Para começar a ler J.M. Coetzee

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O sul-africano John Maxwell Coetzee, vencedor do prêmio Nobel de literatura em 2003, é um linguista inveterado. Isso se reflete claramente em sua formação acadêmica: Seus dois bacharelados, concluídos na Cidade do Cabo, foram em língua inglesa e matemática (um outro tipo de linguagem, não se pode esquecer). Escreveu em Londres sua tese sobre o escritor britânico Ford Madox Ford, que teve grande influência na formação da linguagem usada na literatura inglesa do século XX; Por fim, tirou seu doutorado em língua inglesa e língua germânica, com foco na literatura de Samuel Beckett. Sua relação íntima com a linguagem faz de sua literatura uma experiência também intimista.

Não é fácil perceber o estilo de seus livros. Sua escrita é daquelas de fluidez aparentemente simplória. Um olhar menos analítico poderia ver apenas uma prosa que não se dá excessivamente a descrições e adjetivações. Em compensação, mesmo um desatento não deixaria passar despercebido sua predileção por digressões psicológicas, precisas em sua escolha de palavras, como uma conta de matemática.

Mas não se engane: há muitas coisas em comum a todos os seus livros: o desconforto provocado no leitor é uma delas. Coetzee constrói protagonistas sofridos, incapazes de estabelecer relações interpessoais sadias, ou mesmo constantes. Quem sabe um reflexo da própria personalidade — sua fama de esquisito e misantropo justifica a recorrência dos distúrbios de personalidade que permeiam sua obra. A tristeza e a impotência perante um mundo ao qual não se pertence e ao qual se deseja pertencer também são constantes. A academia de Estocolmo reconheceu essa idiossincrasia em Coetzee ao ressaltar que o autor “retrata de várias formas o surpreendente envolvimento de quem está à margem”.

Esse envolvimento, porém, é extremamente limitado em várias formas por agentes externos à motivação de seus protagonistas. Os anti-heróis de seus livros são massacrados por esse ambiente quase como em Kafka, especialmente em seus primeiros romances, ambientados em seu pais de origem, de onde vem a famosa frase de seu livro Juventude: “A África do Sul é como um Albatroz em torno de seu pescoço”, numa alusão ao poema de Coleridge, O Conto do Velho Marinheiro, que usa a ave para metaforizar um fardo existencial. A John Maxwell, lhe custa não só o estigma de ser considerado para sempre — por uma desventura geográfica, segundo o próprio no mesmo livro — a ser um autor africano, mas também não ter raízes em sua terra natal, sendo para sempre, onde quer que esteja, um marginalizado como seus personagens.

Prosa, ensaio e memória

A multiplicidade de gêneros em um mesmo livro é outra característica marcante de J.M. Coetzee. Seu livro Elizabeth Costello, lançado em 2003, por exemplo, tem como tema principal não a personagem, escritora de sucesso (alter ego do próprio autor), que frustra a todos e a si própria nos eventos que frequenta, carregando o ambiente com discursos inadequados ao momento. Trata-se principalmente de um compêndio de palestras e ensaios sobre a literatura e seu poder na sociedade que, sim, aplicados na ocasião correta (e não em um cruzeiro marítimo para aposentados) têm grande serventia para a reflexão sobre a arte de escrever. A mistura entre ficção e ensaio, porém, é tão coerente que leva o leitor a acreditar que o autor se aventurou a escrever palestras ruins de propósito. Outro exemplo é seu livro novo Verão, terceira parte da trilogia Cenas da Vida na Província, ficção memorialística sobre sua própria vida. Em Verão, um jornalista com aspirações literárias quer revolver a vida pessoal do autor, que, na ficção, já está morto. Entrevistando um amigo e ex-namoradas, e consultando um diário, o jornalista remonta sua trajetória. Essa mescla de gêneros é, como em Elizabeth Costello, perfeita em sua intenção: mesmo escrevendo sobre si próprio, Coetzee não hesita em expor suas excentricidades e defeitos pela boca de seus personagens.

Qual livro ler?

Embora a bibliografia de Coetzee seja mais vasta, existem apenas onze livros do autor publicados no Brasil atualmente. Seus leitores costumam dizer que, dentre eles, há um que é o mais importante de sua carreira — Desonra — e outro que alguns atestam que seja o melhor escrito — Homem Lento.

Homem Lento é um de seus livros mais brandos. É também o primeiro ambientado completamente em Adelaide, na Austrália, morada atual do escritor. Conta a história de um homem sexagenário (como o próprio) que perde uma das pernas ao ser acertado em sua bicicleta por um carro distraído. Necessitado de cuidados especiais, recebe em sua casa uma enfermeira croata, por quem passa a ter um incontrolável desejo afetivo e sexual, embora ela seja casada, com filhos crescidos e até um pouco feia.

O livro traz uma curiosidade: Elizabeth Costello, a personagem do livro com o mesmo nome que também aparece em A Vida dos Animais (um livro de ensaios sobre a ética animal e o vegetarianismo), dá o ar de sua presença ao aparecer na residência do Homem Lento em questão, graças a um mistério metalinguístico. Apesar de ser um livro triste, de esperanças vãs e carências não-correspondidas, Homem Lento não é, nem de longe, massacrante como o resto da obra de Coetzee. Tem todo o brilhantismo de suas análises e a fluidez que lhe é peculiar, por isso talvez seja o melhor título para conhecer sua literatura.

