Alain de Botton – A Arte de Viajar (The Art of Travel)

The art of travelOs livros de não-ficção. Ah, os livros de não-ficção. Você pega um toda vez que está cansado de lirismos do romance ou do conto. Toda vez que se sente alienado do que está passando no mundo lá fora e mesmo dentro de você. Toda vez que você passa por uma poesia pichada em um muro. Toda vez que te chamam de burro em público. Toda vez que ouve uma música do Criolo. Toda vez que vê seus amigos ansiosos com a tradução de um livro gigantesco do David Foster Wallace que ninguém vai ler. Toda vez que vê uma fila de autógrafos gigantesca na Flip para o romance de estreia de um autor da Nova Caledônia publicado no começo da década de 80 e traduzido só agora para o português, que fala de como jovens da contra-cultura resistiram ao governo tirano e cruel do ditador caledônio cujo nome você nunca vai conseguir pronunciar. Os livros de não-ficção são altamente necessários quando a ficção e seus elementos cansativos começam a tomar uma porção maior da sua vida do que você gostaria.

E Alain de Botton é um bom antídoto pra isso, descobri depois que meu grande amigo e interlocutor de leituras boas Cássio Capiroba me recomendou e logo depois me presenteou com este A Arte de Viajar, que devorei em poucos dias. O sujeito tem o seu grande mérito, que é o de ser profundo e acessível ao mesmo tempo, e carregado com uma bagagem verdadeiramente erudita, que passa por escritores merdas de outros séculos a livros realmente importantes de outras áreas perto dos quais você nem chegaria perto a não ser que estivesse realmente muito curioso, ele nos brinda neste belo livrinho ilustrado e dividido em vários capítulos, com ensaios sobre, como diz o título, a arte de viajar.

É assim, por exemplo, que ele usa o clássico de Huysmans, Às Avessas, para falar das nossas expectativas quando escolhemos um destino de viagem. É assim também que faz uma longa explicação sobre o legado de Humboldt (o verdadeiro legado, não o livro do Bellow) para a exploração do turista e os reais motivos pelos quais nos interessamos por um determinado lugar, e principalmente, como utiliza Van Gogh e Ruskin para falar da proximidade da arte com a nossa percepção da realidade, e como isso tudo está relacionado com o que atentamos com o olhar quando viajamos. A impressão é que dá é que o cara tem o conhecimento do mundo na mão e usa a seu bel prazer para ilustrar quaisquer pontos que queira para te provar um ponto de vista. Deve ser dureza ganhar uma discussão em mesa de bar com um sujeito desses. Felizmente, o sujeito veio da Suíça, mora lá Inglaterra e meu único contato com ele são esses livros maravilhosos que ele faz.

Alain de BottonA leitura de A Arte de Viajar é extremamente leve e gostosa, o que é um dom raro para quem se propõe a escrever ensaios sobre temas tão filosóficos quanto abstratos. Afinal, condensar uma experiência individual em valores coletivos como ele faz com a viagem é uma tarefa que exige tanto uma sensibilidade quanto a tentações solipsistas quanto a determinação de se unificar o pensamento de maneira que o leitor possa se identificar de maneira rápida e clara com esses devaneios.

Minha crítica ao livro é uma só e vai direto no conceito dele, por mais paradoxal que isso seja, já que passei o texto até aqui jogando confete no dito-cujo: viajar tem algo de misterioso e belo que, de certa forma, morre se algum espertinho vem e te explica o porquê. É como ouvir os Beatles: por mais que te digam que é legal e importante, não vai fazer sentido pra você até que você faça a sua descoberta pessoal na experiência da audição desses almofadinhas britânicos que depois quiseram pagar de lóki (e não é essa a história de toda banda indie hoje em dia?). Mas, como crítico, não posso meter o pau em um livro por ser esclarecedor DEMAIS, mas, ah, sei lá, cara, me deixa aprender sozinho também. Mesmo assim, se você não for um bicho do mato como eu, você vai ler A Arte de Viajar e fazer da leitura o melhor pra você sem ficar encanando com nada. Porque é isso o que o livro é, no final: completo, esclarecedor, leve e divertido. É detalhista ao dar pinceladas gerais, e é sério sem ser carrancudo. É como um amigo mais inteligente que você que te explica as coisas que você sente e não sabe direito o porquê, e aí você fica achando tudo meio gay mas também fica extremamente agradecido. Esse é Alain de Botton.

Esse livro foi publicado pela Intrínseca, e como eu já disse, ele é altamente ilustrado e dividido em vários capítulos, no começo dos quais é anunciado qual será o lugar do mundo discutido e quem serão os guias, quer dizer, quem serão os intelectuais ou as personalidades nas quais o autor vai se basear naquele capítulo. Isso torna a coisa mais didática ainda, permitindo ao leitor buscar por fora quem quer que seja que ele tenha se interessado durante a leitura. É todo em tons de cinza por dentro, mas não importa. O papel ainda é o bom e velho pólen soft com a grande tipografia Electra (salve, Electra!). Tem cabeço e paginação na parte superior e páginas cinzas para separar os capítulos. Um livro que não tem medo de gastar página para ser bonito. Gosto disso. E quem não gosta?

