#lendovidaedestino

Como diria um desde já saudoso Parangolé, e rompendo com esta epígrafe um hiato longo sem textos escritos nesse espaço: Bota a mão na cabeça que vai começar.

Faltam apenas cinco dias para o início da leitura coletiva de Vida e Destino, e as solenidades preliminares fazem jus ao tamanho da obra. Não é todo dia, afinal, que mando vocês leitores encararem um tijolo de 900 páginas. Faço isso no máximo uma vez por ano e nunca nada tão grande. Mas calhou de ser este o escolhido para a categoria mandatória do Desafio Livrada! 2017, no qual espero que todos estejam se saindo bem até o momento. Vamos, com este post de hoje, dar o primeiro tiro de aviso a você, que já botou um pé para dentro da cerca do galinheiro e já pensa em fugir com as galinhas e os louros da fama sem ao menos se dar conta do que tem em mãos no momento. Arruma um exemplar e se prepare porque dia 1 de julho começamos esta longa jornada, com as instruções e o incentivo da querida Isa, do Lido Lendo, que a essa altura, espero, já deve ter soltado o vídeo sobre a leitura. Desde já o que posso adiantar para vocês é: fiquem ligados no canal do Livrada! e compartilhem impressões usando a hashtag #lendovidaedestino. Se puder dar uma força na imagem abaixo, também seria massa.

Aproveita e se liga no cronograma que a Isa fez:

  
Vamos voltar à vaca fria agora:

Vida e Destino é o tour de force do Vassili Grossman, escritor ucraniano e ex-combatente russo na Segunda Guerra Mundial, que servirá de palco e objeto daquilo que estamos prestes a ler. Loas públicas e ratificações sobre a importância da obra podem ser encontrados em todos os cantos da internet, de maneira que esta breve apresentação aqui serve, para além da solenidade supracitada, pra você, seu preguiçoso que é capaz de passar o dia vendo vídeo de gatinho mas é incapaz de ler um artigo da wikipedia de cabo a rabo. E também para dar um gostinho do que vem.

Basicamente o que temos aqui é um relato sobre a guerra de um ponto de vista não apenas particular como também muito íntimo. Grossman fez a vida de seu personagem Viktor Chtrum muito similar à sua, incluindo nas chagas de sua alma literária as dores experimentadas com a guerra de verdade. Sobre isso a apresentação do tradutor Irineu Franco Perpétuo lhe brifará muito melhor do que eu. Basta saber que não estaremos lendo um romance pensado nas bases de uma imaginação inconsequente, estaremos visitando os horrores experimentados pelo redator dessas 900 páginas. E se não é possível ver a Califórnia sem os olhos de Marlon Brando, também fica difícil encarar Vida e Destino como uma versão atualizada de um Guerra e Paz. Sejamos os olhos do autor e não nos recusemos a nada.

A guerra russa, chamada de A Grande Guerra Patriótica, é também uma guerra dupla. Um inimigo avança pelo Volga enquanto o outro se instaura no dia a dia das pessoas. O fascismo de Hitler estava sendo combatido por homens já acostumados ao fascismo de Stalin, e é claro que no meio disso tudo há um judeu de sobrenome Grossman para quem a vida é quadruplamente mais complicada. O antissemitismo, como vocês que leem Dostoievski já sabem, não é uma exclusividade nazista. Daí já dá pra imaginar como vai ser, né? Mas calma lá que ainda não terminei.

Não sei se existe algum leitor hoje em dia que não esteja habituado a ler um catatau desse calibre, já que as megastores estão apinhadas de livros de mais de mil páginas sobre dragões e zumbis que não só a negada tira da mochila pra ler no ônibus como acaba rápido e ainda pede mais. Entretanto, vai aqui algumas palavras amigas que largo na moral e na esperança de serem úteis a marinheiros de primeira viagem.

Vida e Destino tem muitos núcleos e muitos personagens, embora a trama possa ser centrada na família de Chtrum. Há uma lista de personagens ao final do livro que pode ser consultada, mas caso você se veja perdido em relação a alguém, fique tranquilo. Você terá bastante tempo para se familiarizar com todos.

É importante que se saiba que a narrativa fará grandes saltos entre os núcleos, de modo que acompanhar cronologicamente os acontecimentos pode ser um pouco difícil. Não tema. O que está em jogo aqui são os episódios, as experiências e o grande quadro pintado com as tintas do horror. Isso aqui não é Guerra dos Tronos pra você ficar acompanhando o que tudo acontece passo a passo, vato. Relaxe.

Desejo uma boa leitura a todos, mas espera até sábado que vem, caraio. Não vai queimar a largada que isso aí pega mal com a mulherada inclusive.

 

Michel Houellebecq – Submissão (Submission)

Capa Submissao_Alfaguara para novo padrao.inddVoltamos à carga com os textos no blog, e logo com Michel Houellebecq, nosso francês tristonho favorito, que já resenhamos por aqui quando falamos de Extensão do Domínio da Luta, Partículas Elementares e Plataforma. Gosto muito do Houellebecq, porque ele te joga pra baixo e você se deprime mas dá umas risadas pelo menos, e ele deriva de uma linha boa de escritores engraçadinhos porém pertinentes que você deve ler em determinadas épocas da sua vida, tipo Chuck Palahniuk, antes dos 18 anos, Will Self, dos 18 aos 25, e Michel Houellebecq, dos 25 em diante. Fato é que o sujeito vende milhares de livros na França por esmiuçar de maneira muito lúdica e muito agradável (ainda que bem triste) questões da existência humana que vem atormentando os franceses desde, principalmente, o século 20. E ele parece ser um cara que tá sempre ligado nas contemporaneidades, então mal não faz.