Já Desonra é, de fato, um marco em sua carreira. Graças a esse livro, Coetzee alcançou em 1999 uma proeza única na história da literatura: foi o primeiro escritor a ganhar dois Book Prize (o primeiro havia sido em 1983, por Vida e Época de Michael K., uma história brutal sobre a África pobre). Desonra trata de David Lurie, um professor de uma universidade da África do Sul que é afastado de seu cargo após se envolver com uma de suas alunas. Sem saber o que fazer, vai morar com sua filha, uma fazendeira de trejeitos masculinos que comandava uma pequena cooperativa de agricultores. No interior, conhece a ferocidade e a violência da vida africana, pouquíssimo valorizada e que a todo custo, sobrevive em meio à selva criada pelos próprios homens. É um de seus livros mais tristes (junto com À Espera dos Bárbaros e Vida e Época de Michael K.) e um dos últimos a ser ambientado no país de origem — na época ainda morava na Cidade do Cabo, onde, assim como seu protagonista, lecionava na universidade da capital. Desonra é a obra de Coetzee que melhor representa sua literatura, abrangendo quase que todos os elementos inerentes de sua escrita: a violência humana, a desonra pública, a inadequação aos lugares e a incapacidade de se relacionar. Ficar impassível diante desse livro é quase uma impossibilidade para o leitor.

Embora esteja longe do continente africano e tenha afirmado em Juventude que não criou raízes em parte alguma, Coetzee é um legítimo escritor africano na medida em que narra para fora, e não para seus conterrâneos, as agruras de sua terra. Por meio de sua escrita, sentimos a crueldade da vida e dos homens, e, assim como seus personagens, somos fracos ante sua obra.

Kenzaburo Oe – Jovens de Um Novo Tempo, Despertai! (Atarashii Ito Yo Mezameyo)

atarashii ito yo mezameyoE aí, povão. Todo mundo aos poucos caindo na real? É, o ano começou, e já tem chuva destruindo o Rio de Janeiro, navio capotando, celebridade instantânea filha de colunista social, estupro em reality show, passagem de ônibus subindo… Como diz o Mano Brown, êta mundo bom de acabar! Mas tudo bem, vamos falar de talvez uma das únicas coisas boas que restaram no mundo: literatura! E hoje, de um prêmio Nobel inédito por aqui. Kenzaburo Oe! Oe! Oe! Oe! Oe! Pumba pumba pumba hey, pumba pumba pumba hey…. Aaaah, que saudade da banheira do Gugu.

Deixando nossas lembranças púberes para lá, é preciso ressaltar que o livro mais representativo da carreira do escritor japonês é o Uma Questão Pessoal, que inspirou o Filho Eterno do Tezza, mas sobre o qual não vamos falar. E por que não vamos falar? Bem, essa é uma questão pessoal HAHAHAHAH duas piadas infames em dois parágrafos, é um novo recorde na crítica literária nacional. Yuri Raposão, é do Brasiu-ziu-ziu-ziu! Mas sério, a questão pessoal no caso é que eu não li o dito livro, então vamos comentar esse, que foge muito pouco ao tema do principal e de repente ficou mais fácil de achar nas livrarias por causa dessa edição comemorativa de 25 anos da Companhia das Letras. Ah, hoje não vamos falar do projeto gráfico do livro por uma boa razão: estou na praia a quase mil quilômetros de distância do meu exemplar, então não rola.

Bem, antes de mais nada, que irado esse título, hein? Jovens de um Novo Tempo, Despertai! Sei que pra você isso deve soar muito bomo bordão de grupo jovem evangélico, mas vamos combinar que qualquer título que use a segunda pessoa do plural ganha +100 pontos em imponência e ar épico. Olhai os Lírios do Campo, Jovens de um Novo Tempo, Despertai!, e por aí vai. Jovens escritores, considerai usar o imperativo do tempo vós para criar títulos portentosos.

Nesse livro de título poderoso, entretanto, o escritor realmente fica em cima do muro entre escrever um romance, um livro de contos e um ensaio. Por que veja, ele tem uma história unificada, mas é dividido em contos que se esparsam cronologicamente entre si, e em cada um deles, Oe comenta algum aspecto da poesia de um de seus poetas favoritos. Blake! Que me lembra Bloke, que me lembra que a mulher de Traídos pelo Desejo é um cara, e agora já me deu um calafrio na espinha. Brrrrr, não me perguntem como eu faço esse tipo de associação. E em meio a isso, volta ao tema de Uma Questão Pessoal: sua relação com seu filho autista, Hikari Oe, que mesmo com “metal retardaaaaation” (adoro Borat), é um dos mais proeminentes compositores do Japão (como se o país não fosse quase que tomado completamente por artistas proeminentes), reforçando aquela tioria de que não importa o quão bom você seja em algo, tem algum moleque asiático que é dez vezes melhor do que você.

Os fatos são os mais corriqueiros possíveis: uma merda que a criança fez em casa enquanto o autor viajava, um encontro no clube com uma turma esquisita de natação, o debate de uma estudante americana sobre a vida e obra dele próprio e do escritor Yukio Mishima, tratado no livro apenas por Sr. M., príncipe neeeeeeegro dos sortilégios. Aliás, Mishima é outra constante no livro. Fisioculturista, gay, suicida e escritor, a personalidade e a obra do cara dão pano pra manga de mais de mil dissertações — e acredite, o pessoal já deve ter escrito tudo isso sobre ele. Para quem ler o livro e não souber quem é o Sr. M, o amigo do Livrada! aqui te ajuda!

Acho que Jovens de um Novo Tempo, Despertai, é um tanto inconstante por não saber equilibrar a dinâmica do romance e a profundidade do ensaio, optando ora por um, ora pelo outro. Mas convenhamos, como é que o cara ia fazer isso de uma forma melhor? Acredite, se um japonês não conseguiu fazer direito, é porque a bagaça é impossível, desistam enquanto é tempo! Mas espere, isso não quer dizer que o livro é chato nem desinteressante, muito pelo contrário. Mas para entrar no espírito da leitura, tem que estar disposto a mudar sua leitura de romance para conto e de conto para ensaio com a mesma vontade de Oe em alternar os gêneros, caso contrário sua leitura vai ser uma eterna espera pelo seu formato favorito voltar à tona. Vada bordo, cazzo!

