Nikolai Gogól – Tarás Bulba (Тара́с Бу́льба)

Тара́с Бу́льбаTalvez a personagem mais rasa de toda a história do Breaking Bad, a Marie, cunhada do Walter White é, ainda assim, mais profunda que boa parte dos protagonistas de seriados que a gente vê por aí – e olha que ela é uma secundária bem secundária. Seu bordão favorito diz: “Na dúvida… roxo”, referindo-se a sua cor favorita, uma tentativa desesperada da personagem de acrescentar mistério e complexidade a uma personalidade tão calcada na inveja e na ostentação.

A frase da Marie pode ser adaptada aqui para meus propósitos: “Na dúvida…russos”. Ora, eis aí você, entediado com a mesmice da estética urbana da literatura brasileira contemporânea. Russos. Você aí que reclama que a emergente literatura americana não fala ao seu coração. Russos. Você que reclama que o mérito literário é ofuscado pela especulação editorial. Russos. Você que não gosta de ler uma boa história que seja apenas uma boa história, desprovida de maiores significados. Russos.

A literatura russa, meus camaradinhas, é o elixir da vida literária, uma fonte quase inesgotável de bom paladar. Os russos são praticamente os Globetrotters da fina arte de colocar uma palavra na frente da outra até virar obra-prima. E Nikolai Gogól, que na verdade era ucraniano, mas como naquela época era tudo a mesma coisa, é fagocitado pelo dream team da literatura europeia do século 19. E essa pequena novelinha, intitulada Tarás Bulba, ilustra bem a potência da escrita desse cara. Vamos a ela.

Publicada em 1835, na época em que a Ucrânica morava na casinha de cachorro no quintal da Polônia, Tarás Bulba é um clássico folclórico-épico-powerviolence, uma dessas histórias bem fundamentadas no espírito cossaco, que é uma espécie de gaúcho mais macho e mais bêbado. E, aliás, essa é a coisa boa da literatura russa: todos os livros falam sobre a Rússia. Na dúvida sobre algum simbolismo de obra russa? Pode ter 90% de certeza de que o elemento que você está tentando decifrar simboliza a pátria-mãe de maneira geral.

Tarás Bulba é o nome do velhinho protagonista. Ele tem dois filhos, Óstap e Andrií, que regressam ao lar depois de terminar seus estudos. Ora, o Bulba é um cara das antigas, da época em que escola era coisa de grã-fino, e com medo dos filhos emboiolarem, resolve pegar os dois e se alistar junto com eles nas tropas zaporogas, que eram uns cabras machos que em tempos outros lutavam e matavam, mas que então só bebiam. Ele chega acelerado. “Vamo matá uns cabras aí!”, ele teria dito, mas seus superiores só suspiraram e disseram. “Mas a gente assinou contrato de paz com meio mundo, não tem com quem brigar”. Então eles vagueiam e vagueiam até descobrir uma pinimba mínima com os judeus poloneses que estariam extorquindo seus irmãos de pátria, e partem pra lá com toda fúria cristã junto com uns tártaros que por acaso estavam ali de bobeira. Só que aí o Andrií conhece uma polaca ajeitada e bandeia pro lado de lá no meio de um cerco. Pronto, está armado o grande livro de guerra que vocês vão ler se tiverem algum juízo.

Микола ГогольBom, a primeira coisa a se considerar é que Tarás Bulba foi um dos primeiros livros a enaltecer gente de baixo, gente do povão, gente que a Regina Casé entrevista pro Fantástico. Com isso, veio também o uso de expressões populares e uma certa aura de anjo tosco para dar digamos… cor local pra essa galera. Muito xingamento, bebedeira, porradaria e um ritual de coroação de general muito do escroto, com lama na cabeça e tals. Isso tudo faz com que os cossacos sejam uma galera muito cool, e muito valentona, tipo um Leões da Fabulosa eslava.