Comentário final: 253 páginas em papel pólen soft. Dá pra matar numa viagem daqui até Aracaju.

Vídeo: Milan Kundera – A Festa da Insignificância (La Fête de L’insignifiance)

Você ainda gosta de ver vlogs? Espero que sim, porque o nosso está apenas começando e ó, tá ficando legal. Nesse, comentamos o best-seller tcheco Milan Kundera e colocamos alguns pontos simples de entender em um livro meio complicado de sacar. Mas, como dizem pra todo mundo que já fez uma cagada nessa vida, o que vale é a intenção.

Já falei pra se inscrever no canal? Vou falar de novo, porque precisa. Me ajudem a ficar rico, gente.

Já falei que isso é só uma imagem? Você tá tentando apertar o play até agora e achando que o que tá abrindo na outra aba é pop-up desgraçado. E tá errado.

livrada

Ryszard Kapuściński – O Xá dos Xás (Szachinszach)

jornalismo literarioE ainda dizem que o polonês é uma língua difícil. Xá dos Xás = Szachinszach. Xáxinxáx = Xá dos Xás. É só deixar a intuição fazer a sua parte e começar a ler Bruno Schulz, e entender o que você quiser entender, é claro. Mas bem, os senhores e as senhoras não vieram aqui para ter lições de polonês comigo, que no máximo improviso um versinho ou outro de ogórek ogórek ogórek zielony ma garniturek e não tô aqui para destilar mais do que isso dos meus conhecimentos filolololológicos. Estou aqui para falar desse livrorreportagem do grande mestre da arte Ryszard Kapuściński, esse polaco que deveria ter morrido antes do tempo umas 70 vezes e não morreu. Kapuściński cobriu guerras e escreveu sobre déspotas memoráveis, e ajudou a entender o lado feio e sujo do meio do século 20, lado esse que as pessoas até hoje não sabem pelo simples fato de não ligarem a mínima para o que acontece nesses países. Assim foi com o Irã e sua dinastia Pahlevi.

O livro, obviamente trata disso. Se você não sabe – e tudo bem, ninguém aqui está julgando o fato de você ter feito supletivo – xá é o título dado ao monarca no irã, e é esse o título porque quer dizer “rei”, em persa. Xeque-mate, o rei está morto, você já deve ter escutado isso em algum lugar ou lido em algum almanaque de cultura inútil. Pois bem, o Irã tem uma longa história de xás que massacraram o povo apenas para depois serem mortos ou exilados. É uma história cíclica, e a dos Xás Pahlevi tem muito a ver com o que está acontecendo hoje com o Estado Islâmico – de novo, se você não sabe o que é Estado Islâmico, a gente não julga, MAS…

O primeiro xá é o Reza Pahlevi, um homem de formação militar que ascendeu ao poder e que mais ou menos conseguiu manter tudo em ordem, se é que pode se chamar aquilo de ordem. O Irã não é essa potência cheia de petróleo e gente perigosa que é hoje, antigamente era só mato, deserto e pobre. Nem carroça tinha. Mas o filho, o xá Mohammed Reza Pahlevi, diferentemente do pai, não lidou tão bem com as coisas. Ele era, segundo o autor, um cara inseguro, que precisava ser bajulado, vaidoso e arrogante, e quando seu primeiro-ministro Mohammed Mossadegh resolveu nacionalizar o petróleo iraniano (e o império britânico sofreu uma queda porque até então eram eles quem mais ou menos mandavam por ali), a promessa de um país bilionário botou o Xá pra trabalhar. Assim, ele começou a querer industrializar o Irã, sem perceber que as coisas mais básicas ainda faltavam. E o povo ficou mais irado, e com o povo irado, o movimento nas mesquitas se intensifica, e eis que surge a voz incansável, serena e monocórdica do aiatolá Khomeini, que inspira a articulação do movimento contra o xá. Mas aí já tô contando demais sobre a história e pouco do livro.

Ryszard_KapuscinskiFalemos do livro. Não é à toa que Kapuściński foi o que foi. A escrita dele é um misto de crônica, relato jornalístico, remontagem histórica, ensaio e leves tons de escrita ficcional, tudo misturado num blend gostoso típico desses gênios da raça que surgiram naquele século (Norman Mailers da vida). De modo que ler O Xá dos Xás é algo que você tem que fazer nem que seja pra falar “mas que desgraçado esse sujeito que escreve tão bem e rodou o mundo e viu de perto a história acontecendo… que desgraçado mesmo”. E, claro, aprender um pouco sobre a história do Irã, como já disse, é entender também um pouco do que ocorre no Oriente Médio. Os governantes colocados no poder pelos interesses do ocidente, o descontentamento do povo com a falta de perspectiva e o levante capitaneado pela ideologia formada dentro das mesquistas torna a história cíclica como os espertinhos sempre falaram que era. De modo que O Xá dos Xás é uma aula de boa escrita, de história, de geopolítica e de como viajar pelo mundo (aprendam, seus fanboys da Disney).