Meu maior problema com esse livro foi, realmente uma questão pessoa, e agora não é piada, é que eu realmente me interesso muito pouco pela poesia do Blake, então boa parte do livro não me interessa, então boa parte do livro ficou chata pra mim. Mas para quem gosta de conflitos familiares, ensaios literários sobre mais de um autor até, relatos pessoais de um cara experiente e cheio de causos para contar, Jovens de Um Novo Tempo, Despertai! é o livro certo para você.

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Enrique Vila-Matas – História Abreviada da Literatura Portátil (Historia Abreviada de la Literatura Portátil)

historia abreviada de la literatura portátilDe volta ao nosso expediente normal então. Perdemos no The Bobs, acho que todo mundo já estava esperando isso. Como sempre, em meio a chacina de criancinhas, tsunamis, vulcões, vazamentos nucleares e terremotos, o mundo continua dedicando a maior parte de sua atenção à falta de ciclovias. Ora, vou parar de falar isso porque senão vai parecer discurso de mau perdedor. E eu sou mau perdedor e sei que ser mau perdedor ainda não é muito bem aceito na sociedade, então bola pra frente.

O livro de hoje é curtinho. Qualquer um pode lê-lo em uma sentada (o equivalente a três vírgula sete cagadinhas, não sei qual unidade de velocidade de leitura vocês usam aí), o problema maior é desembolsar uma graninha para comprá-lo porque, veja bem, ainda se pensa muito na quantidade de páginas que um livro tem e costuma-se avaliar o preço dele baseado nisso. Gente, o livro novo da Maryan Keyes tem 800 páginas de pura abobrinha, vocês decidem onde investir vosso rico dinheirinho.

Bom, Historia abreviada da literatura portátil é um livrinho publicado originalmente em 1985 e que dá o starte a esse jeito maluco que o autor tem de passar as ideias dele pra gente, usando principalmente a) uma escrita extremamente cerebral b) referências históricas e geográficas das cidades da Europa c) alguns escritores e outros artistas pouco mais desconhecidos do grande público d) apócrifos e muitas, muitas mentirinhas, dessas do estilo pega-troxa. É isso, a literatura do Vila-Matas serve principalmente pra você que acredita em tudo o que lê começar a ficar mais esperto um pouco.

Bom, a história é a seguinte: um narrador, que não é o autor, embora ele dê a entender isso durante o livro inteiro, mas se você ler com cuidadinho você percebe que não é, está escrevendo um ensaio sobre a sociedade secreta shandy, um grupo de artistas mutcho lokos que batizaram sua seita com o nome do personagem Tristram Shandy, do Laurence Sterne, sabe aquele? A sociedade é composta por tipos do tipo do Marcel Duchamp, Aleister Crowley, Robert Walser (robard valzaaaa), entre outros, e todos eles pregam coisas como só fazer arte que não seja importante, só escrever livros pequenos e obras de arte que possam ser miniaturizadas para se carregar numa maleta, à moda da maleta de Duchamp, que cotinha suas obras. E também serem solteiros, estarem perto de pelo menos uma mulher fatal e beber uma bebida chamada Shandy, que, pelo que eu entendi, é cerveja misturada com limonada. Pra quê Activia, né?

Aí que Vila-Matas vai conduzindo a gente por esse universo de mentiradas e o leitor bobão vai caindo em todas, e depois lê a porcaria do livro e sai por aí esbanjando conhecimento. Até que toma um chega pra lá e passa o resto da festa de mau humor, chorando as pitangas de que não teve tanta chance na infância, desperdiçou sabedoria decorando nome de Pokémon e jogando Tazo no recreio, etc. Por isso, é um excelente livro que todo mundo deve ler! É meio estranho que o autor queira divertir a gente com um ensaio, não é? É que nem, sei lá, defender uma tese de doutorado em forma de espetáculo circense. Enfim, por enquanto tá dando certo, espero não enjoar dessa escrita dele, é ainda agradável e, aos meus olhos, pouco pedante se não contarmos a intenção.

Essa edição da Cosacnaify me pegou de surpresa. Achava que vinha um livro do tamanho dos outros do autor, mas veio um que é um quarto dos livros normais, e com menos de 150 páginas ainda por cima. É do tamanho de um livro de bolso, e o boboca aqui nem se ligando que o cara queria fazer uma literatura portátil. Dã. Fora isso, a edição é chique que nem as outras, e a foto da capa é, na minha modesta opinião, uma das melhores da coleção. Rosa e amarelo? Sim, tudo bem, é uma escolha heterodoxa mas, hey, se eles não fizerem, ninguém faz, a não ser talvez uma daquelas gráficas de fundo de quintal que lança uma edição do autor chamada “Mistério na fazenda” com Sandy e Junior na capa, jurando que vai ser o maior sucesso de público e de crítica, entrar pro Guiness e o escambau. Papel pólen e fonte Garamond, a belezura. É isso. Livro curtinho, resenha curtinha, mas acho que deu pra entender como é, né?

Comentário final: Toda pessoa alta é meio maluca porque vivem batendo a cabeça nos lugares. Já repararam nisso?

 

Enrique Vila-Matas – Doutor Pasavento (Doctor Pasavento)

Doctor PasaventoComé que é, negada! Geral se aguentando pro projeto verão? Tem que ficar com o corpo em forma, senão periga de você passar esse ano sem receber dos outros aquela coisa gostosa que parece amor maciço mas é só medo e solidão banhados a amor. Enquanto você se priva aí de um prazer pra tentar ganhar outro nessa lógica maluca que todo mundo acha que entende, chegaí pra se alienar no Livrada! O livro de hoje é um petardo.