Submissão é o livro da vez e nele, Houellebecq aborda questões polêmicas em vigor na França de uma maneira um tanto bunda-mole para os próprios padrões: a ascensão islâmica na Europa e principalmente na França, com os imigrantes do norte da África tomando corpo nas perifas dos grandes centros e os ataques aos jornais engraçadalhos que ou as pessoas são ou as pessoas não são. O protagonista é François, mas pode ser o mesmo de sempre: um cara tristonho, meio cínico, meio tarado, politicamente incorreto, que não liga pra muita coisa exceto pra bebida boa, enfim, quem já leu alguma coisa do Houellebecq sabe de quem eu tô falando. O que muda é o emprego: dessa vez, assim como em Partículas Elementares, é um professor de letras especializado no Huysmans, aquele satanista que se converteu ao catolicismo e que escreveu uma meia dúzia de romances franceses que muito pouca gente além dos próprios franceses leem (com exceção de Às Avessas, um clássico universal).

O escritor situa o personagem em ação pela primeira vez contemplando as alunas muçulmanas e chinesas da faculdade, que chegam quietas e saem caladas. Essa posição subalterna dos islâmicos vai começar a ser alterada drasticamente na trama com a crescente (hã, hã, sacou? Islã, crescente, rá!) expressividade da Fraternidade Muçulmana, o partido teocrático que, em seu braço francês, finalmente consegue, lá pelas tantas do romance, colocar um presidente towelhead. E a partir daí, amigo, as coisas vão ficando estranhas, meio escalafobéticas, começa a aparecer neguinho morto aqui e ali e, mais rápido do que se possa perceber, mudanças bruscas começam a afetar sua vida. E aí ele vê que, diante do quadro geral, até que a coisa não é tão ruim assim. Ops, isso era spoiler, podia contar? Já sabe, né?

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Michel Houellebecq: ô coisinha tão bonitinha do pai

Bom, mencionei esse pequeno spoiler aqui já que uma das questões sociais de Submissão é esse conforto que tradições religiosas como as do islamismo podem trazer a velhos machistas como o nosso protagonista, às voltas com um mundo em que já não se pode viver por pura inapetência. O livro já começa com François falando que, ao entregar seu doutorado em Huysmans, terminou a etapa mais importante de sua vida. Dali pra frente, a falta de roteiro e a inadequação para relacionamentos, amizade e qualquer coisa que não seja comer, beber e dar umas bimbadas ocasionais traz uma melancolia e um desprendimento da vida significativos para o protagonista. Fora isso, e de uma maneira geral, a facilidade com que o país abraça essas mudanças é uma forma do escritor dizer “vocês acham que não, mas bem que vocês gostariam de um pouco de ordem nessa bagaça”, e reside aí a polêmica mencionada no chamariz “O livro mais polêmico do ano”, que, aliás, é péssimo. É talvez a primeira vez na bibliografia do Houellebecq em que a situação converge a favor do personagem, mesmo que ele não se dê conta disso em um primeiro momento. Porque antes era legal ser descolado da sociedade careta, hoje o legal é ser careta na sociedade descolada, né não, véio? Então é isso o que ele traz de novo. Agora, de velho, é o mais do mesmo. A tristeza, a inadequação para a vida, a falta de tino pra tudo, as filosofias baratas que não se sustentam nem por um minuto e todas essas coisas gostosas que a gente gosta de ler pra se sentir melhor com a nossa própria vida. Recomendo, viu?

Esse livro foi o primeiro dele que saiu pela Alfaguara. Os dois primeiros saíram pela editora Sulina e os três últimos, pela Record. O projeto gráfico ficou bem bonito, com pantone especial para o dourado da capa em preto fosco, mas por dentro, é um livro da Alfaguara, tudo meio padronizado até onde eu sei.

Comentário final: Allah wakbaaaar! LALALALALALALALALA

Paulo Scott – Habitante Irreal

paulo scottTinha algumas metas de leitura esse ano, que até estipulei para mim mesmo no Desafio Livrada 2013 (como estão vocês com os seus?), mas se dissesse que consegui cumprir algum deles, estaria mentindo. O que não quer dizer que não tenha conquistado outros objetivos com os livros que me passaram pelas mãos ao longo do ano (e devo dizer que este ano foram poucos, em comparação com anos anteriores. Vida que freia, sabe como é, todo mundo precisa parar e respirar mais). Conheci mais dos russos, descobri autores novos muito bons e, mais do que isso, realmente me empenhei em encontrar autores brasileiros contemporâneos que valem a pena ler (e valer a pena ler já é demais pra grande maioria da produção atual). Paulo Scott, com esse Habitante Irreal, foi uma descoberta surpreendente. Jamais imaginaria tanta profundidade cultural, temática e literária em um romance escrito em 2011. Recado pros mau-amados da área: tem spoiler.

O romance tem como ponto de partida o final da década de 80 e um protagonista chamado Paulo, portoalegrense descontente com os rumos que o PT tomou depois de conquistar a prefeitura na capital do Rio Grande do Sul e com seu trabalho numa firma de advocacia. Ele resolve pedir a desfiliação do partido, as contas no emprego e fica meio perdido na vida até que encontra uma indiazinha de 14 anos na beira da estrada pedindo carona. Ao dar carona pra ela, ele começa a se envolver com a vida de Maína, que é o nome da indiazinha, numa espécie de compensação político-cultural pela opressão colonial e pelo descaso do seu partido com as minorias marginalizadas. Pelo menos foi isso que eu entendi. Só que, obviamente a parada pega mal, porque se esse negócio de “estupro de vulnerável”, como costumam chamar, já é complicadíssimo, com uma índia dimenor, rapaz, a turma dos direitos humanos cai matando. O sujeito vai pra cadeia depois de uma merda com a polícia e passa um tempo em Londres porque, sei lá, passar a pior em Londres não é coisa só de Orwell. Enquanto isso, no Brasil, Maína, que tinha engravidado do Paulo, dá a luz ao Donato, um rapaz índio que acaba sendo adotado por um casal de assistentes sociais, ou algo assim. E a partir daí, começa uma história sobre passado, cultura, política, erros e acertos cujo teor preciso generalizar para esse blurb sob pena de entregar mais do livro do que já entreguei.