Agora, de uma maneira geral, é possível fazer uma leitura elitista da obra também. Dá pra ver, só pela cara, que o Gogól não é exatamente um cara que veio das streets, né? Bom, daí que a história toda tem, em seu desenvolvimento, um simbolismo global, razão pela qual, inclusive, Tarás Bulba faz parte de uma série de novelas chamada Mírgorod (algo como Cidade do Mundo, e fiquei orgulhoso porque consegui traduzir essa expressão sozinho). Cabe que a mãe dos moleques fica chorando em silêncio vendo os filhos letrados saindo pra guerra por causa do pai velho. É como se toda a terra russa, numa ânsia para se ocidentalizar e, antes de tudo, vestir a coleção outono-inverno da civilização, se atrasasse toda por conta da vibe ogra e ongonorante dos cossacos, uma verdadeira pedra no sapato da civilidade, ainda que amplamente adorados por suas histórias fantásticas de façanhas incríveis, capaz de arrastar até mesmo as novas gerações letradas e comportadas para os olhos franceses. Isso se traduz inclusive durante a primeira metade da história, quando os cossacos não acham com quem brigar e muitos pisam na bola feio com as tropas por conta das bebedeiras. Ou seja, nem pra porrada mais essa galera serve. Mas aí, da metade pro final, entra a celebração ucraniana, doa a quem doer, apesar dos pesares, grandes heróis e muito honrados sim senhor, mas ao mesmo tempo os diminui pelos vacilos constantes. Ou seja, não é nem a figura do herói nem a do completo anti-herói que temos aqui, mas o começo da decadência cossaca explorada em toda sua complexidade humana. Gogól é assim, um cara dividido entre o mundo ao qual pertence e que necessariamente é antagônico ao mundo da ogrisse, e o mundo da celebração folclórica. É tipo você gostar de Lampião pela seu banditismo por uma questão de classe, mas ficar puto quando uma moça é estuprada na sua cidade. Shame on you, aliás.

Esse livro faz parte da Coleção Leste, da editora 34, e tem tradução direta de Nivaldo dos Santos, que está para Paulo Bezerra, Rubens Figueiredo e Boris Schneiderman como Van Damme está para Stallone, Schwarzenegger e Chuck Norris. É um cara bom demais, mas subestimado ante seus pares, acredito. O sujeito trabalhou numa rádio em Moscou, galera, isso é muito tr00 pra tradutores. Pensem nisso. O livro conta com um pequeno posfácio dele, que contextualiza a obra na história, é impresso em papel pólen, fonte Sabon e uma belíssima ilustração de ninguém menos que Delacroix. Gente refinada é outra coisa.

PS: Daqui a uma semana tiro férias e o blog vai ficar parado por um mês e meio. Pode ser que esse seja o último post antes do recesso, porque tô na semana dos preparativos pra viagem. Mas se der tempo, faço outro pra próxima segunda.

Comentário final: 170 páginas em papel pólen. Cacete na cossacada!

valter hugo mãe – o apocalipse dos trabalhadores

valter hugo mãeNão vou mentir. Quando conheci a literatura de valter hugo mãe (novamente sem maiúsculas), fiquei abismado. Ali estava alguém que debulhava como poucos a tal prosa poética que muitos queriam conseguir, naquele então novo a máquina de fazer espanhóis. Para quem não lembra, a resenha está aqui. Logo depois veio o Filho de Mil Homens, dessa vez com maiúsculas, e, novamente, uma cacetada literária em quem tava de bobeira esperando a nova revelação literária vinda do Rio Grande do Sul (já foram praquele lugar? Como alguém bem disse, você levanta uma pedra e saem vinte contistas. Eu hein?). Por isso, não quis nem saber e peguei a nova edição da Cosac Naify de o apocalipse dos trabalhadores, que mais tarde descobri ser um livro anterior à máquina. Esse pequeno detalhe muda em muita coisa minha avaliação do livro, mas vejamos uma e depois a outra, com uma sinopse antes.

