Luiz Alfredo Garcia-Roza – Fantasma

Ufa, chega de polemizar com o best-seller alheio, vamos falar agora de outro tipo de livro: o best-seller pessoal, aquele que é sucesso grande entre um seleto grupo de pessoas que se interessa por literatura o suficiente para escolher best-sellers melhores do que os que as livrarias empurram em seus diabólicos mostruários patrocinados pelo vil metal das editoras que ganham vendendo papel por quilo. Literatura policial, por que não? Os recalcados dizem ser um gênero menor, os exigentes reclamam da repetitividade da fórmula, os puritanos acham que há excesso de violência e os lerdos acham que é livro que “tem que pensar”. Jorge Coli e eu, porém, defendemos que os bons leem policial. Há muito o que aprender nesses livrinhos descompromissados, amigos. A fina arte da mentira, os limites da maquinação humana, as reviravoltas pessoais e a habilidade de fazer conexões entre elementos que estão à espera da percepção humana são alguns tópicos, mas há também todo o engenho de quem deseja fazer uma boa história revelando-a por camadas, sem que a próxima seja menos interessante do que a anterior, e sem que uma passe por cima da outra. Eis aí a genialidade do gênero, e eis o gênio da genialidade do gênero: Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Sou da opinião de que se você gosta de um autor policial, deve ler todos os livros que ele já escreveu. Afinal, é por aí que se pega o vício e é por aí que se percebe a versatilidade do escritor em um tema que se reinventa a cada romance com fórmula fixa. Garcia-Roza é um desses: seus romances sempre tem aquele “Who done it?”, o “Quem foi o cagão?”, em bom português. A chave de seus romances é descobrir o assassino e a motivação. Ora, isso é entretenimento! Fantasma, que, pelos meus cálculos, é o décimo livro da carreira de romancista de Garcia-Roza, traz o bom e velho delegado Espinosa, que já conhecemos desde o romance vencedor do prêmio Jabuti, o Silêncio da Chuva (que, confesso, não faço ideia de porque se chama O Silêncio da Chuva. É tipo Bruxa de Blair 2 – O Livro das Sombras, que não há menção a um único livro no filme inteiro). Nesses dez livros, muita coisa aconteceu ao delegado Espinosa. Foi promovido a delegado, tomou tiros, escapou da morte várias vezes, comeu muita mulher, amigou-se com a Irene num relacionamento aberto, matou amigos de infância, recebeu a visita do filho que mora nos Estados Unidos, aumentou sua estante-sem-estante (construção bizarra de livros comprados em sebo que se empilham numa parede. Uma parada improvável, já que livros de sebo mal conseguem manter-se inteiros), entre outras coisas.

O caso deste livro começa de maneira peculiar. Um sujeito é assassinado e roubado, e o que chama mais atenção no corpo é ter anotado na mão os seis primeiros dígitos do telefone de Espinosa. Ora, se um sujeito aparecesse morto com um pedaço do meu celular anotado na mão, ia ficar no mínimo bolado e migrar para a Claro. Mas o Espinosa é intrépido, e começa a investigação, justamente pela possível única testemunha ocular presente. A Princesa, uma sem-teto morbidamente obesa e albinicamente branca que só fica lá sentadona encostada na parede com suas sacolinhas, uma espécie de Buda branco de Copacabana. O único amigo da princesa é um senhor Isaías, um sujeito do Amazonas que mora numa construção abandonada, pago por alguém para que a obra não seja invadida. E aí, já sabe, povo da rua já é naturalmente escaldado, pra falar com puliça então, meu filho, só com despacho.

E é aí que reside a genialidade de Garcia-Roza. O escritor não só criou um policial incorruptível nesse meu Brasil do mau exemplo, como também criou um malandro policial. O malandro é aquele que se dá bem com todo mundo, é respeitado por onde passa, não dá margem pra crocodilagem, mora? E Espinosa vai, com seu jeitão de senhor de cinquenta anos, falando com mendigo, vagabundo, quem puder ajudar no caso, que não tem absolutamente nada de óbvio.

O título? Fantasma, sim, pode se referir à invisibilidade dos moradores de rua, mas ganha outro contorno no que se refere a uma mala imaginária que supostamente foi roubada do morto. Mesmo sem ninguém ter atestado sua existência, Espinosa busca esse fantasma de bagagem como se não houvesse dúvidas de sua existência, e nessa busca está o centro da trama. Repare que no começo do livro Espinosa está lendo uma edição velha de Sobre a Teoria dos Objetos Inexistentes, de um filósofo chamado Alexius Meinong, que tem uma teoria de fato bem interessante sobre o assunto. Nada é por acaso na literatura do sujeito.