O livro faz parte da coleção Jornalismo Literário da Companhia das Letras e é fiel ao padrão de quatro fotos e um textão, uma capa gráfica e um posfácio pra exaltar o autor e o livro em questão. O problema é que achei que nesse caso em específico, o livro carecia de mais fotos. Quem não queria relembrar a beldade de dona Soraya, mulher do Xá, e de ver o levante dos povos, e mesmo as fotografias de que o autor fala na segunda parte do livro – a maior delas, que centraliza o tríptico. Intitulada “Daguerreótipos”, ele conta a história através de fotografias antigas de que dispõe. Por que não podemos ver essas fotos também? Not cool, bro. Not cool.

Comentário final: 197 páginas em papel pólen. Xuxuxu Xaxaxau.

Vídeo: Edward Bunker – Educação de um Bandido (Education of a Felon)

Fala, macacada! Hoje a resenha é em vídeo também, e desde já gostaria de agradecer imensamente ao feedback recebido e a todos vocês que se inscreveram no canal. Com um vídeo, já estamos beirando as 150 assinaturas, mas precisamos continuar pro Google e seu filhote YouTube levarem a gente a sério. Então, por favor se inscrevam no canal do Livrada! É super fácil, ó: primeiro, você clica na imagem aí embaixo, depois, logado com a sua conta do Google, você clica no retângulo vermelho embaixo do vídeo onde diz “Inscrever-se”, e pronto! Não custa nada pra você, mas é uma mão na roda pra gente!

Estão gostando do nosso humilde vlog filmado na minha humilde residência? Acho que vou tirar o meu wheyzinho do fundo nos próximos vídeos, alguns de vocês ficaram muito chocados com ele. Whey é vida, galera! Deixem de manha. Peço desculpas por eventuais falhas técnicas, estamos todos aprendendo a fazer isso ainda, e a ideia é melhorar sempre.

Mas enfim, não era isso que vocês vieram ler aqui. Vocês querem saber sobre o Ed Bunker (o Mr. Blue do Cães de Aluguel) nessa deliciosa dica literária que vos deixo para essa semana. De resto, já sabem: curtam o vídeo, compartilhem, discutam na caixa de comentários, se quiser eu até respondo por lá!

livrada vlog still 2

 

Clica na imagem, abestado.

Anton Tchekhov – A Gaivota (Чайка)

Daniel PereiraOlha só, eu não coloquei uma peça de teatro na lista do Desafio Livrada! 2014 (aliás, como vocês estão indo nele?) mas deveria, e por várias razões. A primeira é que livros de peças de teatro são mais legais do que peças de teatro em si (e isso é a minha opinião. Meu blog, minha opinião, sorry periferia); segundo que vocês não andam lendo tanto teatro quanto deveriam – e deveriam, porque o teatro ensina muitas coisas sobre como montar um ambiente e como explicar coisas só com diálogos, o que é importante pra todo mundo deixar de ser prolixo; terceiro, porque livros de teatro são o contrário dos best-sellers na relação quantidade x qualidade. Se eu pedisse pra vocês lerem um, a chance de algo realmente bom cair em vossas mãozinhas seria muito grande.

Pois o fato é que não está na lista, mas vamos ver essas coisas aqui, e desde já peço desculpas pelo excesso de literatura russa aqui, mas é porque eu realmente tô numa vibe que… peraí! Eu não vou pedir desculpas pelo excesso de literatura russa e vocês tão malucos se acham que eu vou. Literatura russa é vida, literatura russa é o que faz essa máquina de editoração de livros rodar, porque se não fosse a literatura russa, se não fosse essa coisa tão legal consagrada há cento e porrada anos atrás, não ia ter tanta gente querendo fazer algo tão legal quanto hoje em dia. Então, vamos ao objeto de hoje.

Eu li A Gaivota quando tinha meus 20 anos em uma edição antiga do amigo Cássio que vinha junto com Tio Vânia, do mesmo Tchekhov, e achei tanto uma quanto a outra uma porcaria enfadonha, confusa e sem nada de maneiro pra acrescentar à minha ignorante cabecinha de jovem. Mal sabia eu que minha opinião estava em consonância com a do povo russo à época da estreia da peça e inclusive com a opinião do grande Tolstói, que disse, não com essas palavras, que A Gaivota era um belo de um sonífero. Parece que só quando ela caiu nas mãos de Stanislavski e Cia. Que a coisa deslanchou mesmo, e o porquê disso não sei, mas também não estou muito interessado. Vou falar aqui por que A Gaivota tem seus deméritos aos olhos dos outros e o que ela tem de legal.