Doutor Pasavento. Acabei de acabar de ler esse livro e vim aqui contar pra vocês como é. Viu como eu sou legal? Viu como eu vou te ajudar a colocar na tua bagagem cefálica algo além do nome de todos os Pokemons, das letras dos Beatles, do penteado do Jordan do New Kids on the Block, de piadas (piadas?) do Friends, enfim, algo que preste. (Ih, coloquei as letras dos Beatles no meio, sujou!) Mas, como esse é um blog isento de embasamento, fiz o favor de não ler nenhuma crítica, resenha, comentário, o que seja a respeito desse livro, afinal de contas, o nosso trabalho é abastecer o Google e não chupar dele o nosso conhecimento, como alguém já disse alguém por aí. Então, que fique bem claro que aqui é só a minha humilde opinião, belê?

Pois bem. Doutor Pasavento é um romance/ensaio sobre o ato de desaparecer. O protagonista do livro, sem nome, mas que se parece em muitos aspectos com o próprio Vila-Matas — algo que ele faz de monte nos seus livros — é um escritor consagrado que está farto do reconhecimento que recebe e deseja sumir pra suprir aí umas necessidades inerentes no ser humano que só Freud explica. Bom, Vila-Matas tenta explicar também, e traça paralelos com a vida do escritor suíço Robert Walser, o gênio irreconhecido, o Captain Beefheart da literatura européia, e de como a sua internação no hospício, onde passou os últimos 23 anos de sua vida sem escrever picas ajudou-o no processo de desaparecer. Ao mesmo tempo, analisa um pouco a situação em que se encontra no momento em que toma a decisão: indo para Sevilha para dar uma palestra sobre a “ficção dançando na fronteira com a realidade”, um tema que só pelo título dá vontade de vomitar. Hospedado na rua Vaneau, em Paris, o escritor começa a viajar na maionese pra criar relações entre aparentes coincidências e fica realmente maluco com isso. Daí cria um personagem, um alter-ego para si: o Doutor Pasavento, doutor em psiquiatria que curte se meter em casos de pacientes alheios.

Não contente com a sua dupla vida, acaba criando uma terceira persona, e depois uma quarta, o Doutor Pynchon, que, assim como o escritor americano, gosta de ficar relacionando tudo por acreditar que tudo no universo está conectado. Pynchon é citado também por ser uma pessoa misteriosa: ninguém sabe quem ele é, com quem ele se parece, porque ele não dá entrevistas nem sai de casa. Tipo um Dalton Trevisan bem sucedido, isso aí. Assim, ele escreve no seu moleskine sobre seu desejo de desaparecer e perambula por certos lugares, ou finge que perambula. Conta histórias como se estivesse na Patagônia, mas estando num hotelzinho em Paris, e passa o final do livro num lugar chamado Lokunowo, que eu tenho a ligeira impressão de que não existe de verdade.

A graça do livro está em ver a transformação do personagem para, realmente, outra pessoa completamente diferente do que ele era no começo do livro. Nesse sentido, Doutor Pasavento também é um romance de formação. Ainda que ele não mude seu estilo de escrita conforme muda a personalidade, é notável o trabalho do autor pra transparecer essa realidade, e, junto com ela, tratar de alguns temas conhecidos dos escritores, como a fama e a cacetada de moleques pedantes que ficam na sua aba pra que você leia os originais deles. A literatura quase sempre é a questão central do autor, pelo que eu andei percebendo.

Essa edição da Cosac Naify é um pitéu, é ou não é? Já falei um pouco dela quando resenhei o livro Suicídios Exemplares, do autor, então não tem muito o que falar, a não ser que esse tem um poder letal maior, afinal são 410 páginas na sua cara. Ah, o livro ganhou aí alguns prêmios, como o da Real Academia Espanhola, em 2006 e o Mondello, de Palermo, na Itália, então acho que o cara presta, afinal de contas. Não sei se sabem, mas ele, quando era um Zé ninguém, alugou um apartamento em Paris da escritora Marguerite Duras e, na cara dura, pediu pra elas uns conselhos de “como ser um bom escritor”. E não é que a dona fez uma listona pra ele? Acho que deu certo, afinal. Vamos ver quem me arruma uma lista dessas agora.

Comentário final: 410 páginas pólen soft. Pra tomar aquele verdadeiro chá de sumiço.

Ps: Algo na cara do Vila-Matas me lembra o Jello Biafra…

Haruki Murakami – Do que eu falo quando eu falo de corrida (What I talk about when I talk about running)

What I talk about when I talk abour runningHoje é domingo, e ninguém quer saber de literatura hoje, êêê! Ainda assim, o rapazote aqui cisma em soltar uma resenha nesse dia em que nem Deus trabalha. Mas tá maneiro, vamos lá.

“Oba, literatura japonesa”, pensou o leitor desavisado que não sabe que Haruki Murakami é o japa menos japa da face da terra. Sim, ele é japonês, edokko da gema, mas não faz nada que de longe nos remeta àquela musiquinha “tan tan tan tan tan BUOOONG” que vem na sua cabeça quando você pensa em Japão. E, pra piorar, vamos falar de um livro que, por si só, já é distanciado de toda a literatura produzida pelo rapazote. Trata-se de Do que eu falo quando eu falo de corrida, um livro que reúne pequenos ensaios sobre o ato de correr, aquela coisa sofrida de que ninguém gosta, mas faz por um estranho desejo de se machucar e por uma mais estranha ainda vontade de ouvir o doce som das suas coxas flácidas batendo uma na outra.