por Renato ParadaO pior de tudo é que está justamente nesse desenrolar a maravilha do texto do Scott, de modo que fica bastante complicado fazer uma resenha adequada desse livro só com essa sinopse geral, mas vou deixar assim mesmo. Se você ainda não teve vontade de ler esse livro pelo que eu falei aqui, leia pelo que eu ainda não falei. O jeito como o autor conduz a obra é de uma maturidade literária jamais vista nessa geração de escritores, e lembra gente do naipe de Don DeLillo e Philip Roth. E a temática – isso de discutir a geração que atualmente está no poder no Brasil, e debater as relações delicadas com nossas raízes – é igualmente sem paralelo na nossa atual literatura. Scott sabe separar bem os estilos, e se resolve ser prosador poético em um capítulo, o faz distintamente da prosa geral do livro, que é densa e sem maiores floreios.

E essa também não é uma história bonita, muito pelo contrário. A literatura dele, comumente suja, chega atropelando em tabus e vira para lados que o leitor não necessariamente quer ler, mas é confrontado com um mundo sujo e amoral à força. E as conexões que o livro sugere são ainda mais assustadoras, mas isso é trabalho para o leitor e não para o comentador do livro.

O projeto gráfico da Alfaguara é demais, e essa capa é meio engraçada e meio assustadora, mas, no geral, não foge muito dos outros livros da editora. À exceção de alguns capítulos, que o autor escreve inteiramente no formato de nota de rodapé, pra dar a entender que a história ali não está sendo narrada, mas meramente comentada e preparada paras as próximas páginas. No mais, é um livro sombrio, delicado e raivoso. Gostei

Comentário Final: 260 páginas de papel pólen. Uma porrada na cabeça do PT.

Kyoichi Katayama – Um grito de amor do centro do mundo (Sekai No Chusshin De Ai Wo Sakedu 世界の中心で、愛をさけぶ)

SEKAI NO CHUSSHIN DE AI WO SAKEDUIh, são dez horas da noite, eu saí de casa pra ver a luta na televisão e esqueci de escrever pro blog de novo. Peraí, de novo não, da outra ocasião eu não escrevi porque a vida tá difícil mesmo, e eu espero que vocês me perdoem e me entendam. Bom, felizmente dessa vez o meu camarada Lucas Lazzaretti emprestou-me o seu laptop para que eu digite essas rápidas linhas enquanto tento encontrar um acento e outro nesse teclado maluco. Por isso hoje vou ser breve, cumpri tabela e fazer algo que eu não faço há muito tempo, que é meter o malho num livro.

Por isso, vamos lá. De cabeça falo hoje de Um grito de amor do centro do mundo, do Kyoichi Katayama, um livrim meia boca demais que eu quis ler pra saber que cara tinha um best-seller japonês. Achei que, por ser do Japão, esse povo tão sofrido que hoje estamos homenageando aqui, pudesse ser um best-seller melhor que os dos outros países. Como é o caso do Michel Houellebecq na França por exemplo (e não vamos falar de Marc Levy aqui, pelo amor dos meus bagos). Houellebecq vendeu meio milhão de cópias com seu penúltimo livro, A Possibilidade de uma Ilha, que um dia eu resenho. Isso se meus números estão atualizados. Bom, o Katayama vendeu nada mais nada menos do que 3,5 milhões de cópias no Japão. Isso num país que é uma tripinha menor que o Chile. Quero ver um livro vender isso aqui no Brasil. Nem Laurentino Gomes, amigo. Bom, daí que imaginei que o livro talvez fosse um desses petardos que teria a sorte de ser mais vendável do que rosa branca de iemanjá no ano novo. Mas, amigos, me enganei. Mea culpa, mea maxima culpa.

Um grito de amor no centro do mundo conta a história de Sakuratô e Aki, um menino e uma menina, repectivamente, que se apaixonam na escola ainda, mas tempos depois ela descobre que está com leucemia e morre (não se preocupe, não contei nenhum spoiler). Putz, me digam: quantos Chick Flicks vocês já viram com um roteiro como esse, com algumas váriáveis, como idade e qual dos dois tem câncer? O cara já começou mal, ou seja, explorando um tema mais batido que músculo antes de ir pra panela. Mas bom, quem ainda não está cansado de ler sobre isso, e quer achar um ticket fácil pra avenida do choro, o livro pode ser uma boa. Só que, se a história não é muito original, a forma não é muito inovadora também. Uma escrita beeeem mela cueca, cheia dos sentimentalismos baratos e formas muito usadas. Coisas como “a vida é triste, como as folhas das árvores caindo num outono frio” etc. Já falei que existem frases que me fazem levantar da cadeira e querer gritar “gol!”. Pois esse tipo de coisa me dá vontade de levantar e xingar a mãe do juiz.

Tá, exagerei um pouco, mas faz parte da crítica ser impiedoso com o livro pra depois dar uma levantada na moral do livro. Isso quando o crítico não é cruel, como eu não sou. Quando o cabra é cruel, ele faz o contrário: levanta um pouquinho a bola e depois enterra todo mundo. Bom, o livro não é desagradável de ler, a verdade é essa. E é curtinho, não atrapalha o cronograma de ninguém e pode ser uma boa leitura pra você levar pra praia e ler embaixo de um belo guarda-sol. São 155 páginas, afinal, não machuca ninguém. E vá lá, quem sabe você se emociona. Ah sim, o título do livro faz uma menção ao livro do Harlan Elisson “Crying out love in the center of the world”. O Murakami também faz menção no título do livro dele que eu resenhei, né? Que cambada de japa referente!