A peça tem quatro atos, uma porrada de personagens – alguns meio inúteis —, uma peça de teatro dentro dela e se passa numa propriedade rural do tio de um aspirante a escritor, filho de uma atriz famosa e já meio esquecida. O sujeito chama Trepliov e no primeiro ato o vemos se preparando para ver a montagem de uma peça que ele escreveu, mas sua mãe fica de palhaçada, todo mundo perde o foco e a vibe, o troço vira um desastre e ele fica arrasado. Essa percepção é mais agravada pela presença de Trigorín, um escritor famoso que rouba as atenções, inclusive a de sua grande paixão, Nina. O caso aqui é uma quadrilha das brabas: Miedviediênko (ah, que delícia a sonoridade do russo explanada na transcrição do tradutor, praticamente um baby talk), o professor, amava Macha, a filha do tenente Chamraiev. Macha, amava Trepliov, o escritor. Trepliov amava Nina, a mocinha atriz de sua peça. E Nina acha que ama Trigorín, mas na verdade só tá mesmo muito entediada e precisando de um Nintendo Wii. Acrescente-se aqui que Arkádina, a mãe de Trepliov, é apaixonada por Trigorín também, e temos aí a macarronada que é A Gaivota.

Pois bem, coisas acontecem na peça, mas não muitas: Trepliov mata uma gaivota e oferece de presente pra Nina, ela e Trigorín trocam juras, Trepliov desafia Trigorín para um duelo e ele foge da raia, e no final das contas Trigorín casa com Nina, vão morar em Moscou e depois ele abandona ela por Arkádina. Nina reaparece, fala com Trepliov, ele pede pra ela ficar, ela não fica e ele se mata.  Oh, meu Deus, Yuri, que cara sem coração é você, jogando esse monte de spoiler na nossa cara. Pois é, get over it. A gente é a maloqueiragem da crítica literária, e se você não aguenta os caras maus, vá ler blog de miguxa parceira de editora e de marca de esmalte.

Anton_Pavlovich_ChekhovDe tudo isso que eu já contei, já deu pra sacar por que A Gaivota não foi um grande sucesso. Quatro atos disso aí só passam rápido se o cara tiver muito na pira de ver um Tchekhov boladão. Se não tivesse o sobrenome, dificilmente sairia do circuito do teatro sério dentro do teatro experimental universitário. Mas isso não quer dizer que não valha a leitura, e é claro que vamos dizer o porquê.

Primeiro, pela angústia do personagem principal. Trepliov é um escritorzinho que precisa competir com Trigorín, que é um escritorzão, e os dois precisam competir com Tolstói e Turguêniev e todos os clássicos. Está aí um dos pontos chaves do livro: o embate do novo com o velho e já consagrado. Não é à tôa que Nina se apaixona por Trigorín, escritor já consagrado e não por Trepliov, e não é à tôa que Trigorín se apaixona por Nina, uma jovem atriz, mas troca ela por Arkádina, a atriz mais velha e já consagrada. E você achando que o Larry Clark era revolucionário por fazer um filme como Ken Park. Rá! A coisa é tão fora de propósito que o sujeito novo não sabe o que fazer e mata uma gaivota pra dar de presente pra mulher. Se a gaivota é uma metáfora para alguma coisa nessa peça, e eu acho que é, é a metáfora para a falta de sentido em pirar errado e na destruição do belo em função de ficar pirando errado.

E isso tem a ver com a segunda coisa legal desse livro, e isso você pode ler no belo texto que o tradutor Rubens Figueiredo (falemos dele mais tarde) preparou para a edição (falemos dela mais tarde também). A Gaivota é uma “comédia em quatro atos”, segundo o autor. Mas não tem nada de engraçado nisso. Mas aí o Rubens lembra a gente que comédia aqui tem o sentido de expressar sentimentos menores, menos nobres, em oposição à tragédia, que é elevada. É uma comédia porque todo mundo é meio patético em suas vidinhas miseráveis e ninguém se entende, ninguém corresponde o amor um do outro e as pessoas fazem coisas estúpidas por causa disso, tipo matar uma gaivota e se matar. A comédia é a vida comum, a comédia somos nozes.

Já falei que o livro da Cosacnaify é da coleção portátil? Não? Pois é. Bela coleçãozinha essa, com suas escalas pantone na capa, suas fontes esquisitas de nome esquisito e sua encadernação artesanal com cordinhas bonitas. E já falei que o livro é traduzido pelo Rubens Figueiredo? Ah, isso já, né? Porque o Rubens é demais e não há porque se cansar de falar dele aqui, principalmente retribuindo a gentileza da vez em que ele disse que eu era parecido com o Tchekhov em pessoa. Ah, como eu sou gatão, foi mal aí, galera! Meninas, façam fila que o papai chegou. Hue hue hue br br. Gosto das traduções do Rubens, principalmente nos nomes, em que ele tenta preservar a sonoridade do russo, e não poupa acentos em lugares desconfortáveis para nossos padrões de leitura em língua portuguesa. Viva!

Um último pedido: se inscrevam no canal do Livrada! no Youtube! É super fácil, é só entrar no Youtube logado com sua conta do google e clicar no botão vermelho embaixo do vídeo onde diz “Inscrever-se”. É a minha chance de fazer isso aqui ir além e render um trocado pra pagar a hospedagem do site, então me ajudem, amigos!