Minha conclusão é que Fantasma é um dos melhores livros de Garcia-Roza desde Vento Sudoeste, já resenhado aqui. E digo isso porque já li todos mesmo. A capacidade de juntar cacos e formar um caso em Espinosa é surpreendente, e isso não é porque a consciência do escritor é a consciência do protagonista não, filho. É porque requer uma imaginação forte e sagaz para fazer seu personagem dar passos mais lentos que os seus próprios, enveredá-lo por falsas pistas e retomar o caminho certo de novo com lógica sobre lógica. Bah, nem vou começar com isso. Apenas leiam o livro, divirtam-se com ele por um dia ou dois e não se esqueçam que Garcia-Roza é talvez o único escritor policial clássico do Brasil, com detetives sagazes e honestos, assassinos misteriosos e pistas que são seguidas com faro e lupa. Acho que falta apenas um arqui-inimigo, um Moriarty pro Espinosa. De resto, tá tudo aí.

Por último, gostaria de acrescentar que essa constante mudança de projeto gráfico da Companhia das Letras pra coleção policial tá deixando minha coleção do Garcia-Roza. Eles sempre pintam a lateral das páginas na cor da capa, mas nesse pintaram de preto. Ficou bacana até, mas sei lá, preferia do jeito como era antes, com a faixinha colorida com o nome do autor e uma foto muito escrota em preto-e-branco. A foto dessa capa parece que foi feita no computador, com renderização 3D no cenário. E ainda permanece o inexpurgável papel offset, que deve ser o único que gruda essa tinta de lateral de página. Que é feio, é. Pelo menos a fonte é Garamond, aquela fonte style, charmosa tipo um galã francês. A Garamond é o Vicent Cassel das fontes.

Comentário final: 210 páginas. Catuca, catuca lá no fundo.

E. L. James – Cinquenta Tons de Cinza (Fifty Shades of Grey)

fifty shades of greyAVISO: Essa é a primeira e a última vez que um livro tão imbecil será comentado neste blog. Favor não insistir. Obrigado.

Eis que estava aqui sem ideias do que escrever hoje e pedi para que meus amigos leitores do Facebook indicarem qualquer porcaria que lhes viesse à cabeça. O pessoal se mostrou bem receptivo à ideia e sugeriu coisas interessantes, mas sempre tem um gaiato que quer ver o circo pegar fogo (sim, estou falando com o senhor, sr. Gabriel Ferreira) e que não tarda a jogar a merda no ventilador. “Cinquenta tons de cinza”, grita ele em meio à balbúrdia de gente sensata, o suficientemente alto para chegar a meus sensíveis ouvidos. Boa ideia, rapaz, vamos abrir mais um hectare de espaço ao latifúndio que esse lixo conseguiu na imprensa, mas vamos fazer o serviço direito, então. Vamos fazer essa concessão inédita para nunca mais, e depois podem pedir à vontade Harry Potter, Stephen King, Dan Brown, Marian Keyes, David Baldacci, Padre Marcelo Rossi, Nora Roberts e Nicholas Sparks que vou fazer ouvidos moucos até fazer bico.

Pois muito bem, vamos aos fatos: Cinquenta Tons de Cinza é chamado de mommy porn (pornô para mamães) por duas razões: 1- é pornográfico. 2- só tiazona curte. E por tiazona me refiro tanto à balzaca que ficou pra titia quanto aquela que já engatou a quarta marcha no motor da menopausa. Bom, o fato de só tiazona curtir, por sua vez, desmembra-se em mais três razões: 1- tiazona curte ler o livro da moda. 2- tiazona sempre está precisada (if you know what i mean). 3- tiazona não sabe usar o redtube. Ainda assim, as razões não justificam o bafafá em cima do livro, então vamos falar um pouco sobre ele para que vocês possam chegar a suas conclusões.