Antes de tudo, um breve resumo da ópera (ó como eu sou legal, gente! Vocês podem sair daqui mentindo pra todo mundo que leram um livro): Murakami tinha um barzim de jazz em tóqui, fumava como um Humphrey Bogart de olho puxado e tava encostadão na vida, até que teve a ideia maluquete de escrever um livro, e começou. Deu certo, conseguiu ser publicado e resolveu viver disso. Passou o ponto da birosca e pensou: “tá, vou ficar aqui o dia inteiro com o rabo sentado nessa cadeira botando letra no papel. Preciso fazer alguma coisa para não virar um primo distante do Jabba”, e resolveu começar a correr. Bom, sei lá, eeeeeeeeeu prefiro algo menos agressivo como pedalar ou andar de skate, mas o fato é que ele começou a dar umas carreirinhas aqui, outras lá e, um ano depois, o sujeito tava correndo nada mais, nada menos que a maratona original, da cidade de Maratona até Atenas! Bom, não poderíamos esperar outra coisa, afinal, há, muito bem inculcado no nosso insconsciente coletivo, o estereótipo do japa baixinho maluco e, bem, Murakami não parece um primor de altura. A partir daí, faz um programa de corrida diária e participa de pelo menos uma maratona por ano. Entre uma corridinha e outra, escreve um livro, um ensaio (como os desse livro) e traduz para o japonês a obra do escritor Henry James.

No livro então, o autor esclarece a nós, sedentários convictos, questões cruciais como “o que passa na cabeça de uma pessoa enquanto ela está correndo?” e “o que leva alguém a correr uma maratona?” e outras lições simples do que ele aprendeu em sua vivência como corredor. E quando eu falo em lições, não espere nada do tipo Minutos de Sabedoria do Dalai-Lama, ou A Arte Cavalheiresca do Arqueiro-Zen, ou A Arte da Guerra. O cara não se acha até altas horas pra ficar te cagando regra, amigão.

Algumas coisas me impressionaram muito nesse livro. A primeira é de ver como o japa é um senhor atualizado e modernoso. Que tipo de sexagenário (que ele é, ok? Não se deixe enganar pela cara de pêssego) corre todos os dias e coloca no mp3 player coisas como Gorilaz, Beck e outras paradinhas descoladas da galera sarada? Tudo bem que na maior parte do tempo ele só ouve Lovin’ Spoonful, uma banda muito da furreca que tocava nos anos 60 e cujo maior sucesso ouvi uma vez numa dessas coletâneas de banca de jornal, mas o título me foge agora. Ainda assim, é admirável. Outra coisa que me impressionou foi ele ter corrido uma ultramaratona — cem quilômetros em um dia, amizade. CEM! Aposto que agora o estereótipo do japa baixinho maluco está começando a se tornar mais claro, né? É pra botar os bofes pra fora ou não é correr tudo isso num dia? E, por último, me impressionou o fato de eu ter me interessado tanto por um livro que fala sobre corrida quando eu mesmo não gosto de correr. Acho que isso é um mérito inegável pro escritor: fazer você gostar de um assunto que você não gosta. E, apesar de ser uma escrita altamente simples, sem floreios, sem frufru, sem ui ui ui ai ai ai, é altamente cativante (talvez até por causa disso, mas eu geralmente não curto esse tipo de simplicidade).

Esse livro foi o último do autor a ser lançado pela editora Alfaguara, que geralmente costuma ser arbitrária nas capas de seus autores mas que, no entanto, parece ter um projeto de imagens de capa muito específico para o Haruki queridão. Sim, falo desses raios de “sol nascente”, a única coisa do livro que faz tocar na sua cabeça o “tan tan tan tan tan BUOOONG”. Só que, pra esse livro, escolheram raios pretos e brancos que podem ser vistos até o seu centro, onde aparece a silhueta de um homem correndo. Ou seja, é psicodélico demais, e se você girar esse livro na frente de alguém, se prepara para pegar a vítima no ar, porque o desmaio é quase certo. Eu mesmo recebi esse livro num dia fatídico em que me descobri com uma dessas viroses de inverno que fazem você encher o tênis a qualquer hora, e eu, já meio grogue, de pressão baixa e fortemente desidratado, achei que essa capa pareceu a porta do apocalipse se abrindo na minha frente. Foi maneiríssimo. Fora isso, é aquele padrãozão da Alfaguara que já estamos carecas de saber: um livro bom, bonito e relativamente barato. Ah, tem uma foto do Haruki Murakami correndo logo nas primeiras páginas, uma foto da década de 80 com a câmera posicionada no chão, o que dá um efeito de Rocky, um Lutador na terra do tokusatsu. Enfim, recomendo pra quem é adepto desse tipo de masoquismo, ok? Bom domingo pra todo mundo.

Comentário final: 152 páginas em papel pólen soft. Corra para as montanhas! (Mentira, nem corre, o livro é inofensivo)

 

Nicolau Sevcenko – A Revolta da Vacina

Aí rapaziada, muita calma nessa hora. Hoje não estamos falando de qualquer autor, um vagabundo qualquer que resolveu escrever livros ao invés de ter um emprego de gente grande. O autor de hoje é nada mais nada menos que Nicolau Sevcenko, o bambambã da USP, que por acaso também é o tradutor da edição nova de Alice no País das Maravilhas. Se você não sabe quem ele é, vergonha na cara e Google no browser já, monstrengo ignoranteeee. Enquanto isso, vamos ao que interessa.