Esse projeto gráfico da editora Alfaguara é o bicho ou não é? Alguns me disseram que a japonesinha da capa matou o resto da foto que tem um fundo bacana, mas eu gosto da capa. A tradução foi feita diretamente do japonês por alguém que não vou saber citar de cabeça porque o livro está longe, e o papel tem uma gramatura grande pra parecer que tem mais livro do que na realidade tem. Bom, o projeto deles muda muito pouco. Ainda assim, valeu a intenção da editora de trazer um best-seller que não seja americano ou o nosso inominável Paulo Coelho. É um best-seller? É. Mas pode ser cult? Pode também. Tô parecendo o Kleber Machado? Um pouco. Vamos parar por aí? Sim.

Comentário final: Escrevi o último parágrafo já em casa. Que droga essa luta do Shogun…

Pedro Juan Gutiérrez – Nosso GG em Havana (Nuestro GG en la Habana)

Finalmente acabou o carnaval. Quer dizer, acaba hoje. A voz do cara que dá as notas para as escolas de samba na apuração de hoje tem mais ou menos o efeito da musiquinha do fantástico: bate aquela tristeza e você pensa que o fim de semana já está acabando e que amanhã começa a semana. Ou, nesse caso, que o ano útil está começando. É claro que isso não vale pra mim. Amanhã cedo estou na labuta de novo, tá pensando o quê? Aqui não tem corpo mole não.

Enfim, enquanto vocês dão seus últimos mergulhos na praia, tomam suas últimas caipirinhas na hora do almoço, fazem o último xixi na rua (assim espero!), pegam a última doença venérea do ano, vamos falar de literatura, ê! O livro de hoje é mais um livro excelente do nosso querido Pedro Juan Gutiérrez que eu recomendo para vocês. Um livro curtinho e divertido, que tem um pouco de tudo: ficção histórica, comédia, trama policial, perseguições de carro, espionagem e a vida de um grandessíssimo escritor: Graham Greene, o GG do título.

A história começa a partir de um fato real: a visita de Graham Greene à Havana, na década de 50. Isso era na época em que Fidel ainda não tinha metido um xeque-mate no Fulgêncio, e Cuba ainda vivia naquelas de todo mundo sendo vigiado, a suspeita do FBI agindo e tudo o mais que o submundo de Havana comportava, e ainda comporta até os dias de hoje, como Gutiérrez faz questão de nos mostrar. Bom, Greene, enquanto está em Cuba, descobre que seu nome está ligado a uma história de assassinato e espionagem, e que alguém está usando seu nome indevidamente, portanto. Aí se mete com o bàs-fond cubano, com putas e putos, ladrões, tarados, etc. Personagens que Pedro Juan já está acostumado a retratar — alguns deles, não me lembro quais agora, já foram retratados em outros livros dele.

Eis o que eu queria dizer sobre esse livro: Nosso GG em Havana é um livro muito diferente da obra de Pedro Juan. Parece que nesse ele resolveu escrever com a cabeça de cima e colocou uma porção de elementos da literatura policial, numa trama coerentemente sóbria. Claro, tem um pouco das safadezas de sempre, mas muito mais contidas, essas. Pesou no livro o raciocínio racional, o mercado do seu id. E Pedro Juan, com isso, provou ser um grande escritor do Cristal, conforme definição mutcho loka que o Italo Calvino fez uma vez, que não cabe explicar aqui agora.

O livro também é uma leve homenagem a Graham Greene, escritor que o autor adora. O título inclusive, vem de um livro de Greene, “Nosso homem em Havana”, também uma estória de espionagem, polícia e ladrão, etecetera. Não que Greene faça alguma vista na literatura de Gutiérrez. Nem sinal dele nas influências. Ainda assim, bom, uma homenagem. Você pode gostar do cabra e não tentar ser como ele, é ou não é? Mais do que isso, porém, é a homenagem à Cuba pré-Fidel. A Cuba moleque, a Cuba arte, a Cuba marota. É claro que eu, do alto da minha falta de verba, nunca fui para Cuba, ainda mais pra Cuba de Fulgêncio, mas tenho a nítida sensação de captar a aura do lugar lendo esse livro. E não é essa intenção de busca pela verdade disfarçada de busca pela verdade uma das coisas mais legais da literatura. É. Quem tá falando sou eu, então é.

Esse projeto da editora Alfaguara é classe bagarai. Esse estilo de capa cheia dos elementos foi o escolhido pras capas do Pedro Juan (a trilogia suja tem a capa poluída desse jeito), e vamos dizer que, pra esse livro, a coisa encaixa direitinho. Mérito de Tita Nigrí. Por dentro, quem já abriu um livro da Alfaguara, abriu todos. A fonte é um pouquinho maior nesse, pra preencher melhor as 125 páginas do romance. A tradução é dos já citados aqui Paulina Watch e Ari Roitman, e o livro tem citações de John Cheever e do próprio Greene. Vale aqui a citação do último, tirada da fala de um personagem de O Americano Tranquilo, seu livro mais badalado: “Pensar é um luxo. Você acha que o camponês se senta para pensar em Deus e na Democracia quando volta de noite para seu casebre de barro?”. Tá, claro que o exemplo é completamente forçado, e só pensa quem foi educado pra pensar, não importando as condições de existência. Aliás, que bela porcaria essa citação, não me convenceu de absolutamente nada. Sai fora, Greene, seu mané. Vem conhecer o profeta Gentileza e outros zés do mundo, vem. Ah, estressei-me agora, então eu vou.

Comentário final: Estação primeira de Mangueira… DEZ!!!