Comentário final:127 páginas portátil e em papel pólen. Russos, ê!

Bernardo Kucinski – K. – Relato de uma busca

Bernardo KucinskiNão sei quanto tempo faz que a gente não comenta um romance nacional aqui, e isso tem mais a ver com a minha pré-disposição para ler brasileiros contemporâneos do que propriamente com a qualidade da produção atual, embora saibamos desde já que nem um nem outro andam despontando exatamente pela excelência. Aí que uma leitora comentou aqui ainda ontem que tava sentindo falta desse tipo de livro por aqui e pensei, ora, por que não? Vamos ao que interessa, mas aviso desde já que tenho opiniões muito parciais sobre esse livro, e explico o porquê.

K. – Relato de uma Busca, o romance de estreia do jornalista Bernardo Kucinski, junta duas temáticas que eu, particularmente, odeio: história da ditadura militar e história de judeu. E odeio ambas não por uma falta de empatia com os protagonistas, pelo contrário, gosto deles, mas por uma overdose do gênero, já que são dois casos em que os sobreviventes são, hoje, o poder estabelecido no mundo. De qualquer forma, é meio complicado pra mim falar disso porque preciso ser sensível ao fato de que o romance de Kucisnki é, em grande parte, real, já que sua irmã desapareceu durante o período do regime burocrático-autoritário que vigorou neste país durante duas décadas, de modo que me perdoem desde já por ser insensível e analisar o livro como criação ficcional. Porque é a partir deste caso que o autor cria uma ficção que tem como protagonista seu próprio pai, que sai em busca da filha desaparecida e é enganado até se perder no labirinto engendrado da guerra psicológica militar contra os familiares dos subversivos.

É assim que ele sai e começa a receber pistas falsas de que sua filha está presa e depois não está mais presa, e ninguém nunca ouviu falar dela, e quem se propõe a ajudar na verdade é informante dos militares, e as notícias de que sua filha está na verdade em outro país ou em outra cidade começam a chegar pelo correio e todo mundo que se propõe a ajudar não consegue ou não quer mesmo ajudar e ele fica maluco tipo um personagem do Kafka – acho que é inclusive por isso que o protagonista do romance chama K., como os Kas do Kafka, perdidos em uma engenhoca burocrática kafkiana sem nenhuma esperança de sair dela algum dia. Ao mesmo tempo, lida com os sentimentos de culpa por ser um escritor meia-boca que escreve em íidiche, a decadente língua dos judeus pré-Estado de Israel e que por conta disso se afastou da família e não viu os filhos crescerem direito. O espanto de saber que a filha se envolvera com a luta armada e o desgosto por ser estigmatizado como parente de uma subversiva – até mesmo pelo rabino, que o impede de comprar um túmulo simbólico pra ela, e o pessoal da gráfica que não o deixa imprimir um livrinho em memória a ela.

Crédito: Carolina Ribeiro

Crédito: Carolina Ribeiro

Embora interessante, o livro traz muito pouca coisa nova na literatura da ditadura militar – bom lembrar que esse não é a primeira narrativa que parte do ponto de vista do familiar que busca o parente desaparecido. Além disso, há de se desconsiderar pensamentos extremados do autor, que em dados momentos insinua que a ditadura militar é pior do que o holocausto porque pelo menos os nazistas faziam registro de seus mortos, e dosar boa parte do maniqueísmo dos personagens, que são ou pobres vítimas do sistema dos militares ou sádicos que trabalham nessa por pura vocação e vontade imensa de fazer mal aos outros. Cada capítulo apresenta uma parte da engrenagem ou um tipo de personagem, e não posso dizer que a grande maioria deles é natural é bem construída.

Ainda assim, o livro se salva pela vida interna do protagonista e pela naturalidade com que expressa a angústia do pai que não sabe onde a filha está, e como a coisa é muito mais complicada do que parece. E pela coragem do autor em transformar um caso real e sofrido de sua história familiar em uma ficção.

A edição desse livro é uma beleza que só. Tem capa gráfica em papel cartão, umas fontes chamas Leitura e Tungsten, que não até que são boas à exceção dos itálicos, que deixam tudo muito ruim de ler, e um papel pólen soft de baixa gramatura pro miolo não ficar mais duro que a capa. O romance é cheio de notas de rodapé que explicam bastante o que não está ao alcance do leitor leigo, ou do leitor não-judeu, e de maneira geral, o texto é bem preparado. Ê!

Comentário final: 185 páginas em papel pólen soft. Ks do mundo, uni-vos!

Allen Shawn – Bem que eu queria ir (Wish I could be there)

wish i could be thereLer não-ficção é sempre bom pra desopilar a mente de narrativas que sugam toda a sua atenção e sua capacidade de abstração pra uma história que pode se revelar muito pouco merecedora do esforço.  Dentre as não-ficções boas para isso, os ensaios livres, aqueles em que o cara usa muito pouca referência acadêmica ou, pior, ignora qualquer referência e escreve as ideias dele sobre o tema, são as melhores porque a coisa da arte ativa vai embora e dá lugar a uma conversa boa entre você e o autor, na qual você senta e escuta e ele fala. O livro do Allen Shawn, Bem que eu queria ir, é assim. Uma conversa leve e edificante sobre o mundo das fobias.

