Lourenço Mutarelli – A Arte de Produzir Efeito Sem Causa

Tô me sentindo uma daquelas gatinhas de Hollywood que se envolvem com drogas e tempos depois saem da rehab com um aspecto cadavérico, peito caído e muita entrevista pra dar na Oprah. Tô melhorando, galera. Olha só, minha última postagem foi há duas semanas e já respondi todos os comentários pendentes de antes. Tô me regenerando, Risoflora! Não vou dar mais bobeira dentro de um caritó, agora é só pimba na gorduchinha e vamo que vamo que o som não pode parar.

Vamos combinar que uma postagem a cada quinze dias tá valendo, ok?

O livro de hoje vem para reafirmar uma tecla que venho batendo há algum tempo: Lourenço Mutarelli é uma das vozes mais originais e instigantes da literatura brasileira em muito tempo. Mas ô escritorzinho subestimado, meu Deus. Abram os olhos pra esse cara de uma vez por todas que ele merece ser lido não só pela galera nerds que acompanhava os Transubstanciação e Dobro de Cinco da vida. Ele é bom como romancista também, e não tem nada a ver com o que ele fez antes. O bicho é bom e subestimado, é Captain Beefheart da literatura nacional.

A Arte de Produzir Efeito Sem Causa é, se não me engano, o primeiro livro dele lançado pela Companhia das Letras. Acho que quando o cidadão vai pra essa editora, os olhos se voltam mais pra ele, mas peguem o Cheiro do Ralo pra ler e comprovem o que eu digo. Fico feliz que Mutarelli não seja mais tão pop quanto era há uns dois anos atrás, quando escrevia peça de teatro pra Mariana Ximenes e o escambau, daqui a pouco ele tava indo no programa da Hebe dar selinho naquela múmia e pegar a herpes de Amenófis IV. Escritor tem que ser low-profile mesmo, senão essa vida hypada (vem de hype, Juvenal) vira a cabeça do cara. A Globo é uma máquina de fazer Paulos Coelhos. Aí, valter hugo mãe, aproveita o tema e faz mais um livro. (sobre o valter hugo mãe: que nominho, vamos combinar. Não basta o cara chamar valter, o sobrenome dele ainda é mãe!).

Bom, tergiversei como manda o figurino, agora vamos ao que interessa. Esse livro é um dos grandes livros do Mutarelli. Conta a história de Junior, um cara que trabalhava numa revendedora de auto-peças e se divorcia da mulher, que deu em cima  do amiguinho do filho, e resolve ir morar com o pai dele. Lá conhece uma mocinha que eu já esqueci o nome e que tô tão sonolento pra procurar no Google que nem tô arriscando fechar essa janela do Word pra não começar a babar com o queixo no peito nem to dando ponto final olha só to embalando legal essa frase uuu to doidão de sono. Brrr, me dei uns tapas e acordei, voltando ao assunto. Lá ele conhece uma mocinha por quem sente uma leve pontada no zíper da calça, mas é só isso que vou falar sobre o assunto.

O que interessa para a história é esse movimento de voltar a morar com o pai, a simbologia para a derrota da vida sobre o homem, como o próprio Mutarelli me disse em uma simpática entrevista que fiz com ele por telefone. Derrotadão e cansado de apanhar da vida, devendo as cuecas pros outros, Junior começa a receber correspondências estranhas pelo correio, que ele crê que sejam peças de um quebra-cabeça que cabe a ele montar (essa frase me lembrou dessa música, sempre uma boa pedida). Já dizia alguém – Chico Xavier, talvez – que a mente vazia é a Yoguland do diabo. O sujeito começa a pirar nas encomendas e, mais noiado do que o Capitão Ahab visitando o Sea World, afunda no suposto quebra-cabeça enquanto tenta segurar as pontas de sua vida, que já tá mais capenga do que pé-de-meia de grego.

Se tem uma coisa que Mutarelli entende nessa vida de meu Deus é de loucura. O cara é PhD em doidice pela Universidade Pinel Senor Abravanel, ocupante da cadeira número 22 da Academia Brasileira de Loucura (ABL, essa mesma), cujo patrono é Giordano Bruno. Em A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, o autor mostra direitinho o processo de endoidamento da pessoa, e é assustador, é quase como ver um parente-problema (problema na família, quem não tem?) com quem você tem que lidar porque você não tem escolha e porque qualquer família tem uma cota pra maluco (geralmente de dois terços).

Essa edição da Companhia das Letras valorizou o enredo, e não é todo dia que o projeto gráfico de um livro ajuda na experiência imersiva do leitor. Com desenhos (doodles) feitos pelo próprio Mutarelli, o livro tem um formato assim meio de Moleskine falsificado e tem um miolo cheio de rabiscos atribuídos a Junior. Mas entre os escritos também há intervenções do projeto gráfico, que complementa a história com letras escritas à mão (simulando, né, animal, não colocaram ninguém pra trabalhar no ano novo escrevendo letrinhas em 3 mil livros) e outros rabiscos e desenhos que têm como objetivo entender o raciocínio de Junior no mistério. Aliás, não espere muita solução nos livros do autor, é melhor prestar atenção nesses elementos que eu to falando. Tenho essa ideia de que saber o que olhar antes mesmo de começar a ler o livro é importante pra você não sair odiando o autor pelas razões erradas. Fonte janson e papel pólen velho de guerra irmão camarada. Quer mais o quê? Enfeita sua estante e o seu cérebro.

Comentário final: Semana passada não postei sabe por quê? Estava na junket do Transformers 3, que estreia na semana que vem. Rá, vi o filme antes de todo mundo, e o Michael Bay sentou bem na minha frente. Acho que passei uma gripe pra ele, espirrei bem na nuca do infeliz.

Franz Kafka – O Veredicto/Na Colônia Penal (Das Urteil/In der Strafkolonie)

Das Urteil/ In der StrafkolonieÉ gente, eu avisei. A coisa tá corridona. Vamos fazer assim? Deixemos as resenhas apenas para os domingos, alright?

E pra quem não viu, temos um patrocinador. O Sr. Victor Almeida está divulgando seu novo livro, que saiu na forma de e-book para kindle também. Cliquem ali no banner de seu Juntos no Paraíso para saber mais e comprá-lo, pra ele ver que é boa ideia anunciar aqui.

Olha só, um ano se passou e nem me toquei que não tinha falado ainda de Franz Kafka (não confundir com Franz Café, aquele Coffee Shop que fica aberto 24 horas ali na Praça da Espanha que só dá um povo bem esquisito que nasceu em Arapongas, mora no Cotolengo, usa cachecol em fevereiro e acha que é britânico). Já li essa coleçãozinha inteira dele, à exceção de O Processo, livro que não engulo nem misturado na sopinha. Restava falar de um de seus inúmeros livros de contos, incluindo o belíssimo Um Médico Rural, ou então falar do óbvio A Metamorfose, cuja resenha você pode ler em qualquer outro blog miguxesco por aí (aqui, ora pois, tratamos de literatura não-óbvia), ou então os inomináveis Carta ao Pai ou O Castelo (que raiva que eu tenho desse livro O Castelo, depois dele nunca mais li livro póstumo nenhum, só O Mestre e a Margarida por razões óbvias). Pensei então que poderia falar de O Veredicto e o insuperável Na Colônia Penal, dois contos/livrinhos surpreendentes e dignos de tudo o que se fala de bom do Kafka. Porque convenhamos, o sujeito escreveu muita porcaria também. Sério, tem um conto naquele A Contemplação, que foi o primeiro livro de contos dele, que quase me deu vontade de tacar o livro na testa do desinfeliz que deixou eu comprá-lo.

