Eis que meu camarada Karkão se encantou com a literatura pungente e obstinada do grande John Maxwell Coetzee e me pediu para que eu comentasse aqui este livro que está entre suas obras mais populares, senão a mais popular de todas. Li Desgraça há algum tempo, mas em termos relativos, porque leio muito, posso dizer que li há muuuuito tempo, então pode ser que a grande maioria das impressões que este livro me trouxe de início tenha se perdido ao longo desses anos e suas centenas outras leituras. Mesmo assim vou tentar resumir a história para vocês e meus conterrâneos vão achar o post de hoje bem útil já que rumores andam pairando pela cidade atestando que o grande prêmio Nobel sul-africano pode desembarcar por essas paragens no próximo mês. Vamos aguardar uma confirmação.
Antes de mais nada, uma breve sinopse para começarmos a discutir, mas desde já adianto que não vi o filme homônimo com John Malkovich, então não me culpe por quaisquer más-impressões que a história cinematografada pode ter produzido sobre seu juízo crítico. O que sei é o que li: a saga do professor universitário David Lurie, um daqueles caras lógicos, frios, pragmáticos e brancos que moram na África do Sul (ohhhh, tão diferente do próprio autor, como será que ele consegue?), que é mensalista do puteiro e tem planos megalomaníacos de escrever uma ópera sobre Lord Byron – que é, aliás, o que todos esses misantropos modernos gostariam de ser —, até que um belo dia se mete com uma aluninha chave-de-cadeia e é acusado de abuso. De qualquer forma o sujeito sobe nas tamancas, dá um piti infectado e é afastado da escola. É aí que resolve reatar laços familiares com a única filha que tem – o que, em se tratando de Coetzee, deve ser algo fruto da paternogênese, porque ô velhinho esquisito esse –, uma hã… Maria João que mora numa fazenda do interiorzão da África do Sul. Tudo vai indo bem até que um dia a fazenda é roubada e a filha do cara é estuprada brutalmente por três negões. E o pior, ela engravida de um deles e sabe muito bem quem são. O nosso protagonista fica então desnorteado e tenta entender esse mundo que é geograficamente tão próximo de si e ao mesmo tempo tão distante culturalmente.
Bom, pra começar, Desonra não traz nada de diferente do que o resto da literatura do Coetzee propõe, mas resume muito bem a ideia da obra como um todo. Justamente essa não-pertencença (se essa palavra não existia, passa a vigorar a partir da presente data) do homem branco que se propõe intelectualizado nessa louca louca África dividida. Porque mesmo que o apartheid já tenha acabado, todo mundo sabe que na prática não é assim. E ou você está do lado de lá, ou está do lado de cá. Mas estando do lado de cá, há sempre a opção de ser um acéfalo e se omitir da questão racial, algo que não é uma escolha para quem se diz ser pensante. Ao mesmo tempo, entender a relação de proximidade entre estuprador e estuprado no interior da África é mais complicado do que Édipo furando os zóio, então não há muito o que fazer senão se deparar com a própria incapacidade de viver o mundo real. Resumindo, o bôer intelectual sul africano é um sujeito sem classe: malquisto dos dois lados, recolhe-se em sua concha de autossuficiência.
Mas rá! Não é só isso. Além da não-pertencença classicista, há a não-pertencença etária. Veja bem, David Lurie está numa fase meio velho lobo que, na prática, o torna velho para tudo o que lhe afronta. Está velho demais para se envolver com as aluninhas, velho demais pra ser mensalista do puteiro, velho demais para tentar cuidar de uma filha que já se cuida sozinha no coração da selvageria, velho demais para ambicionar escrever algum dia relativamente distante uma obra megalomaníaca – que diabos, é velho demais para conceber qualquer coisa megalomaníaca – e se vê irrelutantemente velho, ainda que se sinta novo para tudo isso. E sua tentativa de consertar as coisas são mais desastrosas que a queima de fogos no réveillon lá da minha praia. Resumindo, o deslocamento das coisas só não é mais cru e excruciante que o próprio deslocamento da realidade. E esse, imagino, deva ser o sentimento de todo acadêmico branco africano. Não é à toa que a solidão permeia boa parte de sua obra, e sua inadequação com o trato social é característica marcante não só de seus personagens, como também do próprio autor, algo que pode ser visitado na trilogia autobiográfica Cenas da Vida Na Província, todas já resenhadas pelo livrada. Parte 1 aqui, parte 2 aqui e parte 3 aqui.
Resumindo, a desonra do livro pode muito bem se referir àquela que em David Lurie se encontra depois de ter feito tanta merda na vida e ter acabado testemunha de um assalto seguido de estupro da própria filha, que no fundo nem liga pra isso, mas não deixa de ser a desonra de ter conquistado, colonizado e permanecido ali, imiscível e avesso à vida selvagem. A desonra de ser impotente diante de um mundo que seleciona os melhores pela força e pela honra, a desonra de ser velho vencido e a desonra de ser um merdão a vida toda. Eis, meus senhores, a essência, da obra de Coetzee.
Só uma ressalva, já que sempre terminamos o papo comentando o projeto gráfico. A capa do exemplar que eu tenho, excepcionalmente hoje, não é a capa do começo dessa postagem. Tenho a primeira capa do Coetzee pós-nobel, aquela com belíssimas obras abstratas de Fábio Miguez, mas esse exemplar acabou ficando raro. Não mais raro do que a capa que segue o modelo de Diário de um Ano Ruim. Essa sim é pra lascar o couro do colecionador, o que, graças a Deus, gosto de pensar que não sou. Papel pólen e fonte Electra padrão de todos os bons livros da Companhia das Letras definem a experiência de uma das melhores leituras que fiz na minha recente vida de leitor. Karkão, espero que tenha lhe satisfeito, essa foi pra ti.
Ps: já é o quinto livro do Coetzee que trato aqui. Já já começam a faltar fotos diferentes dele.
Comentário final: 248 páginas papel pólen. Porrada neles, governador!