Sevcenko é então o mais novo integrante da coleção ensainhos, da Cosacnaify (falamos mais sobre isso ao final), com o livro A Revolta da Vacina. Pra você que fez supletivo, a revolta da vacina foi uma quebração de pau no Rio de Janeiro do começo do século XX, quando tiveram a ideia de detetizar a população pra ver se a varíola sumia da cidade maravilhosa. O problema é que se neguinho já é xucro com a pobretada hoje em dia, imagine só naquela época em que briga de bar não terminava até que tivesse uma mãe chorando. E tu achando que tinha Zé Gotinha dançando Ivete Sangalo na porta do posto de vacinação, né? A vacina era na base da porrada mesmo, filho. Pra piorar, não fizeram muita questão de explicar como a injeção mardita funcionava, e o povão mal informado só entendeu dessa história que o governo, que já não gosta muito de pobre, resolveu dar um “remédio” de graça pra geral que consiste em injetar a doença direto nocê. Ah, filho, a jurupoca piou bonito. Desmancharam a campanha de vacinação embaixo de cacete, e sobrou pra todo mundo. Teve nego bloqueando a rua, chinelo havaianas voando pra tudo que é lado e precisaram chamar as forças armadas pra dar um jeito na coisa. Morreu muita gente. E você achando que sua irmã era a pessoa que mais tinha medo de agulha na face da terra.

O livro então, procura traçar um panorama do episódio, explicando o que levou o governo a campanha tão drástica e por que, ou por quem, o povo se descabelou desse jeito (não, não era vontade de ficar doente, dona Fátima, tenha paciência). Compilando textos de autores da época, incluindo o vívido depoimento de um jornalista que viu de perto a cobra fumando, além de charges e fotinhas sobre o episódio, pra dar aquele tchananã de pesquisa histórica bem feita.

Na moral, peguei esse livro pra ler porque gosto muito do episódio histórico (quem é que não gosta de ver um efeito borboleta bizarro tipo a Guerra do Pente?), mas me surpreendi mesmo com a maneira lúcida e acessível com que o autor lidou com o assunto. Tudo bem que o livro é pequeno, mas devorei a leitura rapidão, de tão interessante que ele deixou tudo. E isso sem ficar aqui que nem eu recorrendo a piadinha marota ou apelando pros escândalos e polêmicas da história. É só no papo reto mesmo, mano, tá ligado? Ah, se todo livro de história fosse assim… esses maconheiros cabeludos que andam de calça jeans e sandália iam estar todos empregados dando aulinhas pra molecada. Enfim, mais um livro pra botar na estante e reforçar a ideia de que o Sevcenko é um monstro no palco e no estúdio (pergunta pro Thaíde, ele sabe).

E essa tal de Coleção Ensainhos da Cosacnaify? Bom, é uma coleção de ensainhos, cabeção, queria o quê? Tua mãe pintada de azul? Os livrinhos abordam de leve temas diversos, o suficiente pra saciar sua vontade momentânea de querer ser culto, ou o suficiente pra você ficar com a pulga atrás da orelha, mexer o rabo do sofá e procurar saber mais. O acabamento desse livro é sensacional. No verso da capa e da quarta capa, mapas do Rio de Janeiro da época, delimitando o projeto de urbanização criado pela prefeitura e pelo governo. Páginas cinzas para diferencias textos assinados por outros autores e um posfácio à edição de 2010 que é, no mínimo, emocionante. Papel pólen e fonte Perpetua, chiquerérrima com o formato do livro. Sabem que não faço isso muito, mas esse eu recomendo fortemente, foi uma das melhores leituras que fiz em 2010.

Comentário final: 140 páginas pólen soft 80 g/m². Corre, bino!

 

Rosa Montero – Histórias de Mulheres (Historias de Mujeres)

Historias de MujeresMais um domingo, minha gente, mais um post. Esse deve ser o post menos lido da história. Primeiro porque é sobre uma escritora que surpreendentemente não é lida por tanta gente (temos que mudar isso!), segundo porque é domingo que antecede um feriadão enforcado (para o patronato benevolente) e meio mundo está agora fazendo um headbang propício no festival SWU, um festival da galerinha modernete que é a favor das ecobags, que ostenta seus produtinhos da Apple, que curte um flashmob e uma xiboquinha, e vai pra Itu de excursão queimando diesel lá da casa do chapéu pra chegar e pedalar em uma roda-gigante movida a bicicleta ergométrica. Eu acho que esse festival poderia ter sido a coisa mais sensacional dos últimos tempos, mas, como todo festival, tem seus defeitos. No caso, os defeitos são o estacionamento de 100 reais e a presença da banda Los Hermanos. Como diz a minha chefe, “é pra fuder o cu do palhaço”. Mesmo assim, continuemos na nobre missão de resenhar dois livros por semana por aqui.

Como disse ali no nariz-de-cera (de cera ou de praxe?), Rosa Montero — pasmem vocês! — não é tão lida quanto deveria. As buscas pela dona no mister Google também não são lá essas coisas (falando em Google, eu e Michel, o anarco-primitivista descendente direto dos macacos do novo mundo que trabalha comigo, estamos bolando o Jögler, o Google alternativo do Leste Europeu, vai ser maneiro). Gente, vamos ler mais Rosa Montero, a autora é uma das melhores coisas que vieram da Espanha nos últimos tempos no quesito literatura. Claro que essa é só a minha opinião, mas é que acho que, mais do que uma boa narradora, Rosa é uma escritora com bagagem (ruim de ficar falando essas coisas de escritoras mulheres é que neguinho já pensa logo em sacanagem), estudada mesmo, não só uma versadora de mão cheia. E o livro de hoje é justamente uma prova disso. Falemos dele então.

Histórias de Mulheres são, basicamente, ensaios, ou pequenas biografias de mulheres. Figuras importantes na história selecionadas pela autora, de cujas vidas são destacados pequenos e importantes trechos para tentar traçar um perfil não totalmente justo, mas pontual para seus CQDs. As histórias contadas por elas são incríveis: umas donas bem cruéis, outras bem sofridas, algumas dotadas de uma submissão dolorosa a seus maridos fascistas, outras, castradas pela época em que viveram. Discorramos.