Pois muito bem. O Veredicto (Veredicto não tem mais esse c mudo, ou tem? Taí algo que faz a gente se sentir velho. “No meu tempo, netinho… cof…cof… Veredito se escrevia com c antes do t… agora passa esse balão de oxigênio aí… cof…”) é um livro curtinho cuja história, de longe, pode não impressionar muito. Um carinha que tem um amigo que mora longe, e com quem tenta se comunicar por cartas (os estadunidenses chamam isso de “pen-pal”, ô palavrinha feia da gota!) embora não tenha resposta dele há muito tempo, fica preocupado se comunica ou não que está noivo de uma gatinha. Ele está tomando conta de seu velho pai, assumindo os negócios da família, aquela coisa de homenzinho que acha que virou homenzinho. Até que o pai sobe nas tamancas, fala umas verdades, revela umas revelações e condena o filho à morte por afogamento, ao que ele responde com uma saída abrupta de casa para se afogar pulando de uma ponte. É isso aí, contei Spoiler e nem avisei que ia spoilar a bagaça toda. Deal with it. Como diz o Boça, eu também sei ser maloqueiro e quando eu quero zoar, sai de baixo, meo!

Nesse livro é legal a gente observar, em primeiro lugar, a relação do filho com o autoritarismo do pai. Falei que é legal observar isso porque qualquer crítico Mané vai te fazer enxergar esse fator e ai de você se desconsiderar o paralelo entre o pai de O Veredicto e o pai de Kafka. Assim são os críticos. Sabe quando você pede uma porção de batata frita pra todo mundo e sempre tem um babaca que joga ketchup na batata inteirinha, desconsiderando o gosto dos demais por ketchup? Pois esse é o crítico. É o cara que obriga você a degustar as coisas do jeito dele, e que se dane sua própria experiência. Quer dizer, não é todo o crítico que é assim. Só o são os críticos do cânone, os críticos do óbvio, os críticos do “ó-meu-deus-eu-sou-tão-esperto-que-se-eu-fosse-mulher-eu-me-traçava”. Aqui eu estou fazendo esse papel ingrato porque tem um povo que tá entrando aqui e falando que as minhas leituras são muito superficiais, então taí uma leitura que você pode ler no posfácio do livro e que, mesmo assim, todo mundo alardeia. Satisfeito?

Pode ver nesse livro também o absurdo do mote de Kafka, que vem de um certo estoicismo ao qual ninguém se acostumou direito depois da febre da Profecia Celestina. Veja só o que é o pai mandar o filho se afogar e ele ir, contra a vontade, morrer afogado? É uma forma de passivo-agressividade fora de controle (o que é ótimo porque eu acho que o gene da passivo-agressividade tem que ser extinto), uma rebeldia adolescente que a gente vê muito hoje em dia. Já viram a cena: o moleque, de preto dos pés à cabeça, com uma camiseta do Good Charlotte, muita maquiagem no olho, dizendo “eu queria nunca ter nascido!”, os pais fazem aquele drama de “és base, é protetooooooooooooor” e o moleque sai de casa batendo porta pra fumar Carlton Red na porta do Shopping Center com os amiguinhos de cabelo ensebado dele. É mais ou menos isso, só que no começo do século, e com morte de verdade, não apenas a morte da rebeldia verdadeira.

Falemos agora de Na Colônia Penal, o conto/livro mais sinistro já inventado por uma mente humana meio doente. Lembro que na época do Orkut tinha uma comunidade chamada “Kafka, fica de boa…” e realmente, ele precisava mesmo dar uma relaxada. Acho que o carinhômetro dele estava sempre em baixa. Deve ser por causa dessa cara feia que ele tem. Inclusive peguei essa foto aqui pro post de hoje porque tinha um porteiro no meu antigo prédio que era a cara do Kafka.

Divaguei, desculpem. Comecemos de novo. Na Colônia Penal é doente, já disse isso, né? Então, a história é isso aí, um cara vem de outro país para visitar uma colônia penal no país da história, e eles estão para executar um coitado com um método muito do sinistro. Consiste numa geringonça que deixa o infeliz penduradão e vai matando ele aos poucos enquanto várias faquinhas vão escrevendo uma frase de pára-choque de caminhão nas costas dele, uma lição de moral ou algo assim, até que ele morre esvaído na própria papa de sangue. É mais ou menos como aqueles “shows” em que os hã… malucos ficam pendurados por ganchos nas costas achando tudo o máximo. Acho que essa modalidade tem nome, mas tô com preguiça de procurar no Google e vou chamá-la de falta de enxada e meio lote pra carpir.

A crueldade da execução choca o estrangeiro (espero não estar confundindo com um conto do Italo Calvino) e pro executor, tá tudo numa naice. E aqui lá vamos nós jogar ketchup na sua batatinha de novo. A ideia do sofrimento sem uma sensação de que ele logo terá fim é uma constante nos livros do Kafka que falam do assunto. Você bem sabe que quando você se prepara para fazer algo sofrido, parte do sofrimento é amenizado pela sensação de fim iminente. Como por exemplo fazer uma tatuagem, tirar sangue, tratamento de canal, exame de próstata, andar de Cabral/Portão, etc. Agora, e se o sofrimento não tiver um fim visível na linha do horizonte? E não só isso, pensem também na engenhosidade de uma máquina projetada para te fazer sofrer. Eu sei que vendem máquinas assim pela televisão no Shoptime, que dá pra dobrar e guardar embaixo da cama, mas essa é projetada para o mal extremo, a morte e uma lição de moral ainda por cima. É doente ou não é, meu povo?

Chega que a resenha tá longa. A saudade é um prego, o coração é um martelo, por isso me estendi. Esse projeto gráfico da Companhia das Letras é sensacional. Livros branquinhos que já vem encardidos da livraria porque ninguém compra tanto Kafka quanto deveria, posfácios mais que elogiosos do tradutor Modesto Carone, o homem-Kafka (equivalente ao Elidio Lopes para o vinho), fonte Garamond e imagens da capa de Amilcar de Castro (embora tenha quase certeza de que um dos desenhos é uma fraude feita por outra pessoa, mas teria que verificar e já tá tarde pra isso). É uma beleza. Faltou mesmo pra minha coleção O Processo, edição esgotada há muito tempo, só acho de bolso. Uma vez vi um cara com esse livro num ônibus e pensei seriamente iniciar ali minha carreira de assaltante. E aí, quem topa fazer uma campanha para me doar essa edição d’O Processo pra eu completar a coleçãozinha?

