Existem muitas características que um crítico literário precisa ter, e poderia ficar escrevendo o dia inteiro sobre elas. Mas existe uma única condição sinequanom para alguém começar a fazer resenhas e dar opiniões sobre os livros e, não, não é ler os livros se é isso que você tinha pensado. Referia-me, na verdade, à cara de pau, a vontade de avançar destilando baboseiras sem medo de errar, sem medo de reprimendas, sem medo de autor te esperando com um porrete do lado de fora, enfim, é preciso ser destemido e caradura o bastante para julgar que o que você acha sobre uma obra determina se ela é boa ou ruim. Ora, que trabalho inglório e canalha, vocês diriam, esquecendo-se que é exatamente assim que funcionam vossas próprias opiniões e o que separa o crítico do leitor são razões meramente vocacionais.
Pois bem, disse tudo isso por quê, afinal? Disse porque hoje, pela primeira vez em dois anos de blog, vamos falar de um livro de poesia nessa bagaça, e todo mundo sabe que pouca gente se atreve a comentar essa arte por puro medo de estar falando besteira sem saber.
E é aí que entra o nosso livro de hoje. Nada menos que a recente coletânea de poemas da poetisa polonesa Wisława Szymborska, prêmio Nobel de literatura de 1996, que foi traduzida para um livro pela primeira vez no Brasil no ano passado. Ê, atraso! Mas, tudo bem, antes tarde do que nunca. Fico boladão com essa galera que não se coça pra traduzir um autor mesmo depois que ele ganha o prêmio Nobel. Agora tão pipocando uns poemas do Sr. Transformer por aí, mas cadê que nego publica um livro dele? Vai vendo e depois não reclama, mas legenda pra filme do Shrek tem todo ano, pensa nisso.
Enfim, esse livro não é nenhum livro inteiro da Szymborska (para vocês que gostam de ler em voz alta os textos, mesmo que seja para vocês mesmos, a pronúncia é Vissuáva Chembórsca), mas uma coletânea de poemas de vários de seus poucos livros (he he) escolhidos pela tradutora Regina Przybycien (pchêbítchen), que é curitibana e bateu um papo comigo aqui. Ela diz que escolheu os poemas baseado no grau de facilidade em traduzi-los, o que eu acho muito correto levando-se em consideração que tradução de poesia é algo muito mais zeloso do que tradução de prosa e ponderando que polonês não deve ser a língua mais fácil do mund de se traduzir.
Bom, e por que os poemas de Wisława Szymborska são bons o bastante para entrar aqui nesse blog? Simplesmente porque são fáceis, no nível de que até uma criança seria capaz de entender e apreciar sua beleza. Essa senhorinha simpática que não larga o pirulito sabor metástase não fica se escondendo por trás de significados ocultos, construções herméticas, jogos de palavras sinistros, e palavreado floreado que ninguém entende. Ela quer simplesmente ser entendida e falar sobre as coisas que lhe são caras, a saber: a vida, a morte, a guerra, a mulher e a própria poesia.
Esse último tema, aliás, é o que eu acho de melhor na poesia da moça, que mostra não só um senso de humor autodepreciativo saudável como também uma leveza de espírito invejável. Szymborska sabe que pouca gente se enteressa pelo tipo de escria que ela e seus colegas poetas realizam, e consegue rir de sua própria impopularidade. É assim, por exemplo, em “Alguns gostam de poesia”, publicado alguns anos antes de ser consagrada com o Nobel:
Alguns –
Ou seja nem todos
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria;
Sem contar a escola onde é obrigatório
E os próprios poetas
Seriam talvez uns dois em mil
O tema se repete em “O Recital da Aurora”, mais antigo, e ainda mais engraçado:
Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir
Nos recusaste a multidão ululante.
Uma dúzia de pessoas na sala
Já é hora de começar a fala
Metade veio porque está chovendo
O resto é parente. Ó musa.
Percebe? Não é nada complicado, é só uma poetisa que sabe que não é lida e faz troça disso com o quê? Com a própria poesia. Esses trechos mostram bem o espírito leve e brincalhão de Szymborska, que faleceu recentemente este ano deixando esse mundo mais carrancudo. Mesmo quando ela fala de coisas realmente tristes, como o nazismo, ela consegue ser leve. Em “Primeira Foto de Hitler”, ela brinca com o bebê do monstro austríaco:
E quem é essa gracinha de tiptop?
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
De um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
Com a filha do prefeito?
Esse é o tom da ironia da autora, que fere sem ferir, e põe reflexão em coisas simples, como a infância de um ditador extremista (algo que Adriana Partimpim copiou depois, talvez sem saber. Talvez, muito provavelmente, ou a moça lê poesia em polonês, por acaso?)
E eu poderia ficar aqui transcrevendo trechos de vários poemas do livro, mas não quero tirar a graça dessa leitura. Porque esse livro de Szymborksa é um daqueles livros fragmentários que você vai descobrindo a graça individual de cada um dos poemas. É como um disco dos Beatles: primeiro uma música dele é a sua música favorita, depois outra, depois outra e depois outra, até que todas as faixas passaram pelo menos uma vez pelo título de canção favorita da banda. Tudo aqui tem o seu valor e nenhuma destas poesias está fora do alcance do leitor comum. Acho que esse é um legado que Szymborska deixa para o mundo da poesia, principalmente num país onde existem pessoas como o Arnaldo Antunes: sê simples e sê palatável, pobre poeta. Nada de querer fazer a nova poesia concretista, o verso livre preso a significados ocultos, o hexâmero dactílico do século 21, pára com essas palhaçadas e sê modesto, que aí quem sabe as pessoas começam a gostar de poesia de novo.
Esse projeto da Companhia das Letras é feito, ao que parece, para uma série de prêmios Nobel majoritariamente poetas, como ela e o Derek Walcott, que foi publicado com seus Omeros (que vai na contramão de tudo que eu acabei de aconselhar). O lance é simples: foto do cabra da peste na capa, código de barra na capa, símbolo do prêmio Nobel na contra-capa e lombada e contra-capa da mesma cor do box com o título. Essa foto da capa que escolheram é um charme. Qualquer senhorinha fazendo essa fumaça com o crivo pareceria a legítima bruxa veia, mas ela parece tão doce e feliz fumando esse cigarrinho que a gente só quer abraçá-la e ficar impregnado com esse cheiro maldito de nicotina. Papel pólen de alta gramatura e fonte Meridien, que até então nunca tinha visto em livro nenhum (ou pelo menos assim me lembro). Maravilhoso livrinho, recomendadíssimo.
Ps: poxa vida, vocês não vão me mandar seus autógrafos?
Comentário final: 165 páginas em papel pólen soft. Tirando as Flores do Mal e a Odisseia, esse é um dos livros de poema que mais machuca se tacado direto na cabeça.