Mario Vargas Llosa – Elogio da madrasta (Elogio de la madrasta)

Elogio de la madrastaSaaaaai da frente! Sem tempo pra brincadeira que hoje eu tô com pressa! Não é ótimo isso, essa sinceridade com que eu trato vocês, queridos leitores? Acho que o jornalismo tinha que ter mais dessas. Queria ver o William Bonner começar a escalada do Jornal Nacional assim: “Hoje não tem notícia nenhuma” (passa pra Fátima) “Nada aconteceu no mundo” (passa pro William) “E por isso hoje não tem jornal” (passa pra Fátima) “Fique agora com essa novela chatona da Globo” (passa pro William) “Boa noite” (passa pra Fátima) “Boa noite”. E aí aquela música de fundo que toca enquanto eles fazem a escalada vai minguando e desafinando, até parar, e pronto, acaba o jornal. Ou então você lê uma crônica do Elio Gaspari no jornal e ele escreve: “Sabe do que mais? Tá mó solzão, calor desgraçado, vou descer a serra e pegar um bronze no Guarujá. Vocês não vão achar ruim, né? O que vocês fariam no meu lugar? Tchau, galera!”. Mas enfim, disse que tava com pressa e tô mesmo, então vamos ao ponto.

Elogio da madrasta! Mario Vargas Llosa! Prêmio Nobel 2010! Literatura peruana! (toca a flautinha tosca no fundo, versão de “Estou apaixonado” do João Paulo e Daniel que só os peruanos sabem fazer: pfuu pfuu pfu pfuu pfu pfuuuuuuuuuuuuuu). Manja, já coloquei as tags no texto, economizei um tempo monstro. Rá, otimização é comigo. Elogio da Madrasta é um livro pequetitinho que foi lançado pelo escritor lá em 1988, quando Faith do George Michael bombava nas rádios. Nele, esse autor galã narigudo que vocês tão vendo aí embaixo traça uma estorinha simples, de um patriarca chamado Dom Rigoberto que, após enviuvar, casa-se de novo com a gatíssima dona Lucrécia, que parece ser mais gata do que o nome sugere (perdoem-me as Lucrécias desse mundo). Acontece que Dom Rigoberto também tem um filho, chamado Alfonso, o Fonchito, que, verdade ou mentira?, tá meio que dando em cima da madrasta do alto de seus oito anos de idade. Oito anos, Brasil! E você aí achando que sua filha modernete que tem doze anos, pinta o cabelo de rosa, é vegetariana e faz cosplay de Sakura Card Captors ou coisa que o valha é que é precoce. Não é mole, não.

Mas deve ser alguma coisa na água que se toma nessa casa, não sei. Vai que caiu uma semente de catuaba na caixa d’água, porque o fato é que Dom Rigoberto e Dona Lucrécia fazem altos joguinhos sensuais e são permissivos com tudo. Ou seja, a sacanagem rola solta naquela casa. Sobra de inocente só a babá do Fonchito e o próprio, que talvez não seja tão inocente assim.

Já deu pra perceber que estamos falando aqui de um romance erótico, não é? É, mas não, porque nem sempre. Veja bem, Vargas Llosa mistura a esse componente safadjenho histórias fantasiosas da mente de Dom Rigoberto, que cria estorinhas para os quadros que ele tem na parede (e que temos a sorte de apreciá-los também no livro, embora em preto e branco. São uns quadros assim meio que renascentistas, sabe? Cheio daqueles gordos de bunda de fora fazendo coisas prosaicas, tipo pequeniques e cosplay da Sakura Caps Creditors. Isso é uma característica essencial no livro: a imaginação fértil de Dom Rigoberto e a mistura de narrativas — e não só isso, de gêneros literários diferentes também — pois são esses os elementos primordiais que irão compor (sorry, mesóclise com verbo “compor” é coisa pros Dennis Rodman da literatura) a continuação desse livro, intitulado “Os Cadernos de Dom Rigoberto” (falarei dele algum dia, mas já adianto que nesse livro, Llosa pontencializa a ideia à quarta potência pelo menos). Isso tudo pra mostrar que Vargas Llosa é e sempre foi um cara altamente gabaritado pra transitar tranquilamente entre os mais variados estilos, gêneros e temáticas da literatura. E todo mundo treme nas bases, até a palmeira estremece, então palmas pro Llosa que ele merece.

Essa edição da Alfaguara é um chuchu igual a todos os livros dele. Ainda acho um pouco estranho essas fotos de pessoas em que não aparecem suas cabeças, mas entendo que seja uma preocupação editorial em não interferir na nossa experiência de fantasiar a fisionomia dos personagens, coisa que a Martin Claret deveria aprender, porque até hoje eu acho o Idiota, do livro do Dostoiévsky, a cara do Fabio Lione, do Rhapsody (não que ele não possa ser idiota). Enfim, a edição tem a formatação padrão dos livros da Alfaguara, então sem muito o que comentar. Tem o fato de que é uma tradução feita em conjunto: Ari Roitman e Paulina Wacht, que traduziram outros títulos do autor, além da tradução da Trilogia Suja de Havana lançada pela Alfaguara. Acho que eles são meio que responsáveis pela literatura latino-americana na editora, mas pode ser que eu esteja errado. É isso então, pessoas, deixa eu ir que eu tô atrasado!

Comentário final: VOU PERDER O ÔNIBUS!

Ps: Vocês nem viram que eu mudei o slogan do blog, de tanto que vocês me zoaram, né?

Ps2: em breve, a lista dos participantes do Desafio literário. Quem não escolheu seu autor, ou não o definiu, faça-o aí que vai ser maneiro!

 

Haruki Murakami – Do que eu falo quando eu falo de corrida (What I talk about when I talk about running)

What I talk about when I talk abour runningHoje é domingo, e ninguém quer saber de literatura hoje, êêê! Ainda assim, o rapazote aqui cisma em soltar uma resenha nesse dia em que nem Deus trabalha. Mas tá maneiro, vamos lá.