Comentário final: Kafka, fica de boua, meo…

Neil Gaiman e Dave McKean – A comédia trágica ou a tragédia cômica de Mr. Punch (The tragical comedy or comical tragedy of Mr. Punch: a romance)

The Tragical Comedy or Comical Tragedy of Mr. PunchFala moçada, como vocês estão hoje? Legal que as pessoas estão aderindo ao desafio, em breve vou postar a lista. E você, já decidiu o autor que vai ler esse ano? Decide aí e manda pra gente, choque.

“Ih, alá o Yuri, vim aqui querendo ler resenha de livro e encontrei resenha de quadrinho, que manezão!”, alguém diria. E eu respondo com um pedala Robinho e digo que a linha editorial do Livrada! não prevê quadrinhos, a menos que eles sejam muito bons e/ou originais ao extremo. E é o caso dessa graphic novel, que, já disse, é “banda desenhada” ou “história em quadrinho” no cultês. Então vamos aproveitar que hoje é domingo e você não tem nenhuma responsabilidade nos próximos minutos e abramos a cabeça um pouco para outros gêneros literários.

A comédia trágica ou a tragédia cômica de Mr. Punch, de Neil Gaiman e Dave McKean é um daqueles livros que você vê e pensa “meu Deus, olhaí uma dupla de zé ruela pagando de gênio atormentado”. Bom, amigo, fazer o quê se é assim que os caras se expressam. Dave McKean, o barbudinho que parece um torcedor do Fluminense, é o cara responsável pelos desenhos e fotografias doentias que você encontra dentro desse livro, e Neil Gaiman, o que parece da família do Stephen Rea, é o cara que escreve a história das coisas doentias do tricolor supracitado. Gaiman conta uma história de fundo autobiográfico, de quando foi passar um verão (verão na Inglaterra, vocês sabem, é só força de expressão) na casa dos avós, que moram no litoral. Lá ele conhece o teatrinho de Mr. Punch, um popular show de fantoches que rola por lá desde a idade média, que é basicamente o seguinte: Mr. Punch é um homem casado com uma mulher chamada Judy, e eles tem um bebê também. Só que ele é meio detestável (e existe algum fantoche que não seja?), então todo mundo meio que odeia ele. Aí ele mata a esposa, o bebê, e todo mundo que vem pra matar ele acaba morrendo também, inclusive o capiroto em pessoa. Bom, é isso. Um show de fantoche com um monte de personagem morrendo, e que mostra que a pessoa, mesmo sendo desprezível, pode ser muito sagaz pra sobreviver na base da malandragem.

Acontece que, como qualquer criança cercada de gente velha e coisas da época do guaraná de rolha, o pequeno Neil fica muito impressionado e tudo parece muito estranho, assustador e fascinante ao mesmo tempo. Ora, você, quando era criança, nunca se pegou assustado pela pele, que mais parecia bola de basquete ou, com sorte, frango cru? Então você sabe do que eu tô falando. E aí ele conhece diversas figuraças que participam da vida cultural mixa do litoral, que sim, é sempre mixa (e se você acha trio elétrico legal, sai do meu blog. Ooopa, brincadeira!), entre elas um velho chamado Swatchell, responsável por realizar o show de Punch e Judy. Swatchell é um cara meio obscuro, com um passado desconhecido, meio criminoso, meio assassino, quem sabe? Fato é que esses tipos são colírios para as crianças. Ou você nunca ficou fascinado quando descobriu que seu tio matou um cara? Nessas, o fedelho inglês fica impressionadíssimo com o show de Punch e Judy (a julgar pelas fotos, é um nightmare fuel aditivado pra encher o seu tanque) e aquilo fica cozinhando na sua cabeça impúbere por todo o resto das férias, e idealiza Mr. Punch como uma espécie de obsessor que suga a vida dos que o colocam na mão.

Basicamente o que o autor faz aqui é mexer com aquele velho fascínio que as pessoas sentem por bonecos mega expressivos. Será que tem vida, será que não tem vida, será que é assassino, será que é bonzinho, etc. Algo já visto em todas as escalas de terror, de Goosebumps a Chucky-me-dá-um-abraço, e em alguns outros filmes, como aquele Dummy, com o Adrian Brody, que eu vi no ônibus indo pro Rio uma vez. Vem cá, quem não odeia filme de ônibus aqui? Da última vez que voltei de São Paulo, passou Dr. Dolittle 4 e Homens de Preto 2. Olha, que raiva eu passei com aquele som alto, querendo concentrar na minha leitura. Mas onde é que eu estava? Ah sim, falando do fascínio por bonecos. O medo que a gente tem de boneco é basicamente o mesmo medo que Deus sente da gente, se é verdade o que os católicos dizem sobre imagem e semelhança. Ver uma coisa que parece outra coisa que você já conhece é meio assustador, mas os hipsters adoram: uma caneca que tem o formato de lente Canon, um relógio em formato de caneca, um prato em forma de relógio, um disco em forma de prato, uma bolsa em forma de disco, um boné em forma de bolsa, enfim, malditos hipsters, vão gastar seus dinheiros com coisas úteis pra variar.

Além do fascínio por bonecos, o trabalho que deixa o livro realmente interessante é de Dave McKean, do clube “tantas” vezes campeão. Com um domínio extremo de imagem e fotografia, ele compõe os quadros do quadrinho mesclando os formatos, usando panos, plantas e outros objetos que saltam da imagem, como um quadrinho 3D. Bom, não exatamente 3D, mas, digamos 2½D. Os desenhos são pintados, ao que me parece, com uma brocha em cima de madeira compensada, e as linhas do que seria nanquim são feitas no computador. É um trabalho muito interessante mesmo, embora todo mundo tenha mais ou menos a mesma cara. Ah sim, ele também conseguiu arrumar o Mr. Punch mais assustador da história, de olhos arregalados e dentinho no meio, Nosferatu-Chico-Bento-style. Palmas pra ele então.

O projeto gráfico desse livro, lançado pela editora Conrad, que eu considero uma das melhores editoras de quadrinho do Brasil, é primorosa. Capa dura, papel couché de excelente qualidade e um lettering (as letras usadas nos quadrinhos) feito, me parece, a partir da caligrafia de um dos autores. Fibou muito bom. Acho que eles deram um formato ao livro que permite que a gente aprecie os detalhes de cada quadro, cada fotografia, melhor, e a capa, que não foge à original, também tá irada. Enfim, projeto gráfico de quadrinho tem muita coisa pra analisar, melhor parar por aqui pra não me estender muito. Ah, não tem paginação (é moda isso agora? Os últimos quadrinhos que eu li não tiveram também), então não sei quantas páginas o livro tem porque não vou ficar igual bocó contando as páginas da bagaça.

Comentário final: Já dançou com uma velhinha de churrascaria rodízio sob a luz do luar?

