Hábitos de Leitura 5 – Autógrafos

O autógrafo, uma assinaturinha mixuruca carregada de prepotência para quem dá e de valor sentimental para quem recebe, ou não? Os autógrafos, na área de literatura, pelo menos, não são apenas uma conquista isolada para o leitor, mas o sustentáculo de uma indústria que prosperou nos últimos oito ou dez anos.

Isso porque acabou a timidez pra pedir autógrafo. Para um ator, um músico ou, sei lá, um artista plástico (será que alguém pede autógrafo para artista plástico?), o autógrafo é um incômodo, um gesto a que a celebridade em questão precisa dedicar um tempo com que contava para fazer outras coisas. Dando um exemplo prático: no ano passado, estava eu e um amigo no supermercado quando entramos no mesmo corredor de refrigerantes em que estava o Anderson Silva. A gente não é muito afoito com essas paradas de gente famosa, então só achamos o fato inusitado e continuamos nossas compras. Mas eis que chega um sujeito esbaforido e fala: “poxa, Spider, posso tirar uma foto com você?”. E ele, acompanhado de um rapazinho de cabelo black power, respondeu com uma voz muito fininha: “cara, me desculpa, estou fazendo compras com meu filho. Dá licença, tá?”. Eu não consigo imaginar o inferno que deva ser o cotidiano do Anderson Silva. O maior lutador de UFC do mundo não consegue mais sair na rua sem ser assediado por esse tipo de coisa. Tô quase começando a fazer um protesto no facebook chamado “Deixem o Anderson Silva em paz”.

Mas no caso da literatura tudo é diferente. O escritor se encontra à disposição exatamente para isso, e se apropria de uma prática milenar — a da dedicatória — para rabiscar seus livros carinhosamente para outras pessoas. E o papel já está ali, olha só! Tudo é facilitado no autógrafo literário, de maneira que as pessoas começaram a colecionar as letras de punho do escritor como quem antes tinha um caderninho para essa finalidade.

Então, como o Livrada! é esse grupo legal de troca de experiências literárias, resolvi pedir para os leitores que me mandassem seus autógrafos favoritos, e, resumindo a história, vou colocá-los aqui:

sobota

O Sobota, que ganhou nossa promoção do Bolão do Nobel, mandou esse autógrafo do Walter Hugo Mãe, que pegou na Flip. Não tô aqui pra ficar decifrando garrancho de escritor metido a médico, mas acho que diz algo como “ao Guilherme, como a abrigo, q me vina de devolver o Janiso”, ou Caniço, ou Janeiro, ou Sorriso, sei lá. Enfim, pra ele vale. Ele mandou também um autógrafo do Joca Reiners Terron, do livro Curva de Rio Sujo. Esse Sobota, um caçador de autógrafos destemido!

Sobota

Já o nosso leitor Raphael Pousa, também ganhador de nossa primeira promoção do blog, mandou sua remessa também. Esse aqui, por exemplo é da Inês Pedrosa:

“Para Raphael (que tem nome de anjo)” Sei não, isso na minha terra é xaveco, hein?

O Pousa também foi lá bater um papo com o Hugo Mãe. Diz lá “Ao Raphael Pousa, com o afrijo anjo leste origami (?) de Prowing…” quer saber, mano? Desisto de tentar ler autógrafo desse senhor, que chateação, sô!

A Sónia, nossa leitora lá de Portugal, adivinha? Também mandou autógrafo do Valter Hugo Mãe! Gente, nem se a gente tivesse combinado ia dar tão certo, hein? Já disse, não vou tentar adivinhar o que diz o garrancho. Como se não bastasse um, a Sónia mandou DOIS livros autografados pelo Mãe. Mas é uma mãezona esse Mãe, autografando o livro de geral, hein?

Agora, a nossa leitora Amanda, que é fãzona do Marcelo Rubens Paiva, mandou um autógrafo e uma foto que tirou com o tio. Diz a moça que queria se casar com ele e o pediu em casamento em plena Feira do Livro de Ribeirão Preto em 2008, e ele negou. Tá muito gostosão esse Marcelo Rubens Paiva mesmo, esnobando as novinhas…

Não quer cassar, mas manda beijo, né?

Nossa leitora Lívia Stumpf tirou uma onda com esse autógrafo do Eduardo Galeano que ela conseguiu em Porto Alegre, pelos idos de 2007 ou 2008. Conta ela: “Sou apaixonada por ele e quando fiquei sabendo que ele viria para uma das edições do “Conversas com o Professor” em Porto Alegre (acho que foi 2007 ou 2008), não tive dúvidas e fui mofar na fila! Não só vi esse uruguaio lindo falando e contando suas histórias envolventes, como também encarei mais uma fila pra garantir seu autógrafo! Foi na época do lançamento do livro Espelhos e seria esse que ele iria autografar. Tinha o Espelhos na minha bolsa, mas secretamente trazia o Veias Abertas da América Latina, planejando o grande golpe! Para o Galeano não cansar muito e conseguir atender todo mundo, ele só assinaria um livro, que no caso seria o Espelhos. Ignorei totalmente essa recomendação e, quando chegou minha vez, saquei minha edição de 1978 do Veias Abertas sem nenhum pudor! Ele me olhou um pouco surpreso, mas logo em seguida abriu um largo sorriso e autografou com uma risada.”