“Oba, literatura japonesa”, pensou o leitor desavisado que não sabe que Haruki Murakami é o japa menos japa da face da terra. Sim, ele é japonês, edokko da gema, mas não faz nada que de longe nos remeta àquela musiquinha “tan tan tan tan tan BUOOONG” que vem na sua cabeça quando você pensa em Japão. E, pra piorar, vamos falar de um livro que, por si só, já é distanciado de toda a literatura produzida pelo rapazote. Trata-se de Do que eu falo quando eu falo de corrida, um livro que reúne pequenos ensaios sobre o ato de correr, aquela coisa sofrida de que ninguém gosta, mas faz por um estranho desejo de se machucar e por uma mais estranha ainda vontade de ouvir o doce som das suas coxas flácidas batendo uma na outra.

Antes de tudo, um breve resumo da ópera (ó como eu sou legal, gente! Vocês podem sair daqui mentindo pra todo mundo que leram um livro): Murakami tinha um barzim de jazz em tóqui, fumava como um Humphrey Bogart de olho puxado e tava encostadão na vida, até que teve a ideia maluquete de escrever um livro, e começou. Deu certo, conseguiu ser publicado e resolveu viver disso. Passou o ponto da birosca e pensou: “tá, vou ficar aqui o dia inteiro com o rabo sentado nessa cadeira botando letra no papel. Preciso fazer alguma coisa para não virar um primo distante do Jabba”, e resolveu começar a correr. Bom, sei lá, eeeeeeeeeu prefiro algo menos agressivo como pedalar ou andar de skate, mas o fato é que ele começou a dar umas carreirinhas aqui, outras lá e, um ano depois, o sujeito tava correndo nada mais, nada menos que a maratona original, da cidade de Maratona até Atenas! Bom, não poderíamos esperar outra coisa, afinal, há, muito bem inculcado no nosso insconsciente coletivo, o estereótipo do japa baixinho maluco e, bem, Murakami não parece um primor de altura. A partir daí, faz um programa de corrida diária e participa de pelo menos uma maratona por ano. Entre uma corridinha e outra, escreve um livro, um ensaio (como os desse livro) e traduz para o japonês a obra do escritor Henry James.

No livro então, o autor esclarece a nós, sedentários convictos, questões cruciais como “o que passa na cabeça de uma pessoa enquanto ela está correndo?” e “o que leva alguém a correr uma maratona?” e outras lições simples do que ele aprendeu em sua vivência como corredor. E quando eu falo em lições, não espere nada do tipo Minutos de Sabedoria do Dalai-Lama, ou A Arte Cavalheiresca do Arqueiro-Zen, ou A Arte da Guerra. O cara não se acha até altas horas pra ficar te cagando regra, amigão.

Algumas coisas me impressionaram muito nesse livro. A primeira é de ver como o japa é um senhor atualizado e modernoso. Que tipo de sexagenário (que ele é, ok? Não se deixe enganar pela cara de pêssego) corre todos os dias e coloca no mp3 player coisas como Gorilaz, Beck e outras paradinhas descoladas da galera sarada? Tudo bem que na maior parte do tempo ele só ouve Lovin’ Spoonful, uma banda muito da furreca que tocava nos anos 60 e cujo maior sucesso ouvi uma vez numa dessas coletâneas de banca de jornal, mas o título me foge agora. Ainda assim, é admirável. Outra coisa que me impressionou foi ele ter corrido uma ultramaratona — cem quilômetros em um dia, amizade. CEM! Aposto que agora o estereótipo do japa baixinho maluco está começando a se tornar mais claro, né? É pra botar os bofes pra fora ou não é correr tudo isso num dia? E, por último, me impressionou o fato de eu ter me interessado tanto por um livro que fala sobre corrida quando eu mesmo não gosto de correr. Acho que isso é um mérito inegável pro escritor: fazer você gostar de um assunto que você não gosta. E, apesar de ser uma escrita altamente simples, sem floreios, sem frufru, sem ui ui ui ai ai ai, é altamente cativante (talvez até por causa disso, mas eu geralmente não curto esse tipo de simplicidade).

Esse livro foi o último do autor a ser lançado pela editora Alfaguara, que geralmente costuma ser arbitrária nas capas de seus autores mas que, no entanto, parece ter um projeto de imagens de capa muito específico para o Haruki queridão. Sim, falo desses raios de “sol nascente”, a única coisa do livro que faz tocar na sua cabeça o “tan tan tan tan tan BUOOONG”. Só que, pra esse livro, escolheram raios pretos e brancos que podem ser vistos até o seu centro, onde aparece a silhueta de um homem correndo. Ou seja, é psicodélico demais, e se você girar esse livro na frente de alguém, se prepara para pegar a vítima no ar, porque o desmaio é quase certo. Eu mesmo recebi esse livro num dia fatídico em que me descobri com uma dessas viroses de inverno que fazem você encher o tênis a qualquer hora, e eu, já meio grogue, de pressão baixa e fortemente desidratado, achei que essa capa pareceu a porta do apocalipse se abrindo na minha frente. Foi maneiríssimo. Fora isso, é aquele padrãozão da Alfaguara que já estamos carecas de saber: um livro bom, bonito e relativamente barato. Ah, tem uma foto do Haruki Murakami correndo logo nas primeiras páginas, uma foto da década de 80 com a câmera posicionada no chão, o que dá um efeito de Rocky, um Lutador na terra do tokusatsu. Enfim, recomendo pra quem é adepto desse tipo de masoquismo, ok? Bom domingo pra todo mundo.