Não há muito de específico que me lembre agora do livro, lido no começo do ano passado, se não me engano. Puxa, deveria ter começado esse blog bem antes, os livros estariam mais frescos na cachola. Mas enfim, lembro-me agora da história das irmãs Brontë, entre as quais a mais famosa era a Emily Brontë, que escreveu o Morro dos Ventos Uivantes, livrinho que tá debaixo do braço de toda fã de Crepúsculo que se preze. As três irmãs morreram muito cedo e assinavam com nomes de homem para poder fazer seu público leitor em uma época machista. Também lembro da Simone de Bouvoir, uma mulher mais nojenta que aquela gordinha do The Gossip, porque era nojenta na alma. Tem também a Hildegart Rodríguez, uma mulher criada para ser um símbolo de revolução sexual, assassinada pela própria mãe, Aurora, antes dos 20 anos. Tem também Zenobia Camprubí, esposa do prêmio Nobel (estamos falando muito dos Nobéis ultimamente nesse blog: Kawabata, Vargas Llosa, García Márquez, etc) Juan Ramón Jiménez, que passou a vida à mercê do marido, escrotasso e esquisito com todo mundo. Aliás, tem uma história muito boa do Jiménez da qual não me lembro muito agora, pois não está no livro, que envolve uma visita indesejada, para a qual Zenobia precisou fazer sala enquanto ele se escondia no quarto fingindo não estar. Até que resolveu fugir usando uma espécie de biombo, caminhando por trás dele, como se ninguém visse um biombo andante cruzando a sala. Quem sabe o Cássio consiga lembrar da história direito.

Rosa MonteroEnfim, são histórias variadas sobre mulheres variadas. Tem Frida Khalo (já chegou para algum amigo que apareceu com uma nova namorada de buço considerável e comentou: “e aí, tá comendo a Frida Khalo?”? Se ainda não fizeram isso, não façam. Estraga as amizades, vão por mim), tem Agatha Christie, a mocinha que era modelo pras esculturas do Rodin, enfim, um leque aí de opções que não são exatamente o calendário de 1997 da Playboy, mas que impressionam pelas histórias de vida, para o bem ou para o mal.

O prefácio também vale muito: um panorama geral da situação da mulher ao longo da história, em diferentes civilizações, faz uma boa entrada para o assunto do livro. E o posfácio trata de falar da predileção dos ingleses pelas biografias, gênero pouco lido na Espanha. A autora cita também sua empatia (ou antipatia) pelas figuras retratadas, enfim, faz aquele “finalmentes” bacana. Geralmente os leitores tendem a pular o posfácio e o prefácio (você é desses?), mas vale a pena se não é uma jogação de confete de algum especialista em literatura. Ah, já falei que a narrativa do livro também é muito tranquila a ponto de agradar até as donas de casa do clube do livro? Então, mérito da Rosa Montero. Rosa pra presidente do clubinho, já!

Essa edição da Editora Agir é muito boa, apesar da capa, que não gosto muito. Um sofá em forma de lábios não é algo que eu considere muito legal, sequer pouco legal, e francamente, odeio essas paradas de “Da mesma autora de ‘A Louca da Casa’”. Tudo bem que é uma chamada comercial, mas acho que isso deveria vir em cintas ou de outra forma que você pudesse jogar fora depois, acho extremamente constrangedor. É muito querer rebaixar o sujeito a um trabalho. Ou você queria que a novíssima vigésima coletânea do Chico Buarque viesse com a tarja: “Incluindo os hits ‘Roda Viva’, ‘Construção’ e ‘Geni e o Zepelin’” ou com o aviso “Do mesmo compositor de ‘Noites de Gala, Samba na Rua’, tema do personagem de Marcos Pasquim na novela Cubanacan”? Não, né? Pois é, o mesmo rola aqui. Ah, e colocar citação de resenha da Revista Cláudia não é exatamente um bom marketing, ok? Principalmente com os dizeres “As mulheres elegeram Rosa Montero a autora do momento. Ela é tão envolvente e sincera na escrita que faz qualquer um se sentir seu amigo íntimo”. Vontade de soltar um palavrão ao ler isso, mas vou me segurar. Sei que o leitor experimentado que ler uma porcaria dessas num livro corre como se não houvesse o amanhã. Mas, acreditem, embora as leitoras de Cláudia leiam Rosa Montero (duvido muito disso, aliás), a escritora é excelente. No mais, papel pólen fundamental e fonte Minion. Um cabeço é necessário em qualquer livro de contos ou ensaios, ponto pra eles. E por hoje é isso.

Ah, ainda dá tempo de mandar a foto da sua estante para bloglivrada@gmail.com Manda aí, vai ser maneiro!

Comentário final: 223 páginas pólen soft. Se bater em mulher, Maria da Penha no seu rabo, mané!

 

Ashley Kahn – Kind of Blue: a história da obra prima de Miles Davis (Kind of Blue: The Making of the Miles Davis Masterpiece)

Kind of BlueBom dia, todo mundo. Domingo glorioso esse, minha gente. Ganhei um irmãozinho na sexta feira, ele chama Theo e é cheio de personalidade. Vamos deixar esse post em homenagem a ele, e a internet há de preservá-lo para quando o garotão souber ler, saber o que o irmão com idade de tio escreveu quando ele era ainda um pequeno pacote de gente. Sem mais babações, vamos aos trabalhos.

Escolhi o livro de hoje oportunamente para pedir uma ajuda de vocês: rapazotes e raparigas (no bom sentido), vocês tem algum disco bom de jazz para me indicar que eu ainda não tenha escutado? Algo levinho, instrumental, matematicamente bem feito? Gosto muito do Bill Evans, mas já estou meio de saco cheio de ouvir todos os discos dele. Então sugiram aí, mas excluam as obviedades tipo Giant Steps, a Love Supreme, Sugar, Double Rainbow, Amsterdam After Dark, Ascenseur pour L’Echafaud, Kind of Blue, etc.