Por último, a senhora Eloísa Helena (não confundir com AQUELA Eloísa Helena), tirou uma onda forte também com uma assinatura do Luiz Carlos Prestes (!!)  no livro O Cavaleiro da Esperança, do Jorge Amado, sobre o cabra. Contou ela por e-mail:

“Ele fez uma palestra numa Faculdade de São Gonçalo: UERJ. Ele  me pareceu uma pessoa que não gostava de ser fazer de vítima. Disse que o que fizeram com ele, os comunistas tb fariam com um prisioneiro opositor ao regime. Estava apoiando os candidatos do PDT, creio que por ser o que de melhor via para o Brasil no momento Foi uma noite que jamais esquecerei.Ele era uma figura fisicamente frágil, o peso dos anos se fazia sentir, mas seu olhar era forte! sua palavras eram seguras.

 Lembro-me que na época eu me filiara ao PDT. Brizola havia feito muito pelos professores. E agora iríamos  eleger um candidato à prefeitura do mesmo partido: Ezequiel. Mas , ele  foi uma  decepção ,segundo alguns.
No fim da noite, fui até a mesa e todo orgulhosa , pedi-lhe o autógrafo, depois de apertar, emocionada, sua mão e dizer-lhe o quanto me orgulhava dele, de sua luta. O livro fala da vida dePrestes, da Coluna Prestes e foi escrito por Jorge Amado. Ele era uma figura fisicamente frágil, o peso dos  anos  se fazia sentir, mas seu olhar era forte!”

E agora seguem alguns meus. Não, não vou colocar meu autógrafo da máquina de fazer espanhóis, chega de VHM. Mas seguem aqui alguns simpáticos:

alberto manguel

O Alberto Manguel me dedicou o livro O Amante Detalhista chamando-me de o Jornalista Detalhista, após uma entrevista em Passo Fundo, no ano passado. Simpaticão.

O Mutarelli, outro queridão nosso, fez esse desenho depois que mediei o lançamento do livro Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente, na Itiban Comic Shop.

Meu scanner sacanner não pegou muito bem esse autógrafo do Cristóvão Tezza, da época em que ele era meu professor de redação, mas gosto dele por razões.

O último autógrafo que peguei foi esse do Mia Couto, quando entrevistei ele no começo desse mês. Foi legal.

Fora isso, sugiro que vocês leiam minhas peripécias para pegar um autógrafo do Jô Soares aqui.

É isso, galera, espero que tenham gostado!

Jorge Amado – A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua

quincas berro dáguaHohohoho faz o papai Noel. Hohohoho, bandido não vai pro céu. Não sei porque comecei o texto de hoje com uma citação a essa música do Planet Hemp. Mas a verdade é que ninguém nunca sabe começar texto nenhum, porque, vamos dizer a verdade, se soubessem, todo mundo ia escrever muito mais, até mesmo os que escrevem por obrigação. A exceção talvez sejam esses escritores de que todo mundo fala: Franz Kafka, Tolstói, Jorge Amado, Cristóvão Tezza, estes bons começadores de texto.

E por falar em Jorge Amado, o livro de hoje é dele. Rá, e você achando que eu tava dando voltas à toa. Não, meu amigo, eu sou como aquele sujeito dos Jogos Mortais, não dou nó sem ponta, malandragem! Mentira, tava enrolando mesmo. OU NÃO? Jamais saberás. Como eu dizia: Jorge Amado. Se você é paulistano e se dá com todas as classes sociais, deve conhecer umas seis ou dez pessoas cujo apelido é “baiano”, mesmo que elas tenham vindo de outros lugares do nordeste. Como diz o Gritando HC, “Não importa da onde veio, chegando em São Paulo, é tudo baiano”. Mas, é claro, podem haver baianos de verdade entre os baianos que moram em São Paulo. Nenhum baiano, porém, é tão baiano quanto Jorge Amado, “o baiano” por antonomásia. E isso se deve pelo fato de ter sido ele o inventor da Bahia. Antes de Jorge Amado, o que era a Bahia? Um lugar meio sem rosto quando a gente imagina, uma coisa assim, meio Aracaju, meio Maceió, meio Pirapora do Norte, uma nuvem toma o lugar da imagem formada na nossa cabeça. Depois de Jorge Amado, a Bahia, e mais especificamente Salvador, virou o que é hoje: pelourinho, neguinho bêbado, mulata assanhada, gente preguiçosa, coroné, macumba, tiro pra tudo quanto é lado, gente certinha se dando mal, gente gauche se dando bem, pescador, marinheiro sacana, sexo 24 horas por dia, maconheiro vagabundo, comida apimentada, meninada de rua, tabuleiro de baiana, bunda de morena, cochilo na rede, sotaque carregado, bordões engraçados e cenário pra novela da Globo. O tempo encarregou-se de colocar aí o axé, o reggae, a Timbalada, mais maconha e mais bunda. Obrigado, Jorge Amado, agora já temos o que imaginar quando nos falam a palavra “Bahia”.

E o que é a pequena noval A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua? Tudo isso, ora essa. Escrita em 1959 para um dos primeiros números da revista Senhor (não, não é revista de crente), enquanto escrevia Os Velhos Marinheiros ou O Capitão de Longo Curso – um livro nem de longe tão celebrado quanto este. Quincas Berro Dágua tomou uma semana da vida de Jorge Amado, e gerou adaptações e mais adaptações para o cinema, teatro, o que seja. Tudo por conta de uma historinha super simples, que vamos passar em revista agora.

O tal Quincas era um daqueles caras vagabundos que tem em toda família, que vive no bar, arruma briga, dá trabalho, e na hora de reunir a parentada, é o principal assunto a ser evitado. O tal sujeito morre um dia, ou seja, é uma daquelas histórias em que o protagonista já começa morto, tipo, sei lá, O Terceiro Tiro, do Hitchcock. E aí, a família finge ficar triste e no fundo respira aliviada. Os filhos tão relaxados, as tias gordas idem, os agregados então, nem se fala. Mas é, claro, tem gente que fica triste. A mulatinha da casa das primas, namoradinha número um do sujeito é uma delas, os companheiros de bebedeira são outros. E são esses degenerados que rompem velório adentro para dar adeus ao companheiro de esbórnia e não o tomam como morto, porque Quincas começa a sorrir, tomar vinho e xingar todo mundo. Eles resolvem então levar o morto para uma última noite de rolé, porrada, putaria e chapação, apenas para que depois ele, em meio a uma tempestade em alto mar, despeça-se de sua gente para ter sua derradeira morte, do jeito que sempre quis.

É basicamente isso. Não há nada demais nessa história, nenhum significado oculto, nenhuma metáfora a coisa nenhuma, sátira zero, niente. A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua é a novela sobre um vagabundo que morre duas vezes, e faz uma farra entre uma morte e outra. O resto podem ser teses que esses senhores de academia fazem para garantir o whisky das crianças, para dar uma força pro Jorge Amado na eterna e saudável disputa com o gaúcho Erico Verissimo, para enganar os bocós, mas a mim ninguém engana. Quincas Berro Dágua é um livro que entra para a história da literatura por ser um clássico 2D. Narrativa impecável, léxico de dar inveja nos mais eloquentes prosadores de nossa época, construções humorísticas, tudo isso se aceita para elevar a qualidade dessa obra leve e divertida de ler. Mas não, não me venham com interpretações, fortunas críticas e dissertações, que eu não engulo. Prova mais viva disso é o posfácio do senhor Affonso Romano de Sant’Anna, uma das cabeças mais lúcidas da literatura brasileira atualmente: uma encheção de lingüiça engraçada e curiosa, mas veja se Sant’Anna se atreveu a fazer alguma tese sobre o livro que vá além daqueles clichês que sempre valem para a literatura brasileira, dos limites entre realidade e ficção, que a vida imita a arte, bla bla bla. Se o Affonso Romano Sant’Anna, eu repito, não falou nada que acrescente à importância da obra, é porque ela não tem mais nada a acrescentar.

E veja aqui a genialidade de Jorge Amado com ela. Qual gênio da literatura não queria fazer isso: um livro absolutamente fantástico que, mesmo assim, não dá margem para que ninguém sério tente mamar em seus talentos? Morre-se duas vezes? Talvez. Quincas é filho de Exu? Sim. A última farra antes de morrer? Isso não dá nem uma introdução séria de tese. Ah, a glória de se escrever um livro completo em suas interpretações e significados. Nada fica por dizer, é a vingança do morto cremado: não deixar carne pros vermes, nem mesmo para mim, este que quer comer cinza em pleno domingo de manhã.

Quando a Companhia das Letras pegou o Jorge Amado para o catálogo, sabia que ia sair coisa bonita. Pelo menos mais bonita do que a coleção horrorosa da Record (pô, galera da Record, vocês também, hein?). Inesperadamente, não criou-se o fetiche que seria de se esperar em cima da coleção, a galera não voou em cima como aconteceu com o Borges, por exemplo. Mas fica aí umas belas cinquenta e tantas lombadas para quem quiser fazer vista boa na estante. Foto do Marcel Gautherot levada às loucuras instagrâmicas na capa, papel pólen, fonte sei lá, mas é gigantesca, arabescos pra tudo quanto é lado e um belíssimo acervo de fotos e manuscritos ao final. Tudo para elevar o valor da obra, cujo valor já é demonstrado por si só. Então, relax and enjoy!

Comentário final: 120 páginas de pura malemolência. Mas rapaz, quase acabou com a polícia de Pernambuco!