O romance do portuga tem dois núcleos, como compete à maioria de seus livros. O primeiro é o de Maria das Graças (vou colocar os maiúsculos aqui porque toda vez o Word quer me corrigir e é um saco ter que ficar voltando os espaços, tira a fluidez do texto. Valtão, se estiver me lendo, desculpa aí), uma doméstica que tem pesadelos recorrentes de que morre e precisa se justificar diante de São Pedro pra poder entrar no céu. Na ilusão dela, quem a mata é o Sr. Francisco, seu patrão, aquele tipo de homem que dá uns catos na empregada de vez em quando, sabe como é, uma coisa muito década de 80/90 aqui no Brasil, mas uma prática possivelmente ainda em voga em Portugal, já que o tempo do romance é posterior a entrada do país na zona do Euro. De qualquer forma, a relação entre a Maria e o Francisco é conflituosa, pois ela nutre uma relação de amor e ódio com o homem, por considerá-lo culto, mas por outro lado, por ser um velho asqueroso, ainda que fascinante, e por explorá-la como qualquer patrão pré-PEC das domésticas. O outro núcleo é conectado a esse pela confidente da Maria, a Quitéria, uma moçoila que também é doméstica e se envolve com o Andriy, um imigrante ucraniano novinho. A história dele é bem mais interessante do que a da doméstica. O sujeito tem um pai louco com mania de perseguição, e a mãe dele é uma senhorinha resignada, que tenta aplacar a loucura do marido e se conformar de ter o filho longe – ei, não é muito diferente da esposa do Tarás Bulba, hein? Será que houve uma inspiração Gogolística aí? Enfim, daí que ele chega com uma mão na frente e outra atrás a Bragança e vai aprender a fazer pizza, e se envolve com a Quitéria, que tem por ele ternura e admiração. Ah, e ela e a Maria fazem freela de carpideira, que é tipo palhaço de festa, só que pra enterro, e triste ao invés de feliz.

valter hugo mãeBom, esse é o núcleo da trama, e pra frente disso é spoiler e eu tô meio de saco cheio de ter que ficar avisando que tal coisa tem spoiler ou não e direcionar o que o leitor pode ler e o que não pode. Taí um texto que served pra todo mundo menos pra acadêmico que gosta de ficar dissecando palavra por palavra das coisas. Aqui vou fazer agora algo mais leve e solto, e relatar minhas impressões do livro e nada mais por hoje, porque análise a essa hora da noite é algo que foge à minha alçada. Bom, aqui temos os temas que o mãe usa pra maioria de seus romances: solidão, amor, morte e gente feia (na verdade, esse último é subjetivo, mas eu sempre imagino todos os personagens do vhm mais feios que a necessidade). E são temas que ele explorou bem melhor em seus últimos dois romances, o que me leva a inadiável verdade: não gostei desse livro. Nem de longe vemos aqui o lirismo e a acurácia poética que o autor mostrou ter em trabalhos futuros, e muito menos histórias instigantes. Temos é uma literatura morna e sem muitas jogadas além de adjetivações estranhas e comparações despropositadas. É claro que se entende que a questão toda gira em torno de pessoas que buscam uma vida melhor, seja o imigrante, seja o trabalhador explorado, e o sonho com a morte da Maria tem a ver com essa mudança de vida pra melhor. Mas o livro não se resolve tão bem quanto eu gostaria, e oferece poucas coisas surpreendentes, coisas surpreendentes com as quais nos acostumamos com facilidade lendo o valter hugo. Enfim, é um livro ruim se comparado com os outros, mas um livro bom se comparado com a média nacional. Acho que tudo seria melhor se ele colocasse mais umas viagens no meio, mas isso é só minha opinião. Enfim, a culpa é dele que elevou demais minhas expectativas com sua obra. Continue assim, champs.

Coisa boa é a edição da Cosacnaify que, como sempre, capricha na arte, embora seja bem verdade que ninguém até hoje conseguiu fazer frente à arte do glorioso Lourenço Mutarelli na edição brasileira da máquina de fazer espanhóis. Em todo caso, a colagem parece apropriada para dar o colorido triste que o romance sugere. Senti falta de uma orelha explicando o livro, gosto de ter uma pequena sinopse antes de começar a leitura. É, sou desses. Mas tudo bem.