 

Adolfo Bioy Casares – Diário da Guerra do Porco (Diario de la guerra del cerdo)

diario de la guerra del cerdoFalaí minha galerinha, como vocês estão? Fiquei feliz que alguns de vocês aderiram à ideia do desafio literário Livrada! 2011. Quem ainda não definiu, defina o autor vencedor do prêmio Nobel de literatura que você vai ler e avise-me, que em breve publicarei uma lista com os participantes. Tem autor para todos os gostos, menos pra best-seller e auto-ajuda, acho eu. Então bora participar. Quem tá por fora clica no banner ridículo que eu botei ali do lado pra se inteirar dos papos da tchurminha.

Bom, vamos lá: Adolfo Bioy Casares, como todo mundo sabe, é o camarada do Borges. Nessa associação, ficou meio à sombra do outro, meio coadjuvante, embora tenha uma qualidade literária sinistrona também. Mas não deixa de ser o Luigi pro seu Mario, o Sundance Kid pro seu Cannes, o Silent Bob pro seu Jay, o John Coltrane pro seu Miles Davis, o José Carreras pros seus outros dois tenores, o Dillon pro seu Dutch, enfim, já deu pra entender. Os dois ficaram conhecidos por pintar uma Buenos Aires muito parecida com uma Gothan City: cheia de escuridão, decadência ocidental, mistérios e palhaços sorridentes (opa, isso não). E nesse livro, Diário da Guerra do Porco, a coisa não é diferente.

A história gira em torno de um grupo de velhus decreptus que começam a morrer de medo de andar na rua desde que os jovens da cidade matam um velho a pauladas na frente de todo mundo e ninguém mexe uma palha por isso. A partir daí, começa uma caça aos velhos, onde o grupo vai se acuando e, como em todo bom thriller, vão morrendo um a um aos pouquinhos. Isso, quase como um Pânico geriátrico, só que sem as máscaras de caveira e sem as péssimas atuações. Falando em Pânico, o clima de pânico dos velhinhos é legal, mas o que vale mesmo no livro são as suas insatisfações em serem velhos, ou nem tão velhos. A maioria tá entre os 40-60, mas isso aí, pelos padrões modernos, é pra jogar no poço de piche, é ou não é?  Os velhos, ou “porcos” como o título diz, são pessoas imorais e pervertidas que só querem se aproveitar das ninfetinhas — o que é verdade, mas ineficaz para quem não é dono de empresa.

Bioy constrói o cenário da história como a nossa cachola às vezes constrói um pesadelo: tudo meio borrado, meio estranho, meio familiar, meio tudo. A escrita dele é toda bonita e com uma dose certeira de frases de efeito. Por isso é que é legal.

E esse livro? Troféu livro bonito do ano, da Cosacnaify. Fonte Utopia, papel pólen, capa dura e uma porra da fotos alucinantes do autor e da cidade. Isso aí, povo, post curtinho hoje (sexta-feira) porque tô partindo pra São Paulo no fim de semana. Abraços a todos!

Comentário final: 209 páginas papel pólen e capa dura. Pra descer o sarrafo nos velhinhos!

 

Italo Calvino – O Barão nas Árvores (Il Barone Rampante)

Il Barone RampanteE aí, meus amigos, como vão vocês? Sei que hoje é domingo, mas, nesses dias, todos os dias estão sendo domingo pra mim. Estou aqui desfrutando de sombra e água fresca numa praia paradisíaca mas não esqueci de vir aqui. Vê se pode. Bom, hoje também é o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1, um dos esportes mais chatos que já inventaram na história da humanidade. Por isso queria mandar um oi muito especial para quem se descambou pra Sumpaulo, pagou quatrocentos reais pra ficar surdo e ficar virando a cabeça de um lado pro outro, enfim, saiu da zona de conforto totalmente justificável e vantajosa da poltrona de sua casa pra ver garotos ricos gastando gasolina em plena guerra do petróleo.

No último post, sobre o Dia da Coruja, nosso amigo Lucas comentou (aliás, os comentários estão rareando. Seria hora de uma nova promoção?) que não conhecemos os escritores italianos como deveríamos. Por isso resolvi falar aqui do Italo Calvino (de novo! e, por favor, vamos tratar de esquecer que ele nasceu em Cuba, ok?), porque se não somos lá muito íntimo dessa turma que curte um rondelli e uma mina gordinha, podemos bater no peito e dizer com orgulho que O Barão nas Árvores é figurinha carimbada na estante da galera. Isso porque tá pra nascer quem não goste desse livro emocionante, maravilhoso, estrogonoficamente sensível e inoxidável, segundo volume da trilogia Os Nossos Antepassados, que ainda contam com O Cavaleiro Inexistente (já resenhado aqui) e O Visconde Partido ao Meio (quem sabe um dia). Fala sério, vocês aí que não curtem unanimidades, não é por nada não, mas esse aqui é o novo Pequeno Príncipe, e eu sonho com os dias em que as belíssimas candidatas a miss universo citarão essa obra ao invés da outra, do Saint-Exupéry.

Pra quem não sabe, vou contar um pouco da historinha. Mas depois, vergonha na cara e dinheiro na mão, vá gastar um pouco do dinheiro que você despenderia com goró e compre um novo clássico. Bom, o barão nas árvores a que o título se refere é o protagonista do livro. E você achando que era uma referência abstrata a algo que não existe, do tipo “A Bruxa de Blair 2 – O Livro das Sombras”, no qual você descobre todo desapontado após duas horas, que não tem bruxa nem livro nenhum no filme. Trata-se do barão Cosme Chuvasco de Rondó, que, em um belo dia, resolve dar um piti infectado na mesa do jantar e renegar a grana do papai, o barão de Rondó. Daí, resolve subir numa árvore e passar o resto de sua vida empoleirado, acho que para não botar os pés nas terras do pai e nas terras de mais ninguém, mas vai saber. E resolve viver uma vida contributiva, inventando coisas que melhorem o seu conforto nas copas, coletando e compilando conhecimento e filosofia. Arruma até mesmo uma esposa e um cachorrinho, que se chama Ótimo Máximo e que, dentro da minha concepção, é um nome bem aceitável para um canídeo.

Acho que o Calvino quis mostrar com esse livro é como a vida pode ser vivida do jeito que se desejar, e que, independente da vida que levamos hoje e do ambiente em que nascemos, é sempre possível dar um salto para a originalidade e para a auto-realização, mesmo que isso signifique ser confundido com um muriqui de vez em quando. A história é narrada a partir do caçula do barão, que tem um olhar muito apaixonado e, ao mesmo tempo, distante e amargurado por não poder estar próximo do irmãozão. Isso aí foi a maior malandragem do autor, porque aí é facinho se emocionar junto com a narrativa.

O Barão nas Árvores mescla direitinho as duas facetas do autor: a fantástica, fantasiosa e emocionante, que é muito legal, e a realista, que é chatona (sério, não gosto dos livros da primeira fase dele). E, curiosamente, o lado fantástico arrastou suas razões para o livro. São totalmente imaginativas, porém plausíveis, as maneiras que ele inventa para fazer com que seu protagonista viva em cima das árvores. Engenhoso sim, mirabolante não. Pensem nisso.