Shawn é um compositor nova-iorquino, autor de muitas peças eruditas e populares. O pai dele era editor da revista The New Yorker, que é, para muitos, a melhor revista de todos os tempos. Mas tanto ele quanto o pai cresceram me meio a muitas fobias. De lugares abertos, de lugares fechados, de avião, de elevador, enfim, aquela coisa toda. E, diante da sugestão de um amigo de escrever um livro sobre suas fobias e de como elas atrapalham sua vida, o músico resolveu basicamente pegar tudo o que estava ao seu alcance e escrever um pequeno compêndio misto de experiências pessoais e estudos sobre a questão das fobias.

Assim, existem capítulos que tratam de psicanálise, de neurologia, da percepção do medo no mundo da arte, de outras pessoas célebres e fóbicas como ele, de lembranças de sua primeira infância, das relações com seus familiares – dos quais, sua irmã gêmea Mary, deficiente mental, parece desempenhar um papel preponderante em sua personalidade –, enfim, tentou fazer uma compreensão macro da coisa, pra não deixar nenhuma aresta.

Esse caráter heterogêneo também dá ao livro um ar meio indefinido. Afinal, Bem Que eu Queria Ir é um livro sobre fobias, ok, mas a que ele se propõe? Explicar a vida do autor a partir de tudo o que já se estudou sobre o tema e a partir de experiências vividas? Ou, ao contrário, legitimar os estudos diante de suas vivências que, acreditem, não são nada demais aos olhos de qualquer pessoa não-fóbica.  Mas que, de alguma forma, te fazem pensar em como seus medos são definidos pelo meio e são um reflexo do medo dos pais. Tudo isso faz muito sentido se você fizer um paralelo inocente com a sua própria vida.

fobiaAlém de indefinido, porém, o livro é meio irregular. Existem capítulos que são extremamente monótonos e outros que são bacaninhas mas, no geral, não é uma leitura tão empolgante. A vida do cara não tem nada demais, como eu disse e, sinceramente, também não sei o que eu estava esperando quando resolvi ler esse livro. Talvez ler umas coisas engraçadas do tipo “rá rá! Olha o que esse bobão tem medo de fazer”, mas a coisa não vai por esse caminho – infelizmente, porque se fosse, seria um livro mais engraçado, embora menos informativo. Ainda assim, o caráter didático da explicação de Shawn coloca um lampejo de alegria nos olhos de estudantes amadores de psicologia, uma raça que parece se propagar sem maiores motivos além de entender porque, afinal, a gente é tão zoado assim.

Como leitura de ensaio, Bem que eu queria ir é minimamente divertido, mas não sacia a sua sede de ensaio nem sua curiosidade sobre o tema, já que ele trata apenas de coisas muito pontuais e já que nem a própria ciência consegue dar conta das fobias humanas por enquanto. E como os estudos psicanalíticos de Freud são bem recentes e não há uma narrativa que mostre a evolução do ramo e de sua preocupação (como há, por exemplo, no glorioso O Imperador de Todos os Males, do Sidharta Mukherjee), também ficamos a ver navios nessa. Mesmo assim, o livro entrega o que suas 300 páginas prometem. Só não se empolguem muito.

O projeto gráfico do livro sim, é uma beleza. Fonte Electra, papel polen, capa em papel cartonado e uma arte de fazer inveja nos designers da Cosac. No mais, é o padrão da Companhia das Letras. Chuchu beleza.

Bem que eu queria ir cumpre as seguintes modalidades do Desafio Livrada 2014:

5- Um livro que não foi te indicado por ninguém

12- Um livro de não-ficção

Comentário final: 311 páginas em papel pólen. Quem tem medo de Livrada?

Yasunari Kawabata – A Gangue Escarlate de Asakusa (Asakusa Kurenaidan 浅草紅團)

Asakusa KurenaidanKawabata para as massas! Kawabata, Kawabata, Kawabata! É o puro suco da literatura japonesa. Referências a Rodney-Dy à parte, vamos falar hoje mais uma vez desse grande mestre da literatura japonesa que raramente deixa a desejar no que se propõe a fazer. A Gangue Escarlate de Asakusa foi escrito entre 1929 e 1930 – quando o grande mestre tinha apenas 30 anos e estava empenhado em ser um nome moderno para a literatura do Japão. Se não me engano, até então ele só havia publicado A Dançarina de Izu, que era uma narrativa muito modesta, de modo que esse livro é o seu primeiro romance longo.

Pode ser impressão minha ou vontade inconsciente do autor, mas o fato é que Kawabata estava impregnado daquele espírito ocidental do flanêur, da peregrinação urbana de descoberta e estranhamento, descoberta e estranhamento. Pra falar a verdade, depois que descobri que A Gangue Escarlate de Asakusa tinha sido escrito mais ou menos na mesma época da Dançarina de Izu, fez sentido a minha impressão de achar o tom dos dois muito parecidos. Mas volto a isso mais tarde, vou falar um pouco sobre a história do romance para que vocês não fiquem perdidos.