Comentário final: 192 páginas em papel pólen. Porrada no trabalhador que se esforça com ardor, quando reclama é infrator, um dia de fome, um dia de dor. Suando pra ganhar mixaria, trabalha duro todo dia, trabalha como um condenado por um salário minguado, metralha o trabalhador sem hesitar um instante. “todo preto é safado, confundi com assaltante”. Metralha o trabalhador quando sai da favela, e seu corpo estatela num rápido instante sem dor.

Para começar a ler J.M. Coetzee

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O sul-africano John Maxwell Coetzee, vencedor do prêmio Nobel de literatura em 2003, é um linguista inveterado. Isso se reflete claramente em sua formação acadêmica: Seus dois bacharelados, concluídos na Cidade do Cabo, foram em língua inglesa e matemática (um outro tipo de linguagem, não se pode esquecer). Escreveu em Londres sua tese sobre o escritor britânico Ford Madox Ford, que teve grande influência na formação da linguagem usada na literatura inglesa do século XX; Por fim, tirou seu doutorado em língua inglesa e língua germânica, com foco na literatura de Samuel Beckett. Sua relação íntima com a linguagem faz de sua literatura uma experiência também intimista.

Não é fácil perceber o estilo de seus livros. Sua escrita é daquelas de fluidez aparentemente simplória. Um olhar menos analítico poderia ver apenas uma prosa que não se dá excessivamente a descrições e adjetivações. Em compensação, mesmo um desatento não deixaria passar despercebido sua predileção por digressões psicológicas, precisas em sua escolha de palavras, como uma conta de matemática.

Mas não se engane: há muitas coisas em comum a todos os seus livros: o desconforto provocado no leitor é uma delas. Coetzee constrói protagonistas sofridos, incapazes de estabelecer relações interpessoais sadias, ou mesmo constantes. Quem sabe um reflexo da própria personalidade — sua fama de esquisito e misantropo justifica a recorrência dos distúrbios de personalidade que permeiam sua obra. A tristeza e a impotência perante um mundo ao qual não se pertence e ao qual se deseja pertencer também são constantes. A academia de Estocolmo reconheceu essa idiossincrasia em Coetzee ao ressaltar que o autor “retrata de várias formas o surpreendente envolvimento de quem está à margem”.

Esse envolvimento, porém, é extremamente limitado em várias formas por agentes externos à motivação de seus protagonistas. Os anti-heróis de seus livros são massacrados por esse ambiente quase como em Kafka, especialmente em seus primeiros romances, ambientados em seu pais de origem, de onde vem a famosa frase de seu livro Juventude: “A África do Sul é como um Albatroz em torno de seu pescoço”, numa alusão ao poema de Coleridge, O Conto do Velho Marinheiro, que usa a ave para metaforizar um fardo existencial. A John Maxwell, lhe custa não só o estigma de ser considerado para sempre — por uma desventura geográfica, segundo o próprio no mesmo livro — a ser um autor africano, mas também não ter raízes em sua terra natal, sendo para sempre, onde quer que esteja, um marginalizado como seus personagens.

Prosa, ensaio e memória

A multiplicidade de gêneros em um mesmo livro é outra característica marcante de J.M. Coetzee. Seu livro Elizabeth Costello, lançado em 2003, por exemplo, tem como tema principal não a personagem, escritora de sucesso (alter ego do próprio autor), que frustra a todos e a si própria nos eventos que frequenta, carregando o ambiente com discursos inadequados ao momento. Trata-se principalmente de um compêndio de palestras e ensaios sobre a literatura e seu poder na sociedade que, sim, aplicados na ocasião correta (e não em um cruzeiro marítimo para aposentados) têm grande serventia para a reflexão sobre a arte de escrever. A mistura entre ficção e ensaio, porém, é tão coerente que leva o leitor a acreditar que o autor se aventurou a escrever palestras ruins de propósito. Outro exemplo é seu livro novo Verão, terceira parte da trilogia Cenas da Vida na Província, ficção memorialística sobre sua própria vida. Em Verão, um jornalista com aspirações literárias quer revolver a vida pessoal do autor, que, na ficção, já está morto. Entrevistando um amigo e ex-namoradas, e consultando um diário, o jornalista remonta sua trajetória. Essa mescla de gêneros é, como em Elizabeth Costello, perfeita em sua intenção: mesmo escrevendo sobre si próprio, Coetzee não hesita em expor suas excentricidades e defeitos pela boca de seus personagens.