Falando em Kind of Blue, nosso livro de hoje é, aliás, um livraço sobre música. Geralmente passo longe desse gênero de livro, porque a quantidade de música que a mídia joga na nossa cabeça é tanta, que gosto de fazer da literatura um hobby silencioso, sem Meteoros da Paixão e Garotas Radicais. Biografia de guitarrista? Passei. Trajetória do grunge? Tô fora. O rock dos anos 80 em imagens? Vai catar coquinho. Autobiografia da Lady Gaga? Livrada na sua fuça! Chega de tanta música. Vamos desligar o ipod e ler um livro sobre outras coisas, né?

Mas hoje não. Hoje, escolhi o maravilhoso livro do Ashley Kahn (não me lembro direito das aulinhas de ingês da Tia Regina, mas Ashley não é nome de menina?), Kind of Blue: a história da obra-prima de Miles Davis, pelos seguintes motivos: 1- esse disco é uma das poucas unanimidades desse mundo entre as pessoas que entendem alguma patavina de música. 2- esse livro mistura reportagem e ensaio, ponto pra ele, minha gente. 3- Como já dizia o Capitão Nascimento, quem manda aqui sou eu. Então, vamos a ele.

Kind of Blue: a história blábláblá, ô título grande da gota!, é uma pérola para os amantes de um bom vinho e um bom jazz que leem Kant no banheiro e cantam as gatinhas na balada falando “oi, você vem sempre aqui nesse antro pequeno-burguês?”. Mentira, é um livro bom pra todo mundo, mas nos últimos anos o Jazz ficou estigmatizado como gênero de música que as pessoas mais fingem que gostam do que propriamente ouvem, ou seja, som de poser chatão que quer pagar de inteligente ouvindo um gênero que nasceu com a bugrada afro-descendente socialmente marginalizada dos Estados Unidos. Então, falar de Jazz ficou uma coisa perigosa, você pode acabar sendo tomado por um desses homens-bouquet (como bem definiu Xico-Sá em seu maravilhoso livro Chabadabadá).

E é assim, crianças, que vocês enrolam um texto por cinco parágrafos. Aprenderam? Agora é sério gente, o livro é um apanhado breve do jazz na época de Miles Davis, e o que foi importante na sua carreira, e no modo como se fazia e consumia o gênero musical na época para a criação de Kind of Blue, o álbum com as cinco musiquinhas mais espertas que você conhece. A partir daí, o autor conta os bastidores da gravação e da formação e analisa textualmente cada faixa do disco, umas das melhores descrições de músicas que eu já vi.

Ashley KahnO primeiro ponto alto do livro é esse apanhado histórico da época de Miles. O disco foi lançado em 1959, dois anos depois do cláááássico Time Out, do Dave Brubeck e seus miquinhos amestrados, e até hoje se discute qual dos dois foi mais impactante e influente na época. Se bem que é uma discussão meio vazia, tipo saber se foi o Greedo ou o Han Solo quem deu o primeiro tiro naquele boteco de Guerra nas Estrelas. Mesmo assim, o que se sabe é que o Jazz nunca mais foi o mesmo depois dessa época de ouro, e Kind of Blue representou bem isso. Se você não sabe, sente só a escrete que gravou: Miles no trompete, Cannonball Adderley no sax alto, vovô John Coltrane no sax de macho, Wynton Kelly no piano, o master of puppets Bill Evans no piano e na competência, Paul fuckin’ Chambers no baixolão e Jimmy Cobb na bateria. Convenhamos que, com essa galera, não podíamos esperar outro resultado. Claro que isso aconteceu por certas características da personalidade de Miles e outras confluências dos astros. Esse excesso de estrelas juntas, no geral, e principalmente no Brasil, e mais especificamente, no futebol do Brasil, só dá cagada. Fossem todos nascidos no país tropical e sairiam do estúdio com algo parecido com o “vou te pegar (tchá tchá) essa é a galera do avião”.

O segundo ponto importante é essa descrição das músicas que Kahn faz tão bem. Não só serve para fazer aí um transporte de suporte de linguagens, uma sinestesia cabulosa, quanto também para mostrar para os leigos em notação musical e bichos cabeludos semelhantes o quão bem pensadas são essas faixas que gente tapada diz que “é feito na hora”. A genialidade, senhores, pura e descrita em palavras.

Por fim, e é sempre importante dizer, vale o registro. Um disco dessa magnitude não poderia passar sem pelo menos, uma dúzia de livros. Ora, vamos combinar que não faltaram nessa vida livros sobre os Beatles, Jimmy Hendrix e outros sujeitos badalados de um tempo que não volta mais, então por que seria diferente com Miles Davis? Não seria, né? E a literatura sobre jazz é mais vasta do que supomos, o problema é que não chega muita coisa traduzida por aqui. Então, valorizemos e devoremos os livros bons de repórteres competentes que aparecem por aqui.

E o que falar desse projeto da editora Barracuda? É simplesmente sensacional, minha gente. Sim, tem papel offset, sim, a página é meio poluída, sim, é tudo cheio de letras, mas é um livro muito bonito! Essa capa sensacional, as fotos da época no miolo (e são muitas), o cabeço elegantinho, as legendas nas colunas de respiro, é um belo formato para um livro de música. Ah, e o prefácio quem escreve é o Jimmy Cobb, o baterista e o único integrante ainda vivo dessa galera (viram que maneiro é não usar drogas, crianças? Vocês acabam escrevendo um prefácio sobre seus amigos mortos mais famosos que vocês!), que, vá lá, não diz muita coisa, mas, mete aí de novo, vale o registro. E até a próxima!

Comentário final: 254 páginas offset. Em homenagem ao irmãozinho, não vamos bater em ninguém com esse livro hoje!