O (cof cof) romance conta a história de Anastasia Steele, uma menina virgem de 21 anos, sem nenhum atrativo físico visível que, como todo barro, tem uma amiga gata. Essa amiga, por sua vez, é estudante de jornalismo e está fazendo uma matéria para a faculdade com o magnata Christian Grey, de 28 anos que, por alguma razão que foge a qualquer lógica, é benemérito da faculdade onde elas estudam. A amiga pega uma gripe e pede então para que Anastasia vá entrevistar o sujeito em seu lugar. E ela vai, é claro, todo barro é pau mandado de alguma gata. Aqui já dá pra vocês adivinharem o resto: a vida dela muda por causa dessa coisinha, no melhor estilo Faroeste Caboclo, Indignação, e qualquer outra obra com paralelos identificáveis. Ela se encanta com o sujeito e ele, de quem a lógica já não é a melhor das amigas, parece se encantar com ela também. E os dois começam num flerte mais coxinha que álbum do Dave Matthews Band. Até que ela descobre tudo: Christian Grey é uma espécie de Eike Batista sadomasô, curte dar umas chicotadas e fazer um bondage pra estreitar as relações. E a menina, que nunca nem viu uma jeba na vida, se vê obrigada a escolher entre a velha vida de lisura em que vivia ou embarcar na vibe de um Adônis bilionário cujo único “defeito” é dar umas porradinhas na mulher (quem nunca, Goleiro Bruno…). A princípio ela fica balançada, mas aí chega um Macbook aqui, um carro novo ali, a inveja da amiga gata acolá e, por alguma razão inexplicável, ela topa. Que coisa, não?

E pronto, o resto do livro é putaria maluca até o final. Quer dizer, maluca mesmo é a do Marquês de Sade. É uma putaria, digamos, heterodoxa. Descrições pudicas de cenas de sexo que mostram que mesmo pra uma narradora de baixaria a mulher não serve. Não consegue nem entrar num consenso pra dar nome pro próprio órgão sexual, pô! “Eu o sentia ali”. Ali, aonde, filha? Ali virando a direita na entrada da Régis Bittencourt? Entra nos mínimos detalhes, mas nomenclatura anatômica é coisa de pervertido agora? Decida-se.

Desnecessário acrescentar, mas vai que tem algum desavisado que passou batido pela minha advertência inicial: o livro é irritantemente mal escrito. Vocabulário paupérrimo, estrutura mais simples do que fazer barquinho de papel, tentativas patéticas de digressão e menções deploráveis a uma “deusa interior”. Sério, cada vez que a mulher falava em “deusa interior” eu tinha vontade de bater a cabeça na parede.

Vou confessar uma coisa: até ler esse livro, eu era daquele time dos otimistas. Dizia que o importante era que o povo tava lendo, gastando dinheiro em livro, se dedicando a uma atividade minimamente intelectual, etc. Mas depois de Cinquenta Tons de Cinza, amarguei geral. Vão tomar vergonha na cara e ler coisa que preste, porque descer o intelecto de um adulto ao nível dessa joça é pedir pra tomar uns cascudos. Desculpa, gente, não costumo me alterar nem dar esses ataques de arrogância, mas essa leitura me tirou do sério. Claro, quem gosta de ler coisa boa e quiser pegar isso aí pra ver qual é, pode ficar à vontade, minha birra não é com vocês. Mas se você passa de Harry Potter pra Stephen King, de Stephen King pra Paulo Coelho, de Paulo Coelho pra, sei lá, Zibia Gasparetto, e ainda dá uma arrematada com Cinquenta Tons de Cinza, fica esperto pro cérebro não atrofiar.

Eu poderia me estender sobre esse livro por páginas e páginas da tão preciosa internet, mas receio comprometer ainda mais o bom senso, porque eu sou sempre da turma do deixa disso e ficar criando polêmica não é mais a minha área. Mas resta explicar uma coisa: como essa porcaria de livro fez sucesso? Afinal, não é nem uma história, é um pornô com aquelas tramas toscas de fundo, no estilo dos saudosos VHS tapados da locadora. Todos esses exemplares vendidos se devem a essa fantasia de meia-idade de ser subjugada por um bonitão ricaço? Christian Grey não fala como se tivesse 28 anos, fala como se fosse um senhor de 59 num corpitcho de mancebo, e a Anastasia fala como se fosse uma menina de dez anos num corpo de 27, então a distância de educação emocional aí aumenta uns três canyons. Junte os pontos, então: a protagonista é um barro infantilizado (barro, pra quem não sabe, é mulher feia, ou fraca. E por fraca quero dizer pobre de espírito), e tem a chance de, pela primeira vez na vida, fazer inveja na amiga gata e ser comida por um cara rico, bonitão, na flor da idade que, ao invés de ficar por aí de bauduco nocauteando as pistoleiras, prefere uma parada mais intimista e monogâmica, embore ainda goste de mandar. É nesse “me pega no colo, me deita na cama e me faz mulher” que reside o sucesso de Cinquenta Tons de Cinza? Vocês me dizem.

Comentário final: 450 páginas de pura baboseira. Já sabe em quem tacar, né?