Qual livro ler?

Embora a bibliografia de Coetzee seja mais vasta, existem apenas onze livros do autor publicados no Brasil atualmente. Seus leitores costumam dizer que, dentre eles, há um que é o mais importante de sua carreira — Desonra — e outro que alguns atestam que seja o melhor escrito — Homem Lento.

Homem Lento é um de seus livros mais brandos. É também o primeiro ambientado completamente em Adelaide, na Austrália, morada atual do escritor. Conta a história de um homem sexagenário (como o próprio) que perde uma das pernas ao ser acertado em sua bicicleta por um carro distraído. Necessitado de cuidados especiais, recebe em sua casa uma enfermeira croata, por quem passa a ter um incontrolável desejo afetivo e sexual, embora ela seja casada, com filhos crescidos e até um pouco feia.

O livro traz uma curiosidade: Elizabeth Costello, a personagem do livro com o mesmo nome que também aparece em A Vida dos Animais (um livro de ensaios sobre a ética animal e o vegetarianismo), dá o ar de sua presença ao aparecer na residência do Homem Lento em questão, graças a um mistério metalinguístico. Apesar de ser um livro triste, de esperanças vãs e carências não-correspondidas, Homem Lento não é, nem de longe, massacrante como o resto da obra de Coetzee. Tem todo o brilhantismo de suas análises e a fluidez que lhe é peculiar, por isso talvez seja o melhor título para conhecer sua literatura.

Já Desonra é, de fato, um marco em sua carreira. Graças a esse livro, Coetzee alcançou em 1999 uma proeza única na história da literatura: foi o primeiro escritor a ganhar dois Book Prize (o primeiro havia sido em 1983, por Vida e Época de Michael K., uma história brutal sobre a África pobre). Desonra trata de David Lurie, um professor de uma universidade da África do Sul que é afastado de seu cargo após se envolver com uma de suas alunas. Sem saber o que fazer, vai morar com sua filha, uma fazendeira de trejeitos masculinos que comandava uma pequena cooperativa de agricultores. No interior, conhece a ferocidade e a violência da vida africana, pouquíssimo valorizada e que a todo custo, sobrevive em meio à selva criada pelos próprios homens. É um de seus livros mais tristes (junto com À Espera dos Bárbaros e Vida e Época de Michael K.) e um dos últimos a ser ambientado no país de origem — na época ainda morava na Cidade do Cabo, onde, assim como seu protagonista, lecionava na universidade da capital. Desonra é a obra de Coetzee que melhor representa sua literatura, abrangendo quase que todos os elementos inerentes de sua escrita: a violência humana, a desonra pública, a inadequação aos lugares e a incapacidade de se relacionar. Ficar impassível diante desse livro é quase uma impossibilidade para o leitor.

Embora esteja longe do continente africano e tenha afirmado em Juventude que não criou raízes em parte alguma, Coetzee é um legítimo escritor africano na medida em que narra para fora, e não para seus conterrâneos, as agruras de sua terra. Por meio de sua escrita, sentimos a crueldade da vida e dos homens, e, assim como seus personagens, somos fracos ante sua obra.