Comentário final: 152 páginas em papel pólen soft. Corra para as montanhas! (Mentira, nem corre, o livro é inofensivo)

 

Mario Vargas Llosa – Tia Julia e o Escrivinhador (La tía Julia y el escribidor)

La tía Julia y el escribidorBom domingo, moçada! Aí, manerassas as fotos de estantes que eu estou recebendo, mandem mais, vamos fazer um post irado sobre isso. O e-mail, já sabem, é bloglivrada@gmail.com. E sem o nariz de cera habitual, vamos ao que interessa. Não, não é a festa da democracia, mas, se querem saber, meu voto vai para o Plínio de Arruda, porque ele tem cara de presidente e um belo patrimônio acumulado ao longo de seus longos 70 anos, segundo li em uma matéria da Folha de S. Paulo. Minha única preocupação é que ele é velho demais, e desconfio de quem quer fazer um futuro melhor para o Brasil sabendo que ele próprio não vai estar nesse futuro. No mais, o resto da corja de canalhas, vocês votem em quem quiser trabalhar no seu estado que, independente de qual seja, tenho certeza de que está um lixo.

O livro de hoje é um livrasso que ganhei inesperadamente de minha mãe durante um almoço em Paraty. Gosto de ganhar livros que parecem bons, mas que por alguma razão não estavam nos meus planos de futuro próximo. É justamente o caso. Esses livros da Alfaguara têm uma página que é geralmente maior do que a dos livros que eu costumo ler, então minha percepção de tempo acerca da leitura fica meio desorientada, e sempre acho que levo muito mais tempo para lê-los. Bom, graças a uma reclamação no Procom que eu fui fazer, em 2008, a leitura desse livro foi super rápida. Horas sentado naquele banco poderiam me fazer acreditar que a lentidão dos órgãos públicos brasileiros está formando um país de leitores, mas a maioria das pessoas prefere sentar ali e olhar para o teto. Não me espantam que fiquem irritadas assim, não sei como conseguem. Mas falemos disso outro dia.

Já disse aqui, na minha resenha sobre o Pantaleão e as Visitadoras, que o Mario Vargas Llosa é um escritor de mão cheia por dominar tão bem vários estilos diferentes entre si. Se no outro livro foi com o gênero epistolar que ele chutou alguns traseiros, neste agora ele consegue misturar romance autobiográfico com contos — algo que nunca havia visto em minha curta experiência como leitor.

A história é a seguinte: Varguitas, um garotão de dezoito anos, que trabalha numa rádio e quer se tornar escritor, começa a namorar a própria tia. Pera lá: não é da família, é tipo uma cunhada da tia, se bem me lembro, mas na família, o que não é do núcleo de pai e mãe, nem avô e avó, ou primo, é tia. Tá, essa frase foi muito ao estilo Cleber Machado, vou tentar não me repetir. Ao mesmo tempo, conhece o lendário Pedro Camacho, um escritor boliviano de rádio novelas que é sensação em todo país. Então a história se divide entre seu romance com a Tia Julia (com quem Vargas Llosa realmente se casou, e depois se separou para casar com a prima. Que cara mais freak) e contos que seriam as novelas escritas por Pedro Camacho. Falemos mais dele.

Pedro Camacho é o personagem que o autor criou para personificar o escritor ideal. Ele vive para escrever: durante todo o tempo em que está acordado, está escrevendo, criando, bolando histórias. Embora, em termos de produtividade, seja esse o ideal do escritor — principalmente do aspirante a escritor Varguitas, que tem em Camacho um ídolo — a história mostra que a realidade é bem mais amarga. Baixinho, feio, antipático e cheio de preconceito com as pessoas, Camacho tem uma existência muito triste, e o excesso de trabalho o leva a confundir os personagens de suas novelas, tornando os contos cada vez mais misturados, como naquelas brincadeiras de criança de misturar os três porquinhos com João e Maria e assim por diante.

Mario Vargas LlosaAinda assim, os contos de Vargas Llosa assinados por Pedro Camacho são espetaculares. Lembro-me especialmente de um, sobre um sujeito que foi fazer terapia porque sentia-se culpado de ter atropelado uma criança, e a psicóloga sugere a ele uma terapia baseada na raiva por crianças, em que ele devia ser mal e chutar-lhe as costelas se fosse possível. Impagável, realmente, e me lembrou uma certa música da gloriosa banda Merda, com o título justo de “Eu odeio crianças” (acho que cada vez que eu faço alguma referência ao universo do hardcore, perco uma penca de leitores que passam a me considerar mais burro).

O romance de Varguitas com Tia Julia também é recheado de humor, com todas as neuroses de uma típica tia, encanada e solteira, acerca de sua relação secreta (a família não pode saber). Tem também o seu companheiro radiofônico, Pascual, que é o típico coadjuvante que rouba a cena. Tinha algo a respeito dele que eu achava o máximo mas, folheando o livro aqui, não consegui achar e me lembrar direito. Algo a ver com o fato dele só anunciar tragédias no rádio,mesmo que tenham acontecido no outro lado do mundo e há tempos. Perdão, minha memória já não anda lá essas coisas, e mesmo que tenha lido o livro há apenas dois anos, já me esqueço destes detalhes.

Foi nesse livro que me deparei pela primeira vez com os contos do Vargas Llosa, e, depois pude confirmar lendo Os Chefes, é preciso tirar o chapéu pra esse cara. Sério, algum livro dele é preciso ler. Vargas Llosa é como os Beatles: não dá pra dizer que não gosta, porque ele tem várias facetas (ao menos é isso que dizem pra mim, que não ligo muito pra banda).

Já comecei a comentar essa edição da Alfaguara lá em cima, mas vamos ao restante dela. Bom, o último livro da editora que li antes de ler esse havia sido Nosso GG em Havana, uma história curtinha e muito irada do Pedro Juan Gutierrez, com tipografia garrafal. Estranhei a miudeza desse livro, o que, aliado ao tamanho e ao número de páginas, me pareceu um livro gigantesco. Só mesmo o Procom ou o Detran para fazer-nos vencer calhamaços como Ulysses como se fosse gibi do Chico Bento. Sério, desaconselho adentrar em uma repartição pública sem estar munido de documento com foto, xerox de tudo e literatura pesada e das boas. E lanchinho também. Mas é um livro maravilhosamente bem acabado e tem uma das melhores capas dos livros do Vargas Llosa já lançados pela editora. Nostálgica pá dedéu com esse radinho vintage aí, “Philco Transitone”. Onde será que a gente arruma um desses? Apesar do calhamaço, pegaram umas páginas de gramatura boa, que dá vontade de ler e faz muita diferença para mim. Por último, uma dica pra editora: tava na hora de reeditar A Festa do Bode, hein?