De todos os livros da coleção do Italo Calvino lançado pela Companhia das Letras, esse é um dos mais bonitos, na minha humilde opinião. Embora seja “azul incomodante número 3”, tom do qual a Carlinha não gosta, mas ficou muito bonito, mais do que o “azul incomodante número 5” do Assunto Encerrado, coletânea de ensaios dele lançada ano passado. No resto, é igualzinho a todos os outros livros da coleção, com tradução do Nilson Moulin. Aliás, fiz uma constatação: já li todos (ou quase todos) os livros do Calvino traduzidos pelo Moulin. Todos os outros que eu ainda não li estão traduzidos por outras pessoas. Uma dessas coincidências.

Ah sim: O Cordel do Fogo Encantado fez uma música em homenagem a esse livro, prova que ele vai é o novo Pequeno Príncipe, falei?

Comentário final: 256 páginas em papel pólen. Perfeito pra derrubar muriqui dos galhos da sua amendoeira. (brincadeira, hein, Ibama?)

 

William Kennedy – Ironweed

Hoje eu to sem saco pra enrolar vocês por três parágrafos. A verdade é que toda vez que eu vou falar desse livro meu senso de humor se escoa pelo ralo como resto de miojo que fica na panela. Vamos direto ao ponto, então.

Ironweed é um livro que compõe o tal “Ciclo de Albany”, do escritor estadunidense William Kennedy. O “Ciclo” é uma série de sete livros até o momento (atualmente o escritor está finalizando o oitavo) sobre a cidade de Albany (e você achando que fosse sobre aquele sabonete com cheiro esquisito), capital do estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Já viu estado em que a capital é menor do que outra cidade de seu interior? Pois é, só Santa Catarina e Nova Iorque mesmo. As histórias dos livros têm Albany como pano de fundo para diversas histórias, mas eu não sei dizer quais são porque até agora a Cosacnaify só lançou dois títulos: O grande jogo de Billy Phelan e Ironweed. No primeiro, um rapaz meio viciado na jogatina que se recusa a ser X-9 mas ninguém acredita e começam a lhe fechar as portas.

Já em Ironweed, o protagonista é Francis Phelan, pai de Billy. Francis é um ex-jogador de beisebol que já não era lá essas coisas. Alcoólatra, pobre, devendo as calças pra venda e corno manso que só ele, volta à cidadela onde cresceu e fez fama pra confrontar seus fantasmas. E quando digo “fantasmas” não estou falando em sentido metafórico. Ele realmente fala com os mortos da lembrança dele, pessoas que tiveram seu fim de alguma forma relacionado à sua experiência. Isso aí de falar com fantasminha irritou muita gente que eu sei, mas falemos disso depois.

Francis tem uma mulher chamada Helen Archer, uma ex-cantora que, agora decadente, vive de favor dos outros. E também um amigo chamado Rudy, que além de ser pobre e dever as calças pra vendinha, tem câncer e vai morrer. É, amigo, como diz o Marcelo D2, “tá ruim pra todo mundo, o jogo é assim”. Os três vivem fazendo uns bicos na época da Grande Depressão (não, não é o show do Los Hermanos, é a consequência da crise da bolsa de 1929), matando um leão por dia em uma época em que o Ibama não pegava no nosso pé por isso. Então, passando pela humilhação, pela a bebedeira, pelo desbarrancadeiro, pela grana curta e pelos ectoplasmas inconvenientes, Ironweed é o clássico romance de bebum que Charles Bukowski explorou ad nausea, e por isso tem tudo para fazer o maior sucesso entre aquela raça de pessoa com o prazo da adolescência vencida que se passa nos bailinhos e curte óculos de sol maior que a própria cara.

Encanei com uma coisa nesse livro, que foi a linguagem. Mesclando vários estilos, o livro foi comparado ao Retrato do Artista Quando Jovem, do Joyce, mas eu, na humilda, acho que é inconsistência de quem não se planejou nesse sentido. Vamos combinar que se você é foi um cara com metade da sagração bovina de um Joyce o seu direito de pirar o cabeção nas suas escrivinhaduras não está exatamente legitimado. Mas calma, todas as oscilações de estilo ao longo do livro não são capaz de provocar a mesma fúria que causa um único parágrafo do Lobo Antunes, aquele xarope.

Ah sim, Ironweed foi adaptado para o cinema por Hector Babenco, aquele diretor que parece famoso, mas que na verdade nunca fez nada que você tenha visto, a não ser Carandiru. O filme tem estrelas do naipe de Jack Nicholson no papel de Francis, Meryl Streep no papel de Helen e Tom Waits no papel de Rudy. É praticamente um NBA de atores no mesmo filme. Eu comecei a ver, mas não terminei porque comecei a babar na gola da camisa. Ô filmim chato do caraça. Sempre dizem que o livro é melhor do que o filme, e até dá pra entrar numa discussão sobre o assunto em alguns casos, mas nesse não. Comparado com o filme do Babenco, o livro Ironweed é um porrilhão de vezes melhor. Quem viu, tá ligado.

Preciso mesmo falar do projeto gráfico? É da Cosacnaify, gente, não tem o que discutir. Tem até um alto-relevo na capa, foto sensacional, fonte ótima, papel ótimo, tudo nos trinques. Os livros do “Ciclo de Albany” seguem o mesmo projeto, e, putz, vou parar de falar pra não ficar babando ovo.

E aí vocês me perguntam: “Mas Yuri, e aquela crítica séria, engravatada, sóbria, que não enrola a gente e — essa sim — parece inteligente?” Meus caros, já sabem, é lá na revista Paradoxo. Nessa semana, o livro de Haruki Murakami que pôs todo mundo pra correr. Passa lá!

Comentário final: 272 páginas em capa dura. Quebra os óculos de sol maiores que a cara e revela o que tem por baixo deles: horror! Horror!

Italo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno (Se una notte d’inverno un viaggiatore)

Se una notte d'inverno un viaggiatoreDia 15 de outubro seria o aniversário de Italo Calvino, o rapazote das ideias mei malucas faria 87 anos hoje. Pelo menos eu acho que é isso, ele nasceu em 1923, não sei fazer as contas direito. Se soubesse, afinal, estaria enchendo o rabo de grana na engenharia. Então achei que seria uma boa homenageá-lo falando aqui do primeiro livro que eu li dele.

Se um viajante numa noite de inverno é um livro publicado em 1979, mas quando ele saiu nem me liguei muito porque a minha vida era um saco. Somente anos depois, em 2007, resolvi lê-lo, por indicação da Manu Salazar, que insistia que eu iria gostar da literatura do autor. Aí um dia ganhei ele do meu pai. Dois autores que nunca tinha lido: Italo Calvino e James Joyce, peguei um exemplar de cada autor e pedi para que meu pai, que não é nada chegado em livros, escolhesse. Ele escolheu o do Calvino, ainda bem, imagino eu.