Jeffrey Eugenides – As Virgens Suicidas (The Virgin Suicides)

The Virgin SuicidesJá viram esse filme, né? As Virgens Suicidas foi para o cinema pelas mãos da diretora Sofia Coppola, que é uma espécie de Midas às avessas: transforma tudo em que põe as mãos em pura merda. Como, por exemplo: história da França. Não sei se alguém viu Maria Antonieta, mas, se não viu, continue assim com essa atitude positiva com a vida e fique longe dessa aberração cinematográfica. E sei que estamos vivendo em tempos muy delicados, em que não faltam dedos para acusar o próximo de sexismo e homofobia, mas a impressão que eu tenho vendo a obra dela é a de que ela transforma toda a realidade sob uma ótica de menininha deslumbrada, uma vibe meio revista capricho, meio jovem indie inculta.

Mas não estamos aqui pra falar da obra da Sofia Coppola, embora ela me sirva de ponto de partida. Pois foi o que pensei quando vi As Virgens Suicidas, o filme baseado no romance de Jeffrey Eugenides. Pensei: “taí um filme que estragou o que deve ser um belo de um livro”. Mas naquela época não conhecia a obra de Eugenides. Tempos depois li A Trama do Casamento, que achei um livro muitíssimo divertido, embora tenha terminado com uma leve impressão de que ele se pretendeu muito mais profundo do que realmente é. Daí peguei esse As Virgens Suicidas pra ler e acho que quando você lê 66% da obra de um autor, você já é capaz de dar um juízo mais ou menos certo sobre sua carreira. E vou dizer que, embora todo mundo me diga que o Middlesex, o outro livro dele que ainda não li, é muito bom, o sujeito é fraco pra diabo. Desses esforçados, coitado, mas ainda assim, fraco. Felizmente pra ele, esse romance virou Cult e agora as pessoas gostam mesmo sem saber o porquê. Bom, eu vou dizer exatamente por que eu não gostei.

Antes de mais nada, uma ressalva à tradução. O título original, The Virgin Suicides, tem um significado diferente da tradução, As Virgens Suicidas, embora pareça a mesma coisa. Do jeito que foi traduzido, tem-se a impressão de que o livro trata de meninas virgens com tendências suicidas, ao passo que, penso eu, o original traduz-se mais como Os Suicídios Virgens (até porque a virgindade das meninas não é exatamente atestada). E eis aí a real intenção do autor, suponho de novo. Tratar do incidente como sendo um ato irracional perpretado por quem não tem experiência suficiente para deliberar sobre a própria vida, verificar se há uma sabedoria tirada da vivência necessária para cometer suicídio, enfim, tentar entender o mistério da vida e da morte que não se explica quando acontece com gente jovenzinha. Mas talvez isso tenha sido culpa do cinema, que (eu acho, mas não tenho certeza) traduziu o filme primeiro e o livro pegou o título pra justificar a frase promocional que vem embaixo.

Pra quem não gosta, pode ter spoiler. Ou não, não decidi ainda, mas por via das dúvidas, se isso te incomoda, não leia. A história, pra quem não sabe, gira em torno de uma família de cinco meninas, um pai e uma mãe, übber religiosos, que é devastada quando a menorzinha se mata assim no mais. O lance vira especulação da mídia, dos vizinhos fofoqueiros, dos colegas de escola, e como se dá a convivência da família com a vizinhança depois disso, até o derradeiro momento quando não sobra mais filha pra contar história. Isso tudo não é spoiler porque é contado pelo narrador (e porque o livro chama AS VIRGENS SUICIDAS, por Tutatis, se você não quer presumir nada a partir desse título, você é um péssimo leitor, sabia?), um dos meninos da escola que vivencia tudo como um atento observador que, décadas depois, tenta reunir com os amigos seus documentos sobre a época para, como disse, desvendar o mistério da morte das meninas. Um narrado que está na história, portanto, mas poderia muito bem não estar, porque é inexpressivamente chato e não participa de quase nenhum momento importante do romance. Aqui, mais uma vez, têm-se o subterfúgio do autor que precisa de desculpa pra escrever suas linhas, não vamos julgar – pelo menos não ainda.

