Lucas Varela – Paolo Pinocchio

Lucas VarelaOra, estava faltando uma graphic novel para comentar aqui pelo Desafio Livrada! 2014 (aliás, como estão indo nessa empreitada desafiadora que é o desafio deste ano?) Ia comentar o livro do Marcatti, mas eis que me caiu nas mãos, graças ao povo da Itiban Comic Shop (jabá de graça pros bróder) esse livro que compila as histórias insanas do Paolo Pinocchio e sua saga dantesca rumo ao inferno e pensei “por que não? Assim eu escrevo sobre uma hq que eu realmente gosto (não que eu não goste do Marcatti, muito pelo contrário), e as crianças que leem o blog ainda ficam conhecendo mais um cabra responsa”.

Pois bem. Conheci a obra do argentino Lucas Varela por meio da revista Fierro, uma revista argentina de quadrinhos que publica tanto os portenhos quanto os autores brasileiros, e ganhou duas compilações máster pela editora Zarabatana, a mesma que publicou esse livro, sob a catalogação de “coleção Fierro #4”. A história é uma só, mas pode ser lida separadamente, como foi publicada nas Fierro: Paolo Pinocchio é uma versão do mal do Pinocchio, o boneco de madeira da história de Carlo Collodi. Ele mente pra Chapeuzinho Vermelho, abusa sexualmente de João e Maria, arranca dinheiro do Patinho Feio prometendo pílulas mágicas para aumentar a auto-estima, droga a Bela Adormecida e por aí vai, até que é sentenciado à morte e vai para o inferno, de onde tenta sair. Basicamente as histórias giram em torno disso: Paolo tentando fugir do inferno, o que não faria tanto sentido para um boneco do mal não fosse o prólogo, em que o autor retrata Dante e Virgílio como um menino e um cachorro visitando o averno, a entrada do inferno, numa clara referência ao notadamente mais legal livro da Divina Comédia. Ali, buscam um significado para o que é a dor e o sofrimento, e colhem o depoimento de vítimas e de verdugos.

Fábio Zimbres, eu, Lucas Varela (com o microfone) e Vitor Caffagi no lançamento da Fierro 2, na Itiban.

Fábio Zimbres, eu, Lucas Varela (com o microfone) e Vitor Caffagi no lançamento da Fierro 2, na Itiban.

A graça de Paolo Pinocchio reside no fato do personagem ser espírito de porco demais, até mesmo para o inferno e para o sofrimento interno. Mesmo sendo condenado à morte diversas vezes, por promover orgias em um convento ou traçar a filha de um juiz, por exemplo, ele dá um jeito de ludibriar os ludibriadores e salvar sua pele. As histórias são abarrotadas de humor negro e altamente doentio, o que, é claro, ganha minha simpatia logo de cara. Mas talvez haja mais do que meras sátiras de contos da carochinha e referências a Dante Alighieri em Paolo. A ideia de graphic novel adulta passa também por isso: não só expor uma temática adulta, mas também brincar com ela, leva-la para o lado infantil e de volta para o universo de gente grande com a mesma leveza que por muitas vezes, em nossos mais profundos arroubos de loucura, fazemos. A loucura de Pinocchio é a loucura do homem moderno, que grita de inconformidade por viver em um mundo que reprime as vontades do corpo ao mesmo tempo em que pune a falta de virtuosismo universal, conceito que, convenhamos, há muito não condiz com a realidade do século 21. Pronto, esse parágrafo só escrevi pra mostrar que qualquer zé mané consegue bancar o profundo em resenha literária. O gibi é maneirinho e vocês deveriam ler.

O projeto é da Zarabatana Books, que fez o livro lindão, com papel de gramatura grossa e inteiro colorido, com umas splash pages de respeito e tudo mais o que o cara merece. E ainda tem arte na parte de dentro da capa e da contra-capa!

Comentário final: 96 páginas coloridas de puro sarcasmo!

Paolo Pinocchio atende às seguintes categorias do Desafio Livrada 2014:

10 – Uma Graphic Novel

Alain de Botton – A Arte de Viajar (The Art of Travel)

The art of travelOs livros de não-ficção. Ah, os livros de não-ficção. Você pega um toda vez que está cansado de lirismos do romance ou do conto. Toda vez que se sente alienado do que está passando no mundo lá fora e mesmo dentro de você. Toda vez que você passa por uma poesia pichada em um muro. Toda vez que te chamam de burro em público. Toda vez que ouve uma música do Criolo. Toda vez que vê seus amigos ansiosos com a tradução de um livro gigantesco do David Foster Wallace que ninguém vai ler. Toda vez que vê uma fila de autógrafos gigantesca na Flip para o romance de estreia de um autor da Nova Caledônia publicado no começo da década de 80 e traduzido só agora para o português, que fala de como jovens da contra-cultura resistiram ao governo tirano e cruel do ditador caledônio cujo nome você nunca vai conseguir pronunciar. Os livros de não-ficção são altamente necessários quando a ficção e seus elementos cansativos começam a tomar uma porção maior da sua vida do que você gostaria.