Li o livro quando estava mudando de casa. Nunca vou me esquecer de um dia em que estava lendo ele no meu apartamento novo, que ainda estava em reformas. Uma tarde de frio e uma chuva desgraçada, eu deitado em uma esteira improvisada de papelão sobre o chão repleto de pó de cimento. À noite tinha ópera ainda, estava começando o namoro e a Carlinha, que estava deslumbrante, teve como acompanhante o sujeito mais mal vestido de todo Teatro Guaíra. Assisti ao Rigoletto tossindo pó de obra e fedendo como um cavalo suado. Anotem aí: coisas a não se fazer nos primeiros encontros.

Bom, Se um viajante… é um livro metalinguístico, pra dizer o mínimo. Trata de um sujeito que vai na livraria comprar justamente o Se um viajante numa noite de inverno, do Calvino, e começa a ler, achando super legal, até que descobre que seu exemplar veio com um defeito da gráfica: após a página 32 o livro volta ao começo, um erro na montagem das brochuras. Se vocês não sabem, cada gominho de páginas de um livro com esse tipo de encadernação tem 32 páginas, então o exemplar do protagonista estava repleto dos mesmos gomos. Então ele volta à livraria para trocar. E eis que o vendedor dá uma olhada no livro e afirma que aquela história não é do Italo Calvino, e sim de um outro autor, romeno se não me engano. Como o sujeito já estava totalmente envolvido no enredo, solicita um exemplar do livro desse segundo autor. Quando começa a lê-lo, tchanam! É outra história. Assim, entremeado de fragmentos de livros que sim, parecem todos excelentes, o protagonista se esforça para conseguir ler pelo menos um livro inteiro, enquanto, de quebra, tenta faturar uma mocinha. Sério, tem como não gostar de um mote desses?

Extremamente complexo, Se um viajante em uma noite de inverno, além de explorar diversos gêneros de literatura (todos demonstrados em um organograma no apêndice, em resposta a um crítico italiano), comenta, en passant, as nuances que envolvem a leitura e que estão intrinsecamente conectadas à escrita. O fato de 32 páginas serem suficientes para envolver alguém em uma leitura, por exemplo. Convenhamos que, hoje em dia, livro que não esteja engrenado até a página 30 tá no sal. Neguinho coloca de lado e vai jogar videogame mesmo, sem dó nem piedade. Até a época em que Calvino escreveu esse livro, porém, não era raro o livro engatar lá pelo terceiro ou quarto capítulo. Talvez seja uma alma de contista que se encerre nos romancistas de hoje em dia, quem sabe?

Ah sim, deixei o melhor pro final: a narrativa do livro não é em primeira ou terceira pessoa. É — se é que isso existe — em segunda pessoa! Isso mesmo, o narrador fala diretamente com o protagonista, que é você mesmo, que lê o livro. Isso sim é entretenimento, hein? Se liga no começo:

“Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo à sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros ‘Não, não quero ver televisão!’. Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’. Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: ‘Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!’. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.”

Fala sério, maneríssimo, né não? Acho que esse começo fala do livro por si só.

Bom, o projeto gráfico da Companhia das Letras é lindíssimo, mas causou confusão pro meu pai “Que são esses retângulos aqui na capa? Que tem a ver isso com o livro?”, ele perguntou. A coleção do Calvino é uma das poucas da editora com fonte Garamond, mas vale a pena, dá um toque de finesse pro alfarrábio. A tradução é de ninguém menos que Nilson Moulin, que traduziu do italiano também o A Cada um o Seu, do Leonardo Sciascia, que eu já comentei neste blog. Sem o Nilson, tava todo mundo ferrado, minha gente, deus abençoe os bons tradutores. No mais, papel pólen e uma capa verde musgo, talvez a minha cor favorita (deu pra perceber nesse blog ou não?).

Comentário final: 275 páginas em pólen soft. Pimba em quem tá com a televisão ligada!

 

Lourenço Mutarelli – O Cheiro do Ralo

O Cheiro do RaloE aí galera, belezinha? Estamos chegando ao final de mais um mês, daqui a pouco o Livrada! completa quatro meses, como o tempo se arrasta…

Gente, vamos ajudar a divulgar o blog. Linkem, mostre para a sua avó, sugiram como pauta para os seus veículos de comunicação, comentem com os amigos na rodinha do café, pixem a URL nos muros da cidade (mentira, não façam isso que é contra a lei!), enfim, vamos expandir essa pequena comunidade de leitores, hã, que tal? Assim todo mundo se anima a inventar coisas novas…

O post de domingo é aquele post garoto, aquele post malandro, oportunista que só ele, pegando carona no hype da galera, surfando no tsunami da modinha. Eis que, sexta feira, Lourenço Mutarelli, autor de hoje, esteve na Itiban para bater um papo com seus fãs e leitores em geral. E pensei: “Ora, por que não fazer um post sobre o gajo?” E, para escolher a obra a ser tratada aqui primeiro (pois tenho essa ambição louca de resenhar todos os livros que já li), resolvi escolher O Cheiro do Ralo, não só porque foi o primeiro livro dele que eu li, segundo porque o filme, baseado na obra, tem aquele significado especial pra mim e quem sabe tá ligado.

Lourenço Mutarelli disse lá na Itiban que a ideia para o livro veio de um pensamento trivial, que é o seguinte: seu ateliê de literatura e desenho fica no quartinho da empregada, que tem um banheirinho (é chique pacaceta isso: a única suíte do apartamento quase sempre é da empregada) do qual saía um cheiro horroroso. E ele pensou que, um dia, esse cheiro ia acabar queimando os miolos dele. A partir daí, compôs uma maravilhosa história sobre a loucura e as possessões, protagonizada por um personagem que ele diz ser o oposto dele em termos comerciais. Mutarelli afirmou sempre ser muito mal tratado pelo comércio por sua mal-trajância (aí, galera do dicionário, chega mais) e resolveu que seu herói cuzão seria alguém que sempre levasse vantagem nas negociações, sempre lucrasse. Daí nasceu Lourenço, dono de uma lojinha de objetos usados que é atormentado pelo cheiro do ralo do banheiro. Impetuoso e cruel com seus clientes, só possui duas fraquezas: o cheiro do ralo, que não quer que ninguém pense que é dele, e a bunda de uma garçonete de um botecão.

Lourenço MutarelliA história é um pouco indescritível por ser formada de vários acontecimentos sem muita conexão entre si. Basicamente é o retrato das obsessões do personagem em busca da famigerada bunda. Diria que o filme é recomendável para conhecer o universo de Mutarelli, não fosse o livro ser tão mais esclarecedor nesse sentido. Primeiro que muitas das histórias escritas não foram transpostas para a tela (entre elas, a do sujeito que gostava de rasgar dinheiro, um dos pontos altos da trama), segundo porque o estilo do autor, extremamente econômico nas palavras, dá a história um pouco do distanciamento necessário para a noção do desconhecido, mesmo que se trate de uma narrativa interior, com fluxos de pensamentos e tudo mais (herança beatnik, né? Ele deve ser o único cara da face da terra que fez algo de bom com essa influência beat). Mas sim, assistam o filme também, afinal, tem o Selton Mello, esse sujeito engraçado que só faz papel de si mesmo e transformou uma história extremamente down em algo, no mínimo, tragicômico.