Asakusa era um bairro de Tóquio, mas não qualquer bairro. Era o bairro da boemia, era a Lapa de Tóquio, o Largo da Ordem de Tóquio, a Boca do Lixo de Tóquio, o Kreuzberg de Tóquio, a Montmartre de Tóquio, a… enfim, deu pra entender. Era o lugar sujo com as prostitutas e os buracos de jazz e os freak shows e tudo mais. De certa maneira, o lugar representava a precoce decadência ocidental em um lugar há não muito tempo ocidentalizado como o Japão. Vê que os sujeitos assimilam tudo muito rápido, a começar pela nossa decadência. É lá que o autor-narrador (o próprio Kawabata, imagino), perambula com uma amiga, Yumiko enquanto descobre o lugar, seus atrativos e a tal Gangue Escarlate, também chamada de Companhia Escarlate. Basicamente, uma gangue de pequenos trambiqueiros, composta por jovens adultos e adolescentes imberbes que já saíram do seio da família e foram colocados na teta da maldade. Rodney Dy e Hermes e Renato no mesmo post sobre um prêmio Nobel de literatura, hein? Só aqui no Livrada! você encontra isso. Mas dizia eu, a tal gangue exerce uma espécie de fascínio temerário no narrador, que tenta conhecer um de seus membros enquanto passeia e descobre o bairro com seus olhos de flanêur. É lá que ele conhece uma mocinha de cabeça raspada que sonha em encontrar o homem pela qual sua irmã se apaixonou profundamente, assiste a um espetáculo de um homem que come através de uma boca aberta em sua barriga e assiste cenas cotidianas meio bizarras, como um homem que come comida de carpa e um show de pequenas prostitutas.

kawabata asakusaNeste livro, que a pessoa que fez a orelha (provavelmente a tradutora, a grandessíssima professora Meiko Shimon) descreve como um exemplo da progressão da arte de Kawabata rumo ao desenvolvimento total de sua corrente neo-sensorialista Shinkankaku-ha, por meio de experimentações com a linguagem e o uso MUITO estranho de expressões e analogias nunca antes usadas, como por exemplo “estava andando e de repente parei como se alguém tivesse empurrado um buquê de flores vermelhas contra o meu peito”.  Mas para mim, o maior espanto com essa leitura de Kawabata foi ver a completa ausência de hierarquia entre narração e descrição para o autor. O cenário não serve à narrativa nem à narrativa serve ao cenário exclusivamente, mas ora uma se torna mais importante que a outra, mas nunca a ponto de cidade ou história serem fixados como a linha condutora do romance. Isso não só deve ser difícil pra caramba de fazer como arriscaria dizer que a única forma de fazer isso com a perfeição de Kawabata é uma completa despreocupação sobre a própria força narrativa aliada a uma tradição descritiva milenar da literatura japonesa, digna de uma Sei Shônagon. E é exatamente por isso que achei o livro parecido com a Dançarina de Izu. Em ambos também, Kawabata traz os olhos ocidentais que se espantam com as cenas japonesas mais estranhas, e também com as mais clássicas. É um olhar completamente inocente e desprovido de preconceitos ou expectativas. Isso traz uma sensação para o leitor de estar descobrindo junto com ele as características de Asakusa, e, se lido com atenção, o livro pode trazer um mapa mental perfeito do bairro sem nunca ter ido lá. E essa não é a graça da literatura, afinal de contas?

A Gangue Escarlate de Asakusa é o mais novo lançamento de Kawabata pela Estação Liberdade, uma editora muito simpática e competente que, por alguma razão que me foge completamente a lógica, não está alçada ainda ao panteão das grandes casas editoriais brasileiras pela crítica mainstream, que solenemente a ignora. O que é uma pena, pois não só a editora tem um acervo caprichado de grandes autores, como também tem edições bonitas e bem trabalhadas. A própria tradução desse livro, que sempre é comentada, é exemplo disso. Tudo bem que ela podia ser mais comentada, porque muita coisa sobre o Japão é subentendido como de conhecimento do leitor, o que não é verdade na grande maioria das vezes, mas acho que isso é reflexo dessa falta de interesse de nós, ocidentais de olhos redondos, pelas belezas que se escondem na boa e velha literatura japa. As páginas brancas offset estão sendo substituídas aos poucos pelo confiável pólen soft em alguns livros e a fonte Gatineau dá um charme às páginas internas, completas com cabeço superior e ilustrações originais de Ota Saburo (que fez as ilustrações para a primeira edição do livro) no começo e no final das páginas. Um pitéu.

Comentário final: 216 páginas offset com fonte Gatineau. Sayonara, compadres!