jeffrey eugenidesE aí cabe ao leitor tentar interpretar os acontecimentos à luz da desgraça e concluir o que todo mundo sabe: as minas se mataram porque os pais eram todos Jesus freaks bitolados que não queriam saber de namorinho, mão na coxa e rock n’ roll, elementos essenciais para uma adolescência saudável como todo mundo sabe. O problema é que isso é muito óbvio, e ele sabe que qualquer leitor com três gramas de tutano no cérebro vai conseguir inferir isso da leitura, então ele tenta mascarar com passagens dúbias, as quais, mesmo assim, não apontam para qualquer outra explicação. E no final resolve ainda deixar o caso inconcluído na opinião do narrador-observador. O narrador, aliás, mal cogita essa hipótese do bitolamento dos pais, o que só explana o quanto o Eugenides falha miseravelmente em esconder a obviedade do seu livro, porque os velhos ficam malucos e viram a casa num chiqueiro em pouco tempo, tergiversam do assunto e etc.

O autor faz o diabo, é verdade, pra te convencer do contrário: deixa a entender que pode se tratar de pacto com Satanás, bota a culpa nos garotos, na escola, no julgamento que as pessoas fazem depois que a menorzinha se mata, e até numa música que se chama, vejam só, Virgin Suicide. Mas, tal como Moisés, não consegue. E todo o resto do clima que ele tenta dar pra história é igualmente falho. Um arzinho policial pro mistério das mortes? Não consegue. Uma tentativa masculina de desvendar o espírito de jovens mulheres? Não consegue. Uma intenção de marcar o zeigeist com música pop e menções à guerra? Não consegue. Frases profundas? Não consegue. O livro inteiro é um erro na mão desse cara, e a Sofia Coppola, hoje posso dizer, melhorou a bagaça simplificando e enxergando nele o que todo mundo enxergou, e deixando de lado toda a gordura inútil que ele tentou usar para enriquecer a trama.

Contudo, é preciso dizer, o livro é fácil de ler e é uma leitura agradável de tão boba, dessas que passam rápido e nem se sente. Diria que é um desses livros pra você levar pra ler na praia naquele dia em que cai um temporal e acaba a luz durante o dia. É, esse seria o melhor cenário para se ler Jeffrey Eugenides. E baixe a guarda do seu senso crítico também, senão o pretenso pedantismo desse cara vai te matar de desgosto. Aliás, talvez não devêssemos confiar num sujeito que tem cara de quem está tentando um papel em Don Giovanni versão pornô…

Comentário final: 230 páginas em papel pólen com uma capa horrorosa que parece livro da Meg Cabot. Vou nem comentar mais nada.

Voltaire – Cândido, ou o Otimismo (Candide ou l’Optimisme)

Candide ou l'optmisme

Galerinha, sinto informar a todos que este será o último post do Livrada! Não tem mais como, essa porcaria não dá dinheiro e tô cansado de ficar falando de livros aqui quando ganho muito mais visibilidade falando de hambúrguer aqui.

Geral voltando da páscoa, ou voltando do Lollapallooza, ou os dois, e eu aqui, firme e forte na luta, samurai da stronda e samurai do kama-sutra. Não, tamo aqui no Livrada! mesmo tentando jogar uma nova luz em um clássico iluminista: Cândido, ou o Otimismo, livrinho que o sacana-mor, Voltaire, fez para sacanear o Gottfried Wilhelm von Leibniz e sua corrente otimista.

Ao contrário do que interpretou o Bloodhound Gang, Cândido não é um livro sobre viver sua vida a toda velocidade. Vamos expor as aventuras de Cândido para mostrar que 1- é um livro sacana e 2- é um livro sacana que está ao alcance de todos. E depois disso, vamos explicar porquê esse é um livro legal. Esse é o Livrada!, a cada dia que passa mais didático. Suspeito que assim vou terminar minha carreira de comentarista de livros dando aulas-show em cursinhos pré-vestibulares sobre os livros que caem nas provas.