Mutarelli escreveu o livro em 2001, durante cinco dias, e publicou pela Devir esse livro. Eu realmente espero que algum dia ele consiga que esse livro seja republicado por outra casa editorial. Vamos combinar que a Devir pode manjar de quadrinhos, mas puta merda, tem muito o que aprender na editoração de literatura. Se eu disser pra vocês que a ficha técnica do livro tá escrita em Comic Sans, vocês vão dizer “esse Yuri diz cada besteira…”. Mas é sério. Pior de tudo é que é sério. E não é tudo. Papel offset horroroso, capa mole sem orelha podrassa e, depois que o filme foi lançado, uma dessas capas de papel que cobrem a capa original pra levar o livro no sucesso da telona, só que é um papel tão vagabundo que ele raspa e perde a impressão, parece aquele papel de bobina de cartão de débito, de tão podre que é. Um desrespeito tamanho com a obra do cara. Se fosse comigo, eu ficaria puto.

Há pontos positivos também. Na quarta capa antiga, uma carta do músico (?) Arnaldo Antunes muito elogiosa, e na quarta capa nova, o depoimento de Selton sobre como ele se tornou o Lourenço na adaptação cinematográfica. O prefácio (econômico que só ele) é assinado por ninguém menos que Valêncio Xavier (hum, preciso falar de algum livro dele por aqui, não acham?) e os capítulos são permeados de ilustrações do próprio autor, uma prática que se mostrou constante em suas publicações literárias futuras. E claro, o principal ponto forte dele é a grande história. Mas, no resto, parece livro pirateado.

A resenha de hoje está curtinha, eu sei. Voltaremos na quarta com mais livros bons.

Comentário final: 142 páginas de offset. A vida é dura.

Herman Melville – Bartleby, o Escrivão (Bartleby, The Scrivener)

Oi Yuri, como você está? Eu estou bem, gentileza sua perguntar. Como foi a banca da monografia? Ótima, amigo, nota dez pra refrescar a cabeça depois de ano e meio de trabalho. E agora, bola pra frente e taca carvão nessa máquina massacrante de literatura que é o Livrada!

Meus amigos, em verdade vos digo: às vezes é um pouco trabalhoso conseguir ter alguma parte da cultura coletiva instalada na sua cachola. Claro que muita gente já ouviu falar de Moby Dick, mas você sabe de verdade quem já leu? Pouquíssimas pessoas. A mesma coisa com Dom Quixote. Se você quiser bater no peito e falar que leu a obra-prima do Cervantes, vá lá, mas prepare-se para centenas de páginas para serem vencidas, caso contrário, a única coisa que você vai saber sobre o engenhoso fidalgo é que ele, durante umas duas páginas, fala de uns tais moinhos de vento. E aí se prepara para os pescotapas e os amigos te zuando de leitor de orelha e afins. Agora, existem livros menores e mais fáceis de serem lidos, entendidos e utilizados em suas conversas de boteco. Pra isso, o papai aqui dá a dica: Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville.

Mais por desencargo de consciência — acredito que a maioria dos meus leitores já deve ter lido esse livro — a história fala de um advogado de Wall Street que contrata um copista pra ajudar nas tarefas, que só aumentam. O sujeitinho é estranho, não conversa, não come e não lê nada. Mas enfim, era o começo daquela falta de interesse na vida alheia que assola a modernidade desde que instituíram a bisbilhotice como coisa típica de gente da roça. Então ele vai deixando passar. Até que um dia, Bartleby se recusa a fazer a tarefa que lhe é conferida. E a partir daí, não faz absolutamente mais nada, sempre respondendo com o seu inigualável bordão: “Acho melhor não”. Tá, não contei absolutamente nada de novo pra vocês, né?

Primeira consideração sobre esse livro: Claro que o personagem de Bartleby é cativante (menos naquela montagem teatral que fizeram da peça. Sem querer ser machista, mas acho que igualdade de sexos não serve na hora de interpretar papéis masculinos), uma análise mais fria (e simplista) da história pode mostrar que o Bartleby é só um obstáculo, uma parede em um beco sem saída na qual o narrador advogado bate constantemente, a cada tentativa de gesto de boa vontade por parte dele. O advogado, esse sim, é o mérito do conto de Melville. Na narração em primeira pessoa, a primeira frase do segundo parágrafo justifica o livro inteiro: a ideia sustentada por ele de que a vida mais confortável é a melhor. E o que é mais confortável do que ignorar a existência de um problema, como ele faz? A construção desse personagem é que é o barato do livro, e vocês hão de concordar que muitos de nós não agiríamos diferente do narrador, em prol da civilidade que neguinho brada aos quatro ventos.

Segunda consideração: Melville antecipou em uns 80 anos o tipo de suicídio social que a gente vê hoje, a vagabundagem por opção. Claro que ninguém nunca ficou sabendo por que Bartleby deixou de viver, e nem era a intenção explicar isso. Sabe, né? Mesma coisa da prevaricação da Capitu, o buraco que o autor deixa pra fazer a obra perdurar em debates bestas de professorinhas de literatura que organizam tribunais na sala, dividindo em acusação e defesa da cigana os mancebos, que, a essa altura, só estão querendo saber mesmo é de ir pra casa fazer negócios escusos. De qualquer jeito, essa vagabundagem por opção, essa decisão por não fazer mais nada é algo que instiga tanto todo mundo como se ninguém nunca tivesse preferido não fazer alguma coisa. De Enrique Villa-Matas, que usou o nome do copista para fazer um livro sobre os escritores que deixaram de escrever (aliás, alguém aí já leu Villa Matas? Qual livro deles recomendam?), a Homer Simpson, que já dizia que se algo é muito difícil então não vale a pena ser feito, todas as vontades passam pelo filtro de nosso juízo, que analisa cada situação e vê se a gente não vai dar com os burros n’água. Viram isso que eu escrevi? Um péssimo jeito de terminar um parágrafo. Anotem e aprendam como não fazer.

E chega de papo, vamos falar desse projeto gráfico da Cosacnaify. Já me dei conta que a editora está mesmo no ramo da arte, e juntar a arte de fazer um livro com a arte da literatura. Essa edição maravilhosa vem toda costurada artesanalmente, e, para começar a ler o livro, você precisa descosturar a capa e abrir (de preferência com um estilete ou um abridor de correspondências; eu usei minha inseparável balisong) cada par de páginas. Para isso, eles fornecem um marcador transparente, que não é exatamente a ferramenta ideal, mas é bonito e serve como um marcador mesmo, para a VIDA. Só fiquei um pouco triste porque a capa é de couro verde, e, devido às condições insalubres do meu apartamento, ela acabou mofando e desbotando em algumas partes. Mas tudo bem. Ah, comprei esse livro por R$1,50 porque a Saraiva tava fazendo uma promoção com ele a R$16,50, valor do qual abati quinze reais com meu cartão fidelidade (cartão fidelidade, aliás, é um conceito muito agressivo. Pensar que alguém é fiel a uma loja é rebaixar a dignidade humana a uma subserviência comerciária. Desprezível *ptuu* cospe no chão). Tudo isso para você ser ainda mais ativo ao ler o livro e, ao contrário de Bartleby, achar melhor sim, abrir cada página do livro pra saber o que acontece. O livro vem embalado no plástico que traz o bordão de Bartebly estampado, uma provocação pra você ler o livro. Aliás, “Acho melhor não” é a tradução que melhor cai aos ouvidos, da expressão original “I rather not”. Traduzir ao pé da letra — o “prefiro não” da peça já mencionada e da edição publicada da L&PM realmente não desce redondo. Assim como utilizar a palavra “Escrivão”, ao invés de “Escrituário” das outras edições também ficou melhor, na minha singela opinião. Ah, esqueci de dizer que o posfácio é assinado pelo Modesto Carone, o homem-Kafka, que, obviamente, não deixa de citar o escritor tcheco. Fico imaginando se, ao invés do Caetano, o pessoal do Segundo Caderno entrevistasse o Carone. “E aí, Sr. Carone, o que o senhor acha dos discos lançados apenas na internet?”, “Ah, veja bem, Kafka…” (Brincadeira, hein, Modesto).

Comentário final: 46 páginas offset. Se for bater em alguém com Melville, ainda é melhor usar o Moby Dick.

Rosa Montero – História do Rei Transparente (Historia del Rey Transparente)

E começou as postagens do meio da semana. Agora é assim. Tá cansado de ter que esperar o domingão, o único dia que você tem pra passar longe de um livro, ou o único dia que você tem pra LER um livro, pra ler uma resenha ixperta aqui nesse blog horroroso (esteticamente falando)? Tudo bem, agora tem postagem quarta feira também, maluco!

Vixe, demorou pra esse livro ser a bola da vez aqui, hein? Rosa Montero é a minha escritora espanhola favorita (até porque nem sei se eu conheço mais escritores espanhóis — e Cervantes não vale né, porra?), e a Historia do Rei Transparente foi o primeiro livro dela que eu li. E digo mais: li no original, em ER-PA-NIOL. Éééééé cumpádi, tá pensando o quê? Aqui não tem filho de pai assustado não! E que satisfação ler um livro tão bom no original. Dá a sensação de que, se alguma coisa se perdeu na tradução, você não deixou passar.

Bom, esse livro é também, de longe, o maior sucesso editorial da Rosa. Ela tem uma santíssima trindade dos seus livros: pra quem curte uma história mais fantasiosa, a História do Rei Transparente não tem pra ninguém. Pra quem curte algo um pouco mais pé no chão e ainda assim, igualmente boladão, o livro certo é a Filha do Canibal. E, finalmente, pros cabeçudos e pseudo-cabeçudos que curtem um ensaiozinho assim, de leve, mel na chupeta, A Louca da Casa é o que há. Espero falar de todos, mas hoje, nos interessa aqui o primeiro, o fantasioso bolado, LESKE (ih, quem não é do Rio boiou agora).

A História do Rei Transparente é o resultado de uma grande pesquisa da autora sobre o período medieval — as cruzadas, mais especificamente. Se passa na frança rural e conta a história de Leola, uma mocinha roceira daquelas de dênti pôdi que dá na festa junina que, um belo dia, se vê órfã no mundo por causa dos cavaleiros que passaram ali e mataram todo mundo. Como não bastasse, o namoradinho, Jacques, se manda pra lutar pela causa, arrastado contra sua vontade. Sem ter muito o que fazer, ela se veste com a armadura de um homem morto e se passa por homem para sobreviver em um mundo de homens. E não é isso que a mulherada (não todas, só as que tem juízo) anda fazendo nos dias de hoje?

Aventurando-se pelo mundo, ela conhece Dhuoda (gente, desculpa se os nomes são outros na versão traduzida, ok?), uma bruxa que não é bruxa mas sim, antes de tudo, uma mulher de razão e conhecimento, a bruxaria da época (deixa só eles saberem que ser bruxa hoje é ser gordinha de batom preto, cabelo bom e escutar Tristania). Juntas, as duas vão, aos poucos, arrebanhando um exército de desajustados, ou melhor, de desqualificados para a época. Anão, gente com síndrome de down, enfim, tudo com o que o Todd Solondz poderia fazer uma piada só está ali, é a sua trupe.

A História do Rei Transparente é, antes de tudo, um romance sobre a intolerância e sobre a inadequação ao mundo — algo que todos nós (não todos, só os que têm juízo) já experimentamos uma vez ou outra. Sabe aquelas merdas que falam sobre os clássicos da literatura que é um livro que, embora se passe em outra época, é atual e blá blá blá whiskas sachê? Mentira, amigo. Tô lendo Anna Kariênina e nunca aquilo ali vai ser algo atual depois dos anos 60. Tá ali um livro que cheira a museu, rapaziada (tá certo, alguns podem ser de fato atuaizassos, mas a grande maioria vai só na aba dessa mesma justificativa que, acredite, não se encaixa em todos os clássicos). Esse livro sim é atual. Tá certo, foi escrito em 2005, mas é atual na alegoria de algo antigo que se faz atual (Ah, não vem não, que você entendeu). Por isso, é um clássico da literatura. Como que eu sei? Tá com a tag “clássico da literatura”. Tá ali, pode ver, é clássico sim.

E que personagens memoráveis, amigos. Que narrativa fluída (mesmo em erpaniol), que sagas emocionantes, que história cativante. Fico boladão como a galera não tá tão ligada nesse livro quanto deveria estar. Candidato a ser livro favorito de muita gente. Quero ver engolir o choro lendo esse livro, quero ver! Quem não leu tem que ler e quem já leu tá ligado na missão. Ó, tô recomendando, hein? Não é todo dia que eu recomendo livro aqui, só limito-me a comentá-los, mas tô recomendando esse.

Boa notícia pra quem gosta de erpaniol: Dá pra achar esse livro no original, numa belíssima edição da Alfaguara. Talvez na Fnac. Senão, o jeito é ler a versão em português, da Ediouro, numa edição bonita também, mas não tão bonita quanto essa da Alfaguara. Por isso, as duas editoras levam as tags de hoje. No começo do livro ainda tem, como é peculiar dos livros medievais, um mapinha, inclusive com a suposta indicação da ilha de Avalon. Isso, aquela mesma que aparece na revista dos famosos… Animal!

Ah, e o que é a História do Rei Transparente? Por que esse livro tem esse título? Eu é que não vou contar, tenho amor à vida.

Comentário final: 574 páginas pólen soft. Sabe aquela cena do extintor de incêndio em Irreversível? Dá pra trocar o extintor por esse livro.