Comentário final: 359 páginas gigantes em pólen de gramatura alta. Uma pedrada na sua fuça!

Rosa Montero – História do Rei Transparente (Historia del Rey Transparente)

E começou as postagens do meio da semana. Agora é assim. Tá cansado de ter que esperar o domingão, o único dia que você tem pra passar longe de um livro, ou o único dia que você tem pra LER um livro, pra ler uma resenha ixperta aqui nesse blog horroroso (esteticamente falando)? Tudo bem, agora tem postagem quarta feira também, maluco!

Vixe, demorou pra esse livro ser a bola da vez aqui, hein? Rosa Montero é a minha escritora espanhola favorita (até porque nem sei se eu conheço mais escritores espanhóis — e Cervantes não vale né, porra?), e a Historia do Rei Transparente foi o primeiro livro dela que eu li. E digo mais: li no original, em ER-PA-NIOL. Éééééé cumpádi, tá pensando o quê? Aqui não tem filho de pai assustado não! E que satisfação ler um livro tão bom no original. Dá a sensação de que, se alguma coisa se perdeu na tradução, você não deixou passar.

Bom, esse livro é também, de longe, o maior sucesso editorial da Rosa. Ela tem uma santíssima trindade dos seus livros: pra quem curte uma história mais fantasiosa, a História do Rei Transparente não tem pra ninguém. Pra quem curte algo um pouco mais pé no chão e ainda assim, igualmente boladão, o livro certo é a Filha do Canibal. E, finalmente, pros cabeçudos e pseudo-cabeçudos que curtem um ensaiozinho assim, de leve, mel na chupeta, A Louca da Casa é o que há. Espero falar de todos, mas hoje, nos interessa aqui o primeiro, o fantasioso bolado, LESKE (ih, quem não é do Rio boiou agora).

A História do Rei Transparente é o resultado de uma grande pesquisa da autora sobre o período medieval — as cruzadas, mais especificamente. Se passa na frança rural e conta a história de Leola, uma mocinha roceira daquelas de dênti pôdi que dá na festa junina que, um belo dia, se vê órfã no mundo por causa dos cavaleiros que passaram ali e mataram todo mundo. Como não bastasse, o namoradinho, Jacques, se manda pra lutar pela causa, arrastado contra sua vontade. Sem ter muito o que fazer, ela se veste com a armadura de um homem morto e se passa por homem para sobreviver em um mundo de homens. E não é isso que a mulherada (não todas, só as que tem juízo) anda fazendo nos dias de hoje?

Aventurando-se pelo mundo, ela conhece Dhuoda (gente, desculpa se os nomes são outros na versão traduzida, ok?), uma bruxa que não é bruxa mas sim, antes de tudo, uma mulher de razão e conhecimento, a bruxaria da época (deixa só eles saberem que ser bruxa hoje é ser gordinha de batom preto, cabelo bom e escutar Tristania). Juntas, as duas vão, aos poucos, arrebanhando um exército de desajustados, ou melhor, de desqualificados para a época. Anão, gente com síndrome de down, enfim, tudo com o que o Todd Solondz poderia fazer uma piada só está ali, é a sua trupe.

A História do Rei Transparente é, antes de tudo, um romance sobre a intolerância e sobre a inadequação ao mundo — algo que todos nós (não todos, só os que têm juízo) já experimentamos uma vez ou outra. Sabe aquelas merdas que falam sobre os clássicos da literatura que é um livro que, embora se passe em outra época, é atual e blá blá blá whiskas sachê? Mentira, amigo. Tô lendo Anna Kariênina e nunca aquilo ali vai ser algo atual depois dos anos 60. Tá ali um livro que cheira a museu, rapaziada (tá certo, alguns podem ser de fato atuaizassos, mas a grande maioria vai só na aba dessa mesma justificativa que, acredite, não se encaixa em todos os clássicos). Esse livro sim é atual. Tá certo, foi escrito em 2005, mas é atual na alegoria de algo antigo que se faz atual (Ah, não vem não, que você entendeu). Por isso, é um clássico da literatura. Como que eu sei? Tá com a tag “clássico da literatura”. Tá ali, pode ver, é clássico sim.

E que personagens memoráveis, amigos. Que narrativa fluída (mesmo em erpaniol), que sagas emocionantes, que história cativante. Fico boladão como a galera não tá tão ligada nesse livro quanto deveria estar. Candidato a ser livro favorito de muita gente. Quero ver engolir o choro lendo esse livro, quero ver! Quem não leu tem que ler e quem já leu tá ligado na missão. Ó, tô recomendando, hein? Não é todo dia que eu recomendo livro aqui, só limito-me a comentá-los, mas tô recomendando esse.

Boa notícia pra quem gosta de erpaniol: Dá pra achar esse livro no original, numa belíssima edição da Alfaguara. Talvez na Fnac. Senão, o jeito é ler a versão em português, da Ediouro, numa edição bonita também, mas não tão bonita quanto essa da Alfaguara. Por isso, as duas editoras levam as tags de hoje. No começo do livro ainda tem, como é peculiar dos livros medievais, um mapinha, inclusive com a suposta indicação da ilha de Avalon. Isso, aquela mesma que aparece na revista dos famosos… Animal!

Ah, e o que é a História do Rei Transparente? Por que esse livro tem esse título? Eu é que não vou contar, tenho amor à vida.

Comentário final: 574 páginas pólen soft. Sabe aquela cena do extintor de incêndio em Irreversível? Dá pra trocar o extintor por esse livro.