte produz no ano. Viva, quase começaram uma guerra por causa de um filme intragável. Mesmo assim, pelas minhas contas e se não me engano, essa é a terceira ou quarta ameaça de guerra que a Coreia do Norte faz e não cumpre, o que já dá praqueles malucos suicidas que adoram guerra e que fazem tantas coisas legais pra gente comprar tomarem como deixa e realizarem a tão sonhada investida.
Fato é que os Estados Unidos não brincam com a Coreia do Norte pelo mesmo motivo que você não olha debaixo da cama a noite: não se sabe o que tem lá. O país é um dos regimes mais fechados do mundo e os turistas só podem visitar a capital Pyongyang e em visitas guiadas, sem falar com ninguém (uma amiga minha foi e eles foram levados pra visitar, entre outras coisas, uma fábrica de fraldas e um boliche). Por causa disso, a jornalista Barbara Demick, que era correspondente em Seul do Los Angeles Times em 2001, começou a querer investigar como eram as vidas dos habitantes da Coreia Caída. Daí nasceu o livro Nada a Invejar: Vidas Comuns na Coreia do Norte, que é, tecnicamente, um livrorreportagem como vários outros que figuram na coleção de Jornalismo Literário da Companhia das Letras (Stasilândia, por exemplo, tem uma estrutura muito parecida). Não entendi direito porque esse livro não ganhou o selo, assim como outros livros de estrutura jornalística publicados pela editora. Concluí que não ganha o selo aqueles livros que eles acham mais ou menos, mas ainda assim bons para publicar. Se essa é a posição deles mesmo, vou discordar, porque achei Nada a Invejar um livro muito maneiro, principalmente quanto ao tema.
É claro que a Barbara não teria como entrar lá e falar com os coreanos, então falou com os desertores do regime que moravam na Coreia do Sul, e as histórias retratadas no livro são tão distintas entre si quanto ricas. A grande parte delas são de mulheres, que tiveram condições mais ou menos favoráveis dentro do país e que sucumbiram, de alguma forma, ao rígido sistema de disciplina e louvor ao partido criado. É assim que conhecemos, por exemplo, a história de Mi-ran, cujo pai havia lutado na guerra contra a Coreia do Sul do outro lado, razão pela qual entrou na lista negra do partido e nunca conseguiria qualquer coisa. Ou a Sra. Song, devota fervorosa do Partido dos Trabalhadores (o de lá, não o daqui) que começa a comer o pão que o diabo amassou quando o generoso líder morre e sua já incompetente gestão de pseudo-comunismo pseudo-maoísta dá com os burros n’água totalmente. A fome, a disputa por um lugar ao sol, a falta de energia elétrica e outras penúrias são uma constante em todas as histórias.
Alguns méritos do livro, além das histórias. Como a Coreia do Norte é a mesma coisa que nada enquanto país para a cultura do ocidente, a autora consegue pincelar, em meio aos relatos, parte da história do país e um pouco de sua cultura. Como a Coreia foi dividia, como ela era organizada e tudo mais. Ponto pra Barbara. Depois, há o desafio de explicar para mentes que cresceram no mundo livre como se cria o fanatismo por uma causa política e as monstruosidades que vemos na TV, tipo o povo se jogando no chão e chorando por conta da morte do Kim Jong-Il. Os aparatos de controle ideológico do Estado coreano são monstruosamente eficazes, criando nenéns sob a imagem do líder supremo e instalando estátuas em qualquer fim de mundo (e na Coreia, o que mais tem é fim de mundo). É sempre muito difícil entender como as pessoas podem estar passando todos os perrengues no mundo e ainda assim apaixonadas pelo governo e dispostas a morrer por ele (até de fome… quando a comida rareou, o governo iniciou um programa para incentivar as pessoas a fazerem só duas refeições por dia), mas a narrativa das histórias contém elementos em comum que permitem entender um pouco melhor essa maluquice. Ponto pra autora também.
Por outro lado, o livro tem alguns vários problemas. Pra começar, a autora se repete muito, talvez numa tentativa de estressar o real significado do que está sendo narrado, talvez numa demonstração de espanto legítimo, mas é que a gente não pode esquecer de tirar as gordurinhas do texto, né, moça? Além disso, em alguns trechos ela também se contradiz. Em uma hora, ela explica que a política na Coreia organiza as pessoas em uma espécie de sistema de castas no qual não é possível subir, apenas descer, e num momento seguinte conta a história de uma pessoa que consegue ganhar a simpatia do partido, entre outras pequenas coisinhas. A maioria delas é fruto de um claro desprezo por regimes como o coreano, sendo a autora norte-americana, é relativamente compreensível, mas come on! (Aliás, ela também explica como os coreanos aprendem a odiar a Coreia do Sul e os Estados Unidos desde pequenos e como os americanos, coitadinhos, tentam ajudar e são injustiçados). Coisas assim tiram um pouco o tesão pela leitura, mas comprometem pouco o resultado final (mas comprometem).
Em papel pólen e fonte Minion (que é a fonte que a editora usa pros seus livros-reportagens, rá!), Nada a Invejar tem poucas fotos, e muito pequenas. Senti falta das ilustrações até porque as imagens sanam muito mais instantaneamente a curiosidade pelo país do que os relatos, e servem de bons complementos também. Enfim, tem, mas faltou. Papel pólen e a capa do grande monumento de Kim Il-Sum em Pyongyang só nos pezinhos ficou bom na capa, e o título do livro em coreano na lombada também tira uma onda. Ah! O título, aliás, vem de uma das placas motivacionais espalhadas pelas cidades e campos, que diz “Nada temos a Invejar no Mundo”, que é o equivalente ideológico àquele couro que você bota do lado dos olhos do cavalo pra ele não se distrair olhando pro lado e andar direitinho conforme você manda. Iradinho.
Comentário final: 412 páginas em papel pólen. Porrada na cara do gordinho norte-coreano!