E Alain de Botton é um bom antídoto pra isso, descobri depois que meu grande amigo e interlocutor de leituras boas Cássio Capiroba me recomendou e logo depois me presenteou com este A Arte de Viajar, que devorei em poucos dias. O sujeito tem o seu grande mérito, que é o de ser profundo e acessível ao mesmo tempo, e carregado com uma bagagem verdadeiramente erudita, que passa por escritores merdas de outros séculos a livros realmente importantes de outras áreas perto dos quais você nem chegaria perto a não ser que estivesse realmente muito curioso, ele nos brinda neste belo livrinho ilustrado e dividido em vários capítulos, com ensaios sobre, como diz o título, a arte de viajar.

É assim, por exemplo, que ele usa o clássico de Huysmans, Às Avessas, para falar das nossas expectativas quando escolhemos um destino de viagem. É assim também que faz uma longa explicação sobre o legado de Humboldt (o verdadeiro legado, não o livro do Bellow) para a exploração do turista e os reais motivos pelos quais nos interessamos por um determinado lugar, e principalmente, como utiliza Van Gogh e Ruskin para falar da proximidade da arte com a nossa percepção da realidade, e como isso tudo está relacionado com o que atentamos com o olhar quando viajamos. A impressão é que dá é que o cara tem o conhecimento do mundo na mão e usa a seu bel prazer para ilustrar quaisquer pontos que queira para te provar um ponto de vista. Deve ser dureza ganhar uma discussão em mesa de bar com um sujeito desses. Felizmente, o sujeito veio da Suíça, mora lá Inglaterra e meu único contato com ele são esses livros maravilhosos que ele faz.

Alain de BottonA leitura de A Arte de Viajar é extremamente leve e gostosa, o que é um dom raro para quem se propõe a escrever ensaios sobre temas tão filosóficos quanto abstratos. Afinal, condensar uma experiência individual em valores coletivos como ele faz com a viagem é uma tarefa que exige tanto uma sensibilidade quanto a tentações solipsistas quanto a determinação de se unificar o pensamento de maneira que o leitor possa se identificar de maneira rápida e clara com esses devaneios.

Minha crítica ao livro é uma só e vai direto no conceito dele, por mais paradoxal que isso seja, já que passei o texto até aqui jogando confete no dito-cujo: viajar tem algo de misterioso e belo que, de certa forma, morre se algum espertinho vem e te explica o porquê. É como ouvir os Beatles: por mais que te digam que é legal e importante, não vai fazer sentido pra você até que você faça a sua descoberta pessoal na experiência da audição desses almofadinhas britânicos que depois quiseram pagar de lóki (e não é essa a história de toda banda indie hoje em dia?). Mas, como crítico, não posso meter o pau em um livro por ser esclarecedor DEMAIS, mas, ah, sei lá, cara, me deixa aprender sozinho também. Mesmo assim, se você não for um bicho do mato como eu, você vai ler A Arte de Viajar e fazer da leitura o melhor pra você sem ficar encanando com nada. Porque é isso o que o livro é, no final: completo, esclarecedor, leve e divertido. É detalhista ao dar pinceladas gerais, e é sério sem ser carrancudo. É como um amigo mais inteligente que você que te explica as coisas que você sente e não sabe direito o porquê, e aí você fica achando tudo meio gay mas também fica extremamente agradecido. Esse é Alain de Botton.

Esse livro foi publicado pela Intrínseca, e como eu já disse, ele é altamente ilustrado e dividido em vários capítulos, no começo dos quais é anunciado qual será o lugar do mundo discutido e quem serão os guias, quer dizer, quem serão os intelectuais ou as personalidades nas quais o autor vai se basear naquele capítulo. Isso torna a coisa mais didática ainda, permitindo ao leitor buscar por fora quem quer que seja que ele tenha se interessado durante a leitura. É todo em tons de cinza por dentro, mas não importa. O papel ainda é o bom e velho pólen soft com a grande tipografia Electra (salve, Electra!). Tem cabeço e paginação na parte superior e páginas cinzas para separar os capítulos. Um livro que não tem medo de gastar página para ser bonito. Gosto disso. E quem não gosta?

Comentário final: 253 páginas em papel pólen soft. Dá pra matar numa viagem daqui até Aracaju.