Talvez a personagem mais rasa de toda a história do Breaking Bad, a Marie, cunhada do Walter White é, ainda assim, mais profunda que boa parte dos protagonistas de seriados que a gente vê por aí – e olha que ela é uma secundária bem secundária. Seu bordão favorito diz: “Na dúvida… roxo”, referindo-se a sua cor favorita, uma tentativa desesperada da personagem de acrescentar mistério e complexidade a uma personalidade tão calcada na inveja e na ostentação.
A frase da Marie pode ser adaptada aqui para meus propósitos: “Na dúvida…russos”. Ora, eis aí você, entediado com a mesmice da estética urbana da literatura brasileira contemporânea. Russos. Você aí que reclama que a emergente literatura americana não fala ao seu coração. Russos. Você que reclama que o mérito literário é ofuscado pela especulação editorial. Russos. Você que não gosta de ler uma boa história que seja apenas uma boa história, desprovida de maiores significados. Russos.
A literatura russa, meus camaradinhas, é o elixir da vida literária, uma fonte quase inesgotável de bom paladar. Os russos são praticamente os Globetrotters da fina arte de colocar uma palavra na frente da outra até virar obra-prima. E Nikolai Gogól, que na verdade era ucraniano, mas como naquela época era tudo a mesma coisa, é fagocitado pelo dream team da literatura europeia do século 19. E essa pequena novelinha, intitulada Tarás Bulba, ilustra bem a potência da escrita desse cara. Vamos a ela.
Publicada em 1835, na época em que a Ucrânica morava na casinha de cachorro no quintal da Polônia, Tarás Bulba é um clássico folclórico-épico-powerviolence, uma dessas histórias bem fundamentadas no espírito cossaco, que é uma espécie de gaúcho mais macho e mais bêbado. E, aliás, essa é a coisa boa da literatura russa: todos os livros falam sobre a Rússia. Na dúvida sobre algum simbolismo de obra russa? Pode ter 90% de certeza de que o elemento que você está tentando decifrar simboliza a pátria-mãe de maneira geral.
Tarás Bulba é o nome do velhinho protagonista. Ele tem dois filhos, Óstap e Andrií, que regressam ao lar depois de terminar seus estudos. Ora, o Bulba é um cara das antigas, da época em que escola era coisa de grã-fino, e com medo dos filhos emboiolarem, resolve pegar os dois e se alistar junto com eles nas tropas zaporogas, que eram uns cabras machos que em tempos outros lutavam e matavam, mas que então só bebiam. Ele chega acelerado. “Vamo matá uns cabras aí!”, ele teria dito, mas seus superiores só suspiraram e disseram. “Mas a gente assinou contrato de paz com meio mundo, não tem com quem brigar”. Então eles vagueiam e vagueiam até descobrir uma pinimba mínima com os judeus poloneses que estariam extorquindo seus irmãos de pátria, e partem pra lá com toda fúria cristã junto com uns tártaros que por acaso estavam ali de bobeira. Só que aí o Andrií conhece uma polaca ajeitada e bandeia pro lado de lá no meio de um cerco. Pronto, está armado o grande livro de guerra que vocês vão ler se tiverem algum juízo.
Bom, a primeira coisa a se considerar é que Tarás Bulba foi um dos primeiros livros a enaltecer gente de baixo, gente do povão, gente que a Regina Casé entrevista pro Fantástico. Com isso, veio também o uso de expressões populares e uma certa aura de anjo tosco para dar digamos… cor local pra essa galera. Muito xingamento, bebedeira, porradaria e um ritual de coroação de general muito do escroto, com lama na cabeça e tals. Isso tudo faz com que os cossacos sejam uma galera muito cool, e muito valentona, tipo um Leões da Fabulosa eslava.
Agora, de uma maneira geral, é possível fazer uma leitura elitista da obra também. Dá pra ver, só pela cara, que o Gogól não é exatamente um cara que veio das streets, né? Bom, daí que a história toda tem, em seu desenvolvimento, um simbolismo global, razão pela qual, inclusive, Tarás Bulba faz parte de uma série de novelas chamada Mírgorod (algo como Cidade do Mundo, e fiquei orgulhoso porque consegui traduzir essa expressão sozinho). Cabe que a mãe dos moleques fica chorando em silêncio vendo os filhos letrados saindo pra guerra por causa do pai velho. É como se toda a terra russa, numa ânsia para se ocidentalizar e, antes de tudo, vestir a coleção outono-inverno da civilização, se atrasasse toda por conta da vibe ogra e ongonorante dos cossacos, uma verdadeira pedra no sapato da civilidade, ainda que amplamente adorados por suas histórias fantásticas de façanhas incríveis, capaz de arrastar até mesmo as novas gerações letradas e comportadas para os olhos franceses. Isso se traduz inclusive durante a primeira metade da história, quando os cossacos não acham com quem brigar e muitos pisam na bola feio com as tropas por conta das bebedeiras. Ou seja, nem pra porrada mais essa galera serve. Mas aí, da metade pro final, entra a celebração ucraniana, doa a quem doer, apesar dos pesares, grandes heróis e muito honrados sim senhor, mas ao mesmo tempo os diminui pelos vacilos constantes. Ou seja, não é nem a figura do herói nem a do completo anti-herói que temos aqui, mas o começo da decadência cossaca explorada em toda sua complexidade humana. Gogól é assim, um cara dividido entre o mundo ao qual pertence e que necessariamente é antagônico ao mundo da ogrisse, e o mundo da celebração folclórica. É tipo você gostar de Lampião pela seu banditismo por uma questão de classe, mas ficar puto quando uma moça é estuprada na sua cidade. Shame on you, aliás.
Esse livro faz parte da Coleção Leste, da editora 34, e tem tradução direta de Nivaldo dos Santos, que está para Paulo Bezerra, Rubens Figueiredo e Boris Schneiderman como Van Damme está para Stallone, Schwarzenegger e Chuck Norris. É um cara bom demais, mas subestimado ante seus pares, acredito. O sujeito trabalhou numa rádio em Moscou, galera, isso é muito tr00 pra tradutores. Pensem nisso. O livro conta com um pequeno posfácio dele, que contextualiza a obra na história, é impresso em papel pólen, fonte Sabon e uma belíssima ilustração de ninguém menos que Delacroix. Gente refinada é outra coisa.
PS: Daqui a uma semana tiro férias e o blog vai ficar parado por um mês e meio. Pode ser que esse seja o último post antes do recesso, porque tô na semana dos preparativos pra viagem. Mas se der tempo, faço outro pra próxima segunda.
Comentário final: 170 páginas em papel pólen. Cacete na cossacada!