Don DeLillo – Homem em Queda (Falling Man)

Falling manAdivinha doutor, quem tá de volta na praça? Don Delillo, camaradagem, aquele escritor norte-americano que não deixa barato pra ninguém e faz de cada livro uma verdadeira obra de arte. Todo mundo que lê esse blog sabe que eu sou suspeito para falar do cara, mas saibam vocês que Homem em Queda, seu penúltimo lançamento (antecessor de Ponto Ômega, sua obra mais cabeçuda, na minha opinião), é, sim, um livraço como de costume, mas não prometo me estender no post de hoje por um motivo muito nobre: meu computador quebrou e tá difícil achar onde escrever. Felizmente fim de ano está chegando e quem sabe neste ano eu não dê presente para ninguém a não ser eu mesmo, afinal de contas, ó, mundo tão desigual.

Pois muito bem: se você olhar a capa de Homem em Queda (não olhou? Olhe agora que eu espero) não é difícil perceber que o livro trata dos ataques às torres gêmeas, naquele fatídico onze de setembro de 2001. Não sei por que todo mundo tem essa curiosidade mórbida de perguntar onde a gente estava durante os atentados, mas se alguém quiser saber, eu estava dormindo numa aula importantíssima de física. Pronto, passemos adiante. Dizia eu que Homem em Queda trata das torres, e tem como protagonista um homem chamado Keith, um sobrevivente do atentado que emerge do caos de poeira e destroços como um… eu ia dizer como uma fênix, mas aí pensei em algo menos gay pra falar e não achei, então vai fênix mesmo. Ele, ao invés de tomar qualquer providência racional, volta pra casa da ex-mulher, que mantém uma relação familiar passivo-conturbada com a mãe e seu padrasto, um sujeito misterioso que viaja o mundo e tem família em algum lugar da Europa, e revive o suicídio do próprio pai, que estourou os miolos com um rifle de caça certo dia. A chegada repentina de Keith transforma a relação do casal e cria um ambiente de reaproximação, o que pode ser muito bem visto como as mudanças inesperadas que condições extremas acarretam para a vida de pessoas simples. O filho do casal, Justin, entretanto, se torna obcecado com a figura de Bin Laden (ou Bill Lawton, como ele o chama por entender errado o nome). Ele fica noiado, patrulhando os céus à procura de novos aviões e obcecado com as características físicas e comportamentais do inimigo número 1 dos Estados Unidos.

Don DeLilloAo mesmo tempo, Keith entra de cabeça em uma existência vazia de encontros amorosos com a dona de uma bolsa que encontra em meio aos destroços e viagens a Las Vegas para jogar poker, numa retomada de um hábito pré-onze de setembro com amigos peculiares que desempenham papéis diversos após o atentado. Sua mulher, Lianne, também começa a presenciar os feitos artísticos de um louco performático chamado de Homem em Queda, que fica pendurado por um pé com um cinto de segurança de pontes, postes e outros locais altos, para depois cair e se esborrachar no chão. Por último, a narrativa contempla ainda a vida de dois dos terroristas responsáveis por sequestrar os aviões. Em resumo, Homem em Queda, oferece uma multiplicidade de narrativas que servem unicamente para tratar o que toda a literatura que se dedicou ao fenômeno tratou: as diferenças, em vidas diferentes, de um mesmo evento, divisor de águas, histérico e dramático.

Particularmente, o excesso de americanismo nesse livro me chateou um pouco, já que eu sempre vi a literatura do DeLillo como algo universal e sem localismos, mas não dá pra culpar o cara já que todo americano, em maior ou menor grau, acha que o onze de setembro é um troço que diz respeito ao mundo inteiro, e não só a ele (e os posteriores atentados na Europa trataram de reforçar esse discurso). Mesmo assim, acho que a grande sacada do romance, em sua estrutura, é a diversidade de significados do atentado. Uma nova chance para os casais, que não têm outra escolha senão sublimar suas dificuldades ante a catástrofe nacional, um novo monstro para as crianças, para moldar suas infâncias, entretendo-as e amedrontando-as, um novo conceito para a arte, que ganha novos assuntos e ares de ativismo em sua vertente performática (a favorita de DeLillo, visto Ponto Ômega e A Artista do Corpo, já resenhado aqui), e uma necessidade quase urgente de retomar a existência tal qual fora antes, num simulacro de normalidade que só pode iludir os que se propõem a ela em momentos de calma e concentração, já que os tempos são mesmo sensíveis (há uma passagem ótima em que Lianne fica irritada porque a vizinha fica ouvindo “música étnica”, não necessariamente árabe). Mas a prosa do autor é invariavelmente sagaz, aguda, e a rapidez dos diálogos torna algumas partes engraçadas. Fico meio bolado com o fato de todos os personagens dele serem extremamente inteligentes e sagazes. Até as crianças! Sempre fico com a impressão de que, se eu estivesse num universo de DeLillo, seria a pessoa mais burra da face da Terra, mas isso é outra coisa e fica entre eu e meu psicanalista. Vocês ficam com esse belo livro da Companhia das Letras com papel pólen soft, fonte Electra e todos os cuidados de sempre, com tradução do grande Paulo Henriques Britto.

Comentário Final: 256 páginas de pura sagacidade narrativa. Toma essa, Bill Lawton!