Bom, pra quem não tá ligado no movimento, o Leibniz era algo tipo A Banda Mais Bonita da Cidade em termos filosóficos. Ele defendia, em linhas gerais, a ideia que o mundo era o melhor lugar possível para se estar, e que as desgraças que assolam a humanidade não passam de sombras em um quadro muito bonito. Traduzindo em Caetanês, “tudo é perigoso, mas tudo é lindo e maravilhoso”. Agora veja que ele pensava isso lá no século XVIII, quando o mundo era umas dez mil vezes pior do que é hoje. Naquela época tinha peste, tuberculose mortal, poliomielite, guerra pra caramba, pena de morte decretada pela igreja, infecção ficava preta e cheia de pereba, era uma desgraceira só. Sem falar que não tinha fliperama, rock n roll, internets, desodorante, pasta de dente, procom, etc. Enfim, só podia pensar um negócio desses quem tava bem tranquilinho no seu castelinho alemão escondido do mundo, porque, veja: na filosofia como nós a conhecemos, os geniozinhos gastam metade de suas vidas debatendo as teorias dos outros pra ver quem tá mais certo. Mas esse cara consegue ter sua ideia refutada por um simples passeio no mundo livre! Era, na visão de Voltaire, um zé Mané completo, como não. Por isso ele fez esse livro.

VoltaireCândido, o personagem que dá nome à novela, é um rapazote dos mais ingênuos que vive enclausurado em um castelinho na Westfália, território alemão, sob a tutela do barão de Thunder-ten-Tronckh, um nome que não quer dizer nada além de mostrar como a língua alemã parece feia pro Voltaire. Lá também há dois personagens centrais dessa história: o filósofo Pangloss, que é um adepto do Otimismo, e a senhorita Cunegunda, a quem Cândido ama perdidamente, e por causa de quem é expulso do castelo quando é flagrado fazendo coisinhas (uma passagem que não esconde uma certa alegoria cristã com o livro do Gênesis). A partir daí, a vida é um desbarrancadeiro que só. Já assistiram a Bem-Vindo à Casa de Bonecas, do Todd Solondz? A ideia é mais ou menos a mesma. O sujeito toma na rabeta 24 horas por dia, sete dias por semana, e mesmo assim tenta manter tudo sob a perspectiva otimista. Isso porque a cada coisa ruim que acontece, outra mais ou menos boa, ou menos ruim, acontece em consequência, fazendo Cândido acreditar que tudo está dando certo mesmo dando tudo visivelmente errado.

Esta é a essência da novela de Voltaire. Mas não pense o senhor e a senhora que ele ia gastar um livro inteiro batendo num só filósofo. O sujeito aproveitou pra atirar pra tudo quanto é lado e zoou alemães, ingleses, franceses, holandeses, católicos, intelectuais, clássicos da literatura, música clássica, donzelas, índios, espanhóis, enfim, saiu distribuindo tapa pra quem aparecesse. E nada de sutilezas, como vocês podem ver pelos nomes alemães já citados. É tudo escrachadão pra ninguém ter dúvidas da real intenção dele. E, claro, por ser escrachadão, é fácil de entender e fácil de rir com ele. Sério, é um livro engraçado, no melhor estilo das sátiras clássicas, e acho que prova bem o seu ponto, embora, como já havia dito no começo do texto, provar que o Leibniz tava errado não era algo lá tão difícil e ele aproveitou esse passeio no parque pra isso.

A nova edição da Penguin-Companhia é bem completinha com um ensaio de abertura, pósfácio e tudo mais, embora não tenha sacado muito qualé da capa. Mas tudo bem, o resto é formatação normal dos livros da Penguin e tudo está certo. Espero que gostem desse.

Comentário Final: 184 páginas. Só machuca ego sensível de filósofo alemão meio burro. Aliás, burro não. O cara é bem inteligente, na verdade. Só acho que talvez o lance dele seja mais a matemática…

Ps: Tu acreditou mesmo que era o último post do Livrada!? Primeiro de abril, mané!