John Steinbeck e Robert Capa – Um Diário Russo (A Russian Journal)

A Russian JournalVê só como você tira um blog da miguxice, mas não tira a miguxice de um blog. Fico três semanas sem postar e já me vejo a dar satisfação para vocês no melhor estilo Marimoon da época do fotolog GOLD. Pra quem não era vivo nessa época, eu explico: ela pegava uma foto em que parecia que ela acidentalmente pagava peitinho mas não chegava de fato a pagar (o que só deixava a bagaça mais patética), depois metia um porrilhão de efeito de photoshop, uns arabescos, uma assinatura na foto e voilà: material masturbatório para tarados por moderninhas na era pré banda larga. E a legenda era a cereja do bolo: “Ai gente, tô tão sem foto, vou postar essa daqui só pra vocês não dizerem que não atualizo :**** ==^^==” ou sei lá que outros emoticons bizarros eram criados por essas mentes insanas. Graças ao bom Deus passei alheio a todo esse bafafá, dedicava meus dias e minhas noites a tocar guitarra, e nada mais.

Pois bem, cá estou eu como uma Marimoon sem vergonha, postando qualquer livrinho pra não dizer que não ligo mais pra vocês *smack* fofuras. Rá, mentira! Um Diário Russo, de John Steinbeck e Robert Capa é um livraço, e uma leitura agradabilíssima. Vamos a ele, pois bem.

Antes que certas *cof cof* pessoas (é, você mesmo) queiram desistir de ler por achar que Um Diário Russo é um livro reportagem, já digo que não é nada disso. Ainda que Steinbeck e Capa tenham lá seus pezinhos metidos no jornalismo (hey, naquela época, quem é que não tinha?), há de se distinguir um livro reportagem de um diário de viagem e, mesmo que o diário tenha uma certa linguagem jornalística e termine por desvendar certas verdades a olhos não acostumados com a realidade soviética, nunca foi a intenção dos autores fazer “um retrato DEFINITIVO da união soviética no começo da guerra fria” ou qualquer outra etiqueta que tentem colocar na capa desse livro em edições futuras para tentar vendê-lo para os war freaks, esse povo tarado num uniforme nazista, num panzer division, num operação Valquíria, num Lili Marlene, enfim, esse povo que, se tivesse pacote da NET só com o History Channel, fazia o favor ao próprio orçamento de cortar todos os outros canais.

Um Diário Russo nasceu principalmente de uma curiosidade discutida num balcão de bar, esse antro místico que as pessoas têm em alta consideração, como um berçário de boas ideias, um mangue da criatividade. Capa e Steinbeck estavam no bar e comentaram com o barman, esse fast-food da psiquiatria, que as notícias que chegavam da Rússia diziam respeito aos planos de Stálin e suas relações com as amadas bombas atômicas, e que nunca as pessoas ficavam sabendo como tavam vinvendo os russos, aquele povo exportador de belas tenistas e políticos engraçados. Decidiram então começar a se mexer para ir para lá registrar tudo e fazer, de acordo com eles, não o retrato russo, mas um dos possíveis retratos.

Partem então para a terra proto-inimiga, aquela que tava ainda dentro dos conformes de Yalta, ninguém tava ligando muito, ainda não tinha rolado aquela não-eleição que emputeceu os norte-americanos (e se tem uma coisa que deixa esse povo tiririca da silva é não fazer eleição). A realidade é cruel: a narrativa de Steinbeck sobre o avião caindo aos pedaços que pegaram na escala na Dinamarca (ou Suécia, Noruega, não lembro… algum desses países com sexo explícito em filme de Sessão da Tarde) faz você se sentir um lorde por viajar de Webjet e um fresco por achar que vai morrer a cada pane mecânica que o avião dá. A situação sempre foi precária na Rússia, e em épocas comunistas, imagine só! Se em Cuba, onde não há dinheiro pra nada, a vida já é ruim, imagine num lugar onde há dinheiro mas todo dinheiro precisa ser direcionado pra construir bomba. Antes que a última árvore fosse cortada e o último urânio fosse enriquecido e o homem branco percebesse que as bombas não podem ser comidas (a não ser as bombas de chocolate), essa insensatez começou a tomar outro rumo, ainda bem. Mas até então, era o jeitinho brasileiro dominando tudo. Pior, era o jeitinho russo, o jeitinho desse povo que não dá jeitinho nem pra construir uns carros mais decentes.

Não foi só na Rússia, porém, que os autores ficaram. Visitaram a Ucrânia, que revelou ser um nascedouro de gente trabalhadora, e a Geórgia, onde disseram que os georgianos eram todos poetas, cantores, amantes insaciáveis e etc. Sei não, hein, acho que rolou um jabá lá na Geórgia… Enfim, imagine que o livro foi legal para diferenciar essa gente diferenciada, pros americanos burros, que acham que soviético é tudo a mesma lata um do outro.

A escrita de Steinbeck é primorosa, e quem conhece sabe. Ele escreve de um jeito muito fluído e altamente informativo. Tem um estilo mais denso que o de Capa, por exemplo, que se preocupa mais em fazer uma graça pro leitor. Nesse livro, aliás, Capa só escreve em um capítulo, se justificando pelo fato de passar duas horas trancado no banheiro, para o desespero da bexiga de seu companheiro, entre outras coisas de que Steinbeck reclama sobre ele ao longo do livro.

Talvez seja esse um dos pontos não-intencionais do livro dos mais interessantes: a figura de Capa sob o filtro do olhar de seu camarada John Steinbeck. É difícil obter esse tipo de coisa, e é como uma corrente: no livro de Steinbeck você sabe de Capa, nos de Capa você sabe um pouco mais sobre Hemingway, e assim por diante. Bom, eu tenho uma grande admiração pela vida e obra do Robert Capa, então esse livro me pegou por causa disso também.

Um Diário Russo é, claro, todo recheado com as fotos do fotógrafo húngaro (aliás, por que a Bulgária chama Bulgária e a Hungria não chama Hungária?), que são todas matadoras. Isso faz com que a leitura do livro, que parece grande, se torne mais rápida do que se pensa. Eu terminei ele em dois ou três dias, então é porque o lance é bom.

Essa edição da Cosacnaify é primorosa! Queria ter comprado esse livro antes, mas na edição antiga custava uns 90 reais. Ainda bem que fizeram essa versão nova, com papel offset (dessa vez nem reclamo, se é pra abaixar o preço…), e uma capa diferente, com uma foto do Capa. O que faz muito mais sentido do que uma versão estilizada de uma das votos, vetorizada e impressa numa parada meio Matisse encontra Picasso da fase escrota em azul e preto. Serviu também pra ornar com o livro do Capa que estavam lançando na época, ficou legal na estante. Fonte Freight e capa dura, pra fazer maldade mesmo! Como diria Clint Eastwood em boa parte do Gran Torino: Grrrrrr….

Comentário Final: 330 páginas em offset e capa dura. Mais duro que a cara dura do Palocci.

Ps: Feliz dia dos namorados para todos. Não importa se você é hetero, gay, bissexual, namora dois ao mesmo tempo, é zoófilo, todo mundo tem o direito de, hoje, levar o ser amado pra churrascaria e comer até cair.

 

Enrique Vila-Matas – História Abreviada da Literatura Portátil (Historia Abreviada de la Literatura Portátil)

historia abreviada de la literatura portátilDe volta ao nosso expediente normal então. Perdemos no The Bobs, acho que todo mundo já estava esperando isso. Como sempre, em meio a chacina de criancinhas, tsunamis, vulcões, vazamentos nucleares e terremotos, o mundo continua dedicando a maior parte de sua atenção à falta de ciclovias. Ora, vou parar de falar isso porque senão vai parecer discurso de mau perdedor. E eu sou mau perdedor e sei que ser mau perdedor ainda não é muito bem aceito na sociedade, então bola pra frente.

O livro de hoje é curtinho. Qualquer um pode lê-lo em uma sentada (o equivalente a três vírgula sete cagadinhas, não sei qual unidade de velocidade de leitura vocês usam aí), o problema maior é desembolsar uma graninha para comprá-lo porque, veja bem, ainda se pensa muito na quantidade de páginas que um livro tem e costuma-se avaliar o preço dele baseado nisso. Gente, o livro novo da Maryan Keyes tem 800 páginas de pura abobrinha, vocês decidem onde investir vosso rico dinheirinho.

Bom, Historia abreviada da literatura portátil é um livrinho publicado originalmente em 1985 e que dá o starte a esse jeito maluco que o autor tem de passar as ideias dele pra gente, usando principalmente a) uma escrita extremamente cerebral b) referências históricas e geográficas das cidades da Europa c) alguns escritores e outros artistas pouco mais desconhecidos do grande público d) apócrifos e muitas, muitas mentirinhas, dessas do estilo pega-troxa. É isso, a literatura do Vila-Matas serve principalmente pra você que acredita em tudo o que lê começar a ficar mais esperto um pouco.

Bom, a história é a seguinte: um narrador, que não é o autor, embora ele dê a entender isso durante o livro inteiro, mas se você ler com cuidadinho você percebe que não é, está escrevendo um ensaio sobre a sociedade secreta shandy, um grupo de artistas mutcho lokos que batizaram sua seita com o nome do personagem Tristram Shandy, do Laurence Sterne, sabe aquele? A sociedade é composta por tipos do tipo do Marcel Duchamp, Aleister Crowley, Robert Walser (robard valzaaaa), entre outros, e todos eles pregam coisas como só fazer arte que não seja importante, só escrever livros pequenos e obras de arte que possam ser miniaturizadas para se carregar numa maleta, à moda da maleta de Duchamp, que cotinha suas obras. E também serem solteiros, estarem perto de pelo menos uma mulher fatal e beber uma bebida chamada Shandy, que, pelo que eu entendi, é cerveja misturada com limonada. Pra quê Activia, né?

Aí que Vila-Matas vai conduzindo a gente por esse universo de mentiradas e o leitor bobão vai caindo em todas, e depois lê a porcaria do livro e sai por aí esbanjando conhecimento. Até que toma um chega pra lá e passa o resto da festa de mau humor, chorando as pitangas de que não teve tanta chance na infância, desperdiçou sabedoria decorando nome de Pokémon e jogando Tazo no recreio, etc. Por isso, é um excelente livro que todo mundo deve ler! É meio estranho que o autor queira divertir a gente com um ensaio, não é? É que nem, sei lá, defender uma tese de doutorado em forma de espetáculo circense. Enfim, por enquanto tá dando certo, espero não enjoar dessa escrita dele, é ainda agradável e, aos meus olhos, pouco pedante se não contarmos a intenção.

Essa edição da Cosacnaify me pegou de surpresa. Achava que vinha um livro do tamanho dos outros do autor, mas veio um que é um quarto dos livros normais, e com menos de 150 páginas ainda por cima. É do tamanho de um livro de bolso, e o boboca aqui nem se ligando que o cara queria fazer uma literatura portátil. Dã. Fora isso, a edição é chique que nem as outras, e a foto da capa é, na minha modesta opinião, uma das melhores da coleção. Rosa e amarelo? Sim, tudo bem, é uma escolha heterodoxa mas, hey, se eles não fizerem, ninguém faz, a não ser talvez uma daquelas gráficas de fundo de quintal que lança uma edição do autor chamada “Mistério na fazenda” com Sandy e Junior na capa, jurando que vai ser o maior sucesso de público e de crítica, entrar pro Guiness e o escambau. Papel pólen e fonte Garamond, a belezura. É isso. Livro curtinho, resenha curtinha, mas acho que deu pra entender como é, né?

Comentário final: Toda pessoa alta é meio maluca porque vivem batendo a cabeça nos lugares. Já repararam nisso?

 

Natalia Ginzburg – Caro Michele

Alô você! Parabéns, conseguiu chegar vivo até o começo de dezembro, e até o meio da semana (sabia que quarta-feira em alemão é Mittwoch, sendo mitt = meio e woche = semana? Livrada! também é cultura, malandro!).

E olha só, não costumo falar isso aqui, mas eu tenho uma banda de roque que se chama Sua bunda. Pois bem, Sua bunda vai se apresentar nesse fim de semana no Hermes bar (se tiver interesse em ir, só mandar e-mail) e vai ser legal. Tocamos um funk metal satírico e entretemos a audiência com muito humor e pauleira. Plim-plim, cabô o comercial.

O livro de hoje tem o mesmo título em italiano e em português, por isso não precisei dos parênteses com o título original. Trata-se de um livrinho bacaninha demais de uma escritora italiana chamada Natalia Ginzburg. A moça defendeu causas nobres em vida, deu uma de antifa no rabo dos que cismaram em dar as caras na Itália depois que o Ducce foi pro pau. E, entre uma antifada e outra, escreveu este belo livro, singelo por fora, mas intenso, triste, revoltante, arrebatador, surpreendente e emocionante por dentro. (Aprendi com as resenhas de filmes que saem nas capas a classificar as coisas com os adjetivos ‘arrebatador’, ‘surpreendente’ e ‘emocionante’.) Falemos dele então.

Caro Michele é um livro totalmente (ou quase totalmente) contado por meio de cartas, endereçadas ao tal do Michele. Bom, nem sempre, a maioria das cartas são para outras pessoas, mas todas elas, ou quase todas, falam do Michele, que é um jovenzinho estudante meio porralouquinha que tá perdido na vida, morando fora de casa e preocupando a mãezinha dele, que se vê às voltas com a vida que o filho deixou para trás: amigos do filho, problemas do filho, ex-namoradas do filho, etc. O Michele mesmo não dá muito sinal de vida. Aparece com uma namorada meio doida, meio hippie, e depois arruma outra, mais velha, que quer se mudar com ele pra não sei onde. De vez em quando lembra da mãe, que está velha, cansada, acabada e sozinha, reclamando de tudo e de todos, embora demonstre grande paciência. Alinhaz, esse é um dos pontos altos do livro: os personagens são muito bem construídos, mas, manja, tipo, muito, tá ligado, bróder? Pra dedéu, morô?

Então, há a questão das camas de texto. Se você pegar o Caro Michele pra ler de boua numa tarde, vai achar uma historinha bonitinha, meio triste, mas bem tranquila. Agora, se começar a esmiuçar o livro, sacar as idiossincrasias dos personagens, entender o que há por trás de cada hesitação, cada informação ocultada, cada sorriso amarelo, vai ver que o que há é uma família destruída que se mantém pelas aparências. E quando eu digo “família destruída”, não estou querendo que vocês façam analogia a um núcleo rico qualquer de novela das oito. Digo destruída individualmente: cada um é derrotado à sua maneira, e cada um esconde sua derrota por um motivo diferente. E aí o livro que já era bom fica excelente. Vai por mim.

Por fim, acho esquisito o narrador desse livro, que dá um estarte na parada e some depois de umas duas páginas. Não sei se a autora poderia ter se esforçado um pouco mais para fazer um livro sem narrador nenhum, só com as cartas mesmo, mas o fato é que o pouco que ele aparece dá a entender que se trata de uma muleta literária, no qual Ginzburg se apóia quando sente que não vai dar conta de tratar bem a história em algum aspecto. Mas essa é só a minha impressão.

Esse livro é parte da coleção “Mulheres Modernistas” da Cosac Naify, uma belíssima coleção aliás. Gosto da cor da capa, porque gosto muito de qualquer tom de verde escuro, e de estampa xadrez também. O livro conta com fotos legais da autora, sugestão de leitura, pósfácio de Vilma Arêas (Vilmaaaaaaaaaaaaaaaa) e tudo mais o que você tem direito. Papél pólen, fonte Nofret (alguém conhece essa fonte?), capa dura e página preta em papel cartão pra dar uma reforçada na belíssima encadernação artesanal. E, tá, a Natalia Ginzburg tem mó cara de caminhoneira, ou uma dessas velhinhas amargas, mas é uma das mais gatinhas das mulheres modernistas dessa coleção. Cada baranga que você não acredita, meu deus! Tipo, terceira mensagem secreta de nossa senhora de Fátima mesmo. Visão do inferno!

Ah, esqueci de dizer: escolhi esse livro hoje porque ele foi adaptado para o cinema pelo Mario Monicelli, o simpático vovozinho que saltou no vazio essa semana. A benção!

Comentário final: 192 páginas pólen soft 80 g/m² e capa dura. Toasty! (referência obscura essa, não?)

 

Enrique Vila-Matas – Doutor Pasavento (Doctor Pasavento)

Doctor PasaventoComé que é, negada! Geral se aguentando pro projeto verão? Tem que ficar com o corpo em forma, senão periga de você passar esse ano sem receber dos outros aquela coisa gostosa que parece amor maciço mas é só medo e solidão banhados a amor. Enquanto você se priva aí de um prazer pra tentar ganhar outro nessa lógica maluca que todo mundo acha que entende, chegaí pra se alienar no Livrada! O livro de hoje é um petardo.

Doutor Pasavento. Acabei de acabar de ler esse livro e vim aqui contar pra vocês como é. Viu como eu sou legal? Viu como eu vou te ajudar a colocar na tua bagagem cefálica algo além do nome de todos os Pokemons, das letras dos Beatles, do penteado do Jordan do New Kids on the Block, de piadas (piadas?) do Friends, enfim, algo que preste. (Ih, coloquei as letras dos Beatles no meio, sujou!) Mas, como esse é um blog isento de embasamento, fiz o favor de não ler nenhuma crítica, resenha, comentário, o que seja a respeito desse livro, afinal de contas, o nosso trabalho é abastecer o Google e não chupar dele o nosso conhecimento, como alguém já disse alguém por aí. Então, que fique bem claro que aqui é só a minha humilde opinião, belê?

Pois bem. Doutor Pasavento é um romance/ensaio sobre o ato de desaparecer. O protagonista do livro, sem nome, mas que se parece em muitos aspectos com o próprio Vila-Matas — algo que ele faz de monte nos seus livros — é um escritor consagrado que está farto do reconhecimento que recebe e deseja sumir pra suprir aí umas necessidades inerentes no ser humano que só Freud explica. Bom, Vila-Matas tenta explicar também, e traça paralelos com a vida do escritor suíço Robert Walser, o gênio irreconhecido, o Captain Beefheart da literatura européia, e de como a sua internação no hospício, onde passou os últimos 23 anos de sua vida sem escrever picas ajudou-o no processo de desaparecer. Ao mesmo tempo, analisa um pouco a situação em que se encontra no momento em que toma a decisão: indo para Sevilha para dar uma palestra sobre a “ficção dançando na fronteira com a realidade”, um tema que só pelo título dá vontade de vomitar. Hospedado na rua Vaneau, em Paris, o escritor começa a viajar na maionese pra criar relações entre aparentes coincidências e fica realmente maluco com isso. Daí cria um personagem, um alter-ego para si: o Doutor Pasavento, doutor em psiquiatria que curte se meter em casos de pacientes alheios.

Não contente com a sua dupla vida, acaba criando uma terceira persona, e depois uma quarta, o Doutor Pynchon, que, assim como o escritor americano, gosta de ficar relacionando tudo por acreditar que tudo no universo está conectado. Pynchon é citado também por ser uma pessoa misteriosa: ninguém sabe quem ele é, com quem ele se parece, porque ele não dá entrevistas nem sai de casa. Tipo um Dalton Trevisan bem sucedido, isso aí. Assim, ele escreve no seu moleskine sobre seu desejo de desaparecer e perambula por certos lugares, ou finge que perambula. Conta histórias como se estivesse na Patagônia, mas estando num hotelzinho em Paris, e passa o final do livro num lugar chamado Lokunowo, que eu tenho a ligeira impressão de que não existe de verdade.

A graça do livro está em ver a transformação do personagem para, realmente, outra pessoa completamente diferente do que ele era no começo do livro. Nesse sentido, Doutor Pasavento também é um romance de formação. Ainda que ele não mude seu estilo de escrita conforme muda a personalidade, é notável o trabalho do autor pra transparecer essa realidade, e, junto com ela, tratar de alguns temas conhecidos dos escritores, como a fama e a cacetada de moleques pedantes que ficam na sua aba pra que você leia os originais deles. A literatura quase sempre é a questão central do autor, pelo que eu andei percebendo.

Essa edição da Cosac Naify é um pitéu, é ou não é? Já falei um pouco dela quando resenhei o livro Suicídios Exemplares, do autor, então não tem muito o que falar, a não ser que esse tem um poder letal maior, afinal são 410 páginas na sua cara. Ah, o livro ganhou aí alguns prêmios, como o da Real Academia Espanhola, em 2006 e o Mondello, de Palermo, na Itália, então acho que o cara presta, afinal de contas. Não sei se sabem, mas ele, quando era um Zé ninguém, alugou um apartamento em Paris da escritora Marguerite Duras e, na cara dura, pediu pra elas uns conselhos de “como ser um bom escritor”. E não é que a dona fez uma listona pra ele? Acho que deu certo, afinal. Vamos ver quem me arruma uma lista dessas agora.

Comentário final: 410 páginas pólen soft. Pra tomar aquele verdadeiro chá de sumiço.

Ps: Algo na cara do Vila-Matas me lembra o Jello Biafra…

Nicolau Sevcenko – A Revolta da Vacina

Aí rapaziada, muita calma nessa hora. Hoje não estamos falando de qualquer autor, um vagabundo qualquer que resolveu escrever livros ao invés de ter um emprego de gente grande. O autor de hoje é nada mais nada menos que Nicolau Sevcenko, o bambambã da USP, que por acaso também é o tradutor da edição nova de Alice no País das Maravilhas. Se você não sabe quem ele é, vergonha na cara e Google no browser já, monstrengo ignoranteeee. Enquanto isso, vamos ao que interessa.

Sevcenko é então o mais novo integrante da coleção ensainhos, da Cosacnaify (falamos mais sobre isso ao final), com o livro A Revolta da Vacina. Pra você que fez supletivo, a revolta da vacina foi uma quebração de pau no Rio de Janeiro do começo do século XX, quando tiveram a ideia de detetizar a população pra ver se a varíola sumia da cidade maravilhosa. O problema é que se neguinho já é xucro com a pobretada hoje em dia, imagine só naquela época em que briga de bar não terminava até que tivesse uma mãe chorando. E tu achando que tinha Zé Gotinha dançando Ivete Sangalo na porta do posto de vacinação, né? A vacina era na base da porrada mesmo, filho. Pra piorar, não fizeram muita questão de explicar como a injeção mardita funcionava, e o povão mal informado só entendeu dessa história que o governo, que já não gosta muito de pobre, resolveu dar um “remédio” de graça pra geral que consiste em injetar a doença direto nocê. Ah, filho, a jurupoca piou bonito. Desmancharam a campanha de vacinação embaixo de cacete, e sobrou pra todo mundo. Teve nego bloqueando a rua, chinelo havaianas voando pra tudo que é lado e precisaram chamar as forças armadas pra dar um jeito na coisa. Morreu muita gente. E você achando que sua irmã era a pessoa que mais tinha medo de agulha na face da terra.

O livro então, procura traçar um panorama do episódio, explicando o que levou o governo a campanha tão drástica e por que, ou por quem, o povo se descabelou desse jeito (não, não era vontade de ficar doente, dona Fátima, tenha paciência). Compilando textos de autores da época, incluindo o vívido depoimento de um jornalista que viu de perto a cobra fumando, além de charges e fotinhas sobre o episódio, pra dar aquele tchananã de pesquisa histórica bem feita.

Na moral, peguei esse livro pra ler porque gosto muito do episódio histórico (quem é que não gosta de ver um efeito borboleta bizarro tipo a Guerra do Pente?), mas me surpreendi mesmo com a maneira lúcida e acessível com que o autor lidou com o assunto. Tudo bem que o livro é pequeno, mas devorei a leitura rapidão, de tão interessante que ele deixou tudo. E isso sem ficar aqui que nem eu recorrendo a piadinha marota ou apelando pros escândalos e polêmicas da história. É só no papo reto mesmo, mano, tá ligado? Ah, se todo livro de história fosse assim… esses maconheiros cabeludos que andam de calça jeans e sandália iam estar todos empregados dando aulinhas pra molecada. Enfim, mais um livro pra botar na estante e reforçar a ideia de que o Sevcenko é um monstro no palco e no estúdio (pergunta pro Thaíde, ele sabe).

E essa tal de Coleção Ensainhos da Cosacnaify? Bom, é uma coleção de ensainhos, cabeção, queria o quê? Tua mãe pintada de azul? Os livrinhos abordam de leve temas diversos, o suficiente pra saciar sua vontade momentânea de querer ser culto, ou o suficiente pra você ficar com a pulga atrás da orelha, mexer o rabo do sofá e procurar saber mais. O acabamento desse livro é sensacional. No verso da capa e da quarta capa, mapas do Rio de Janeiro da época, delimitando o projeto de urbanização criado pela prefeitura e pelo governo. Páginas cinzas para diferencias textos assinados por outros autores e um posfácio à edição de 2010 que é, no mínimo, emocionante. Papel pólen e fonte Perpetua, chiquerérrima com o formato do livro. Sabem que não faço isso muito, mas esse eu recomendo fortemente, foi uma das melhores leituras que fiz em 2010.

Comentário final: 140 páginas pólen soft 80 g/m². Corre, bino!

 

William Kennedy – Ironweed

Hoje eu to sem saco pra enrolar vocês por três parágrafos. A verdade é que toda vez que eu vou falar desse livro meu senso de humor se escoa pelo ralo como resto de miojo que fica na panela. Vamos direto ao ponto, então.

Ironweed é um livro que compõe o tal “Ciclo de Albany”, do escritor estadunidense William Kennedy. O “Ciclo” é uma série de sete livros até o momento (atualmente o escritor está finalizando o oitavo) sobre a cidade de Albany (e você achando que fosse sobre aquele sabonete com cheiro esquisito), capital do estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Já viu estado em que a capital é menor do que outra cidade de seu interior? Pois é, só Santa Catarina e Nova Iorque mesmo. As histórias dos livros têm Albany como pano de fundo para diversas histórias, mas eu não sei dizer quais são porque até agora a Cosacnaify só lançou dois títulos: O grande jogo de Billy Phelan e Ironweed. No primeiro, um rapaz meio viciado na jogatina que se recusa a ser X-9 mas ninguém acredita e começam a lhe fechar as portas.

Já em Ironweed, o protagonista é Francis Phelan, pai de Billy. Francis é um ex-jogador de beisebol que já não era lá essas coisas. Alcoólatra, pobre, devendo as calças pra venda e corno manso que só ele, volta à cidadela onde cresceu e fez fama pra confrontar seus fantasmas. E quando digo “fantasmas” não estou falando em sentido metafórico. Ele realmente fala com os mortos da lembrança dele, pessoas que tiveram seu fim de alguma forma relacionado à sua experiência. Isso aí de falar com fantasminha irritou muita gente que eu sei, mas falemos disso depois.

Francis tem uma mulher chamada Helen Archer, uma ex-cantora que, agora decadente, vive de favor dos outros. E também um amigo chamado Rudy, que além de ser pobre e dever as calças pra vendinha, tem câncer e vai morrer. É, amigo, como diz o Marcelo D2, “tá ruim pra todo mundo, o jogo é assim”. Os três vivem fazendo uns bicos na época da Grande Depressão (não, não é o show do Los Hermanos, é a consequência da crise da bolsa de 1929), matando um leão por dia em uma época em que o Ibama não pegava no nosso pé por isso. Então, passando pela humilhação, pela a bebedeira, pelo desbarrancadeiro, pela grana curta e pelos ectoplasmas inconvenientes, Ironweed é o clássico romance de bebum que Charles Bukowski explorou ad nausea, e por isso tem tudo para fazer o maior sucesso entre aquela raça de pessoa com o prazo da adolescência vencida que se passa nos bailinhos e curte óculos de sol maior que a própria cara.

Encanei com uma coisa nesse livro, que foi a linguagem. Mesclando vários estilos, o livro foi comparado ao Retrato do Artista Quando Jovem, do Joyce, mas eu, na humilda, acho que é inconsistência de quem não se planejou nesse sentido. Vamos combinar que se você é foi um cara com metade da sagração bovina de um Joyce o seu direito de pirar o cabeção nas suas escrivinhaduras não está exatamente legitimado. Mas calma, todas as oscilações de estilo ao longo do livro não são capaz de provocar a mesma fúria que causa um único parágrafo do Lobo Antunes, aquele xarope.

Ah sim, Ironweed foi adaptado para o cinema por Hector Babenco, aquele diretor que parece famoso, mas que na verdade nunca fez nada que você tenha visto, a não ser Carandiru. O filme tem estrelas do naipe de Jack Nicholson no papel de Francis, Meryl Streep no papel de Helen e Tom Waits no papel de Rudy. É praticamente um NBA de atores no mesmo filme. Eu comecei a ver, mas não terminei porque comecei a babar na gola da camisa. Ô filmim chato do caraça. Sempre dizem que o livro é melhor do que o filme, e até dá pra entrar numa discussão sobre o assunto em alguns casos, mas nesse não. Comparado com o filme do Babenco, o livro Ironweed é um porrilhão de vezes melhor. Quem viu, tá ligado.

Preciso mesmo falar do projeto gráfico? É da Cosacnaify, gente, não tem o que discutir. Tem até um alto-relevo na capa, foto sensacional, fonte ótima, papel ótimo, tudo nos trinques. Os livros do “Ciclo de Albany” seguem o mesmo projeto, e, putz, vou parar de falar pra não ficar babando ovo.

E aí vocês me perguntam: “Mas Yuri, e aquela crítica séria, engravatada, sóbria, que não enrola a gente e — essa sim — parece inteligente?” Meus caros, já sabem, é lá na revista Paradoxo. Nessa semana, o livro de Haruki Murakami que pôs todo mundo pra correr. Passa lá!

Comentário final: 272 páginas em capa dura. Quebra os óculos de sol maiores que a cara e revela o que tem por baixo deles: horror! Horror!

Enrique Vila-Matas – Suicídios Exemplares (Suicidios ejemplares)

Suicídios exemplaresEis que, no fim do mês passado, bem naquele período de apertar o cinto, quando sobra mês pro salário, a Cosacnaify, editora que adoro e admiro, resolveu fazer uma vileza com todos nós: colocou em sua loja virtual uma promoção de 24 horas com livros caríssimos pela metade do preço. Era Moby Dick saindo a 55 reais, trilogia do Górki a um galo, ensaio do Levi-Strauss saindo mais barato que cd do Calipso. Enfim, bate aquela sensação de que o mundo inteiro está se divertindo e você aí, na pior. Eis que minha mãe surge para livrar-me da dor de ver e não ter e disse “escolhe dois aí de presente de dia do amigo”! Gente, que mãe legal! Sem pestanejar, escolhi dois livros do espanhol Enrique Vila-Matas. Li um deles e agora estou aqui para comentar com vocês, queridos leitores, a genialidade desse rapazote no livro Suicidios Exemplares.

Deus sabe que não gosto de livro de contos. Dos contos sim, gosto muito, e leio com prazer. Mas livros de contos — vai vendo — são cansativos a dar com pau: o desgaste de entrar no clima de uma história para logo sair dela é um ônus do costume de ler romances. Quando eu lia só contos, achava tranquilo. Mas aí é que tá, camaradinhas: não experimentei esse cansaço nos contos do barcelonês. Talvez, por todos eles serem permeados pelo mesmo tema: o suicídio.

A ideia de um suicídio exemplar é doidona, tá ligado. Aliás, suicídio é um conceito com muitas limitações de caracterização: não pode ser ideal, não pode ser exemplar, e por aí vai. Mas o que Vila-Matas fez, de maneira diabólica (e Vila-Matas ao contrário é Satam Alive, né?) foi explorar o tema e quase esgotá-lo em narrativas eletrizantes. Nelas, o suicídio não só o desfecho lógico como também a justificativa para a própria literatura. Já diziam esses sujeitos emos tipo Cioran, que o suicídio é um ato de afirmação. A morte é a verdade do amor e o amor é a verdade da morte, diz o espanhol lá em dado momento. E a afirmação de Vila-Matas na literatura é justamente a do sumiço, é ou não é? De Bartleby e Companhia, que trata do ofício de desistir de escrever, passando por Doutor Pasavento, que aborda o desejo de desaparecer, o suicídio também pode ser essa saída à francesa, quando não é aquele escarcéu de pobre de “aaaaaargh, eu vô pulááááá”. Talvez seja esse o exemplo dos suicídios do livro afinal: não incomodam ninguém, e são sabidos apenas dias depois.

Enrique Vila-MatasEntre os contos, dois são excepcionais: “As noites da íris negra”, um conto que desafia sua capacidade de largar a leitura no meio da história. Fala do mistério que envolve a morte do pai de uma gatinha que o narrador tava a fim de carcar, e falar mais do que isso é um crime ao conto. E “Pedem que eu diga quem eu sou”, onde o autor vira personagem e trava um diálogo sensacional com um pintor metido a sabichão, considerado o último dos realistas por pintar placidamente um povo “verdadeiramente diabólico”. Esses dois contos — trocadilho prego — dão conta de exemplificar o poder da narrativa de Vila-Matas, seja qual for o aspecto principal da narração, o diálogo ou a descrição. Em descrição, aliás, o penúltimo conto, “O colecionador de tempestades” descreve um ambiente tão sombrio quanto engraçado, e fecha o livro com uma ideia: todo suicídio acaba sendo um espetáculo. Digo penúltimo porque o último mesmo é um trecho de uma carta do gordinho Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa antes de seu suicídio, lhe informando da chegada da estricnina. O título, que abre o excerto da carta, “Mas não façamos literatura”, é um capítulo a parte, uma resenha a parte, que nem eu nem você iremos fazer.

Acho que comentar o projeto gráfico da Cosacnaify é dispensável, né? Os livros são todos sensacionais. Essa coleção do Vila-Matas principalmente. Com essas fotos da Corbis e essa preparação da capa, a gente tem a certeza de que fez um negócio da China por comprar o livro pela metade do preço. Aliás, sugiro entrar ali no blog da editora para ver as capas alternativas a esse livro. Acham que ficaria melhor? Eu, particularmente, não acho. Essa foto matou a pau.

Ô velho, esse cara é a cara do Ney Latorraca ou não é?

Comentário final: 205 páginas em papel pólen soft. Pouca coisa, seu fresco! Toma mais!

Herman Melville – Bartleby, o Escrivão (Bartleby, The Scrivener)

Oi Yuri, como você está? Eu estou bem, gentileza sua perguntar. Como foi a banca da monografia? Ótima, amigo, nota dez pra refrescar a cabeça depois de ano e meio de trabalho. E agora, bola pra frente e taca carvão nessa máquina massacrante de literatura que é o Livrada!

Meus amigos, em verdade vos digo: às vezes é um pouco trabalhoso conseguir ter alguma parte da cultura coletiva instalada na sua cachola. Claro que muita gente já ouviu falar de Moby Dick, mas você sabe de verdade quem já leu? Pouquíssimas pessoas. A mesma coisa com Dom Quixote. Se você quiser bater no peito e falar que leu a obra-prima do Cervantes, vá lá, mas prepare-se para centenas de páginas para serem vencidas, caso contrário, a única coisa que você vai saber sobre o engenhoso fidalgo é que ele, durante umas duas páginas, fala de uns tais moinhos de vento. E aí se prepara para os pescotapas e os amigos te zuando de leitor de orelha e afins. Agora, existem livros menores e mais fáceis de serem lidos, entendidos e utilizados em suas conversas de boteco. Pra isso, o papai aqui dá a dica: Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville.

Mais por desencargo de consciência — acredito que a maioria dos meus leitores já deve ter lido esse livro — a história fala de um advogado de Wall Street que contrata um copista pra ajudar nas tarefas, que só aumentam. O sujeitinho é estranho, não conversa, não come e não lê nada. Mas enfim, era o começo daquela falta de interesse na vida alheia que assola a modernidade desde que instituíram a bisbilhotice como coisa típica de gente da roça. Então ele vai deixando passar. Até que um dia, Bartleby se recusa a fazer a tarefa que lhe é conferida. E a partir daí, não faz absolutamente mais nada, sempre respondendo com o seu inigualável bordão: “Acho melhor não”. Tá, não contei absolutamente nada de novo pra vocês, né?

Primeira consideração sobre esse livro: Claro que o personagem de Bartleby é cativante (menos naquela montagem teatral que fizeram da peça. Sem querer ser machista, mas acho que igualdade de sexos não serve na hora de interpretar papéis masculinos), uma análise mais fria (e simplista) da história pode mostrar que o Bartleby é só um obstáculo, uma parede em um beco sem saída na qual o narrador advogado bate constantemente, a cada tentativa de gesto de boa vontade por parte dele. O advogado, esse sim, é o mérito do conto de Melville. Na narração em primeira pessoa, a primeira frase do segundo parágrafo justifica o livro inteiro: a ideia sustentada por ele de que a vida mais confortável é a melhor. E o que é mais confortável do que ignorar a existência de um problema, como ele faz? A construção desse personagem é que é o barato do livro, e vocês hão de concordar que muitos de nós não agiríamos diferente do narrador, em prol da civilidade que neguinho brada aos quatro ventos.

Segunda consideração: Melville antecipou em uns 80 anos o tipo de suicídio social que a gente vê hoje, a vagabundagem por opção. Claro que ninguém nunca ficou sabendo por que Bartleby deixou de viver, e nem era a intenção explicar isso. Sabe, né? Mesma coisa da prevaricação da Capitu, o buraco que o autor deixa pra fazer a obra perdurar em debates bestas de professorinhas de literatura que organizam tribunais na sala, dividindo em acusação e defesa da cigana os mancebos, que, a essa altura, só estão querendo saber mesmo é de ir pra casa fazer negócios escusos. De qualquer jeito, essa vagabundagem por opção, essa decisão por não fazer mais nada é algo que instiga tanto todo mundo como se ninguém nunca tivesse preferido não fazer alguma coisa. De Enrique Villa-Matas, que usou o nome do copista para fazer um livro sobre os escritores que deixaram de escrever (aliás, alguém aí já leu Villa Matas? Qual livro deles recomendam?), a Homer Simpson, que já dizia que se algo é muito difícil então não vale a pena ser feito, todas as vontades passam pelo filtro de nosso juízo, que analisa cada situação e vê se a gente não vai dar com os burros n’água. Viram isso que eu escrevi? Um péssimo jeito de terminar um parágrafo. Anotem e aprendam como não fazer.

E chega de papo, vamos falar desse projeto gráfico da Cosacnaify. Já me dei conta que a editora está mesmo no ramo da arte, e juntar a arte de fazer um livro com a arte da literatura. Essa edição maravilhosa vem toda costurada artesanalmente, e, para começar a ler o livro, você precisa descosturar a capa e abrir (de preferência com um estilete ou um abridor de correspondências; eu usei minha inseparável balisong) cada par de páginas. Para isso, eles fornecem um marcador transparente, que não é exatamente a ferramenta ideal, mas é bonito e serve como um marcador mesmo, para a VIDA. Só fiquei um pouco triste porque a capa é de couro verde, e, devido às condições insalubres do meu apartamento, ela acabou mofando e desbotando em algumas partes. Mas tudo bem. Ah, comprei esse livro por R$1,50 porque a Saraiva tava fazendo uma promoção com ele a R$16,50, valor do qual abati quinze reais com meu cartão fidelidade (cartão fidelidade, aliás, é um conceito muito agressivo. Pensar que alguém é fiel a uma loja é rebaixar a dignidade humana a uma subserviência comerciária. Desprezível *ptuu* cospe no chão). Tudo isso para você ser ainda mais ativo ao ler o livro e, ao contrário de Bartleby, achar melhor sim, abrir cada página do livro pra saber o que acontece. O livro vem embalado no plástico que traz o bordão de Bartebly estampado, uma provocação pra você ler o livro. Aliás, “Acho melhor não” é a tradução que melhor cai aos ouvidos, da expressão original “I rather not”. Traduzir ao pé da letra — o “prefiro não” da peça já mencionada e da edição publicada da L&PM realmente não desce redondo. Assim como utilizar a palavra “Escrivão”, ao invés de “Escrituário” das outras edições também ficou melhor, na minha singela opinião. Ah, esqueci de dizer que o posfácio é assinado pelo Modesto Carone, o homem-Kafka, que, obviamente, não deixa de citar o escritor tcheco. Fico imaginando se, ao invés do Caetano, o pessoal do Segundo Caderno entrevistasse o Carone. “E aí, Sr. Carone, o que o senhor acha dos discos lançados apenas na internet?”, “Ah, veja bem, Kafka…” (Brincadeira, hein, Modesto).

Comentário final: 46 páginas offset. Se for bater em alguém com Melville, ainda é melhor usar o Moby Dick.

Stendhal – O vermelho e o negro (Le Rouge et le noir)

É hoje que eu arrumo um inimigo nesta joça! Preparem-se, crianças, hoje acordei com o pé esquerdo, preciso ir lá na Reitoria entregar minha monografia e tô me sentindo muito Shiva, por isso quero destruir alguma coisa. E vou destruir logo esse clássico da literatura (tá na tag!) que é o vermelho e o negro, do nosso amigo Get up, Stendhal (sempre achei que o Bob Marley cantava isso!).

Fala sério, hein? Se isso não fizer o gordinho se revirar no túmulo, eu não sei o que pode fazê-lo — bom, talvez uma descarga elétrica. Mas coloque-se no lugar de Henri-Marie Beyle, o homem por trás do pseudônimo: você escreve um livro que é comentado mais de duzentos anos depois de sua morte, considerado um clássico da literatura (TAG!), e aí vem um moleque metido a besta falar que seu livro é um lixo. Nããããooooooooo!!!! Sim, meu cumpádi, é agora que o cão vai comer uma mariola.

Breve resumo pra vocês, ó preguiçosos: sujeitinho desprezível do interior chamado Julien Sorel, pobrezinho, não nasceu em berço de ouro, e tem um pôster do Napoleão no quarto dele (assim como eu tenho um pôster do Néstor Kirchner no meu). O sonho do rapazote era ser um Napoleão, mas existem dois agravantes: o primeiro é que ele, como vamos descobrindo conforme a leitura, não tem a envergadura moral para tal; o segundo é que ninguém daquela época queria saber mais de Napoleão, nem fantasiado de Lady Gaga dançando Rebolation. Todo mundo escaldado com a derrocada do baixinho que andavam por aí enterrando anão sem motivo. Mas o bicho é teimoso: e aí se mete a ser seminarista, e no meio da sua trajetória, rolam umas tensõezinhas sexuais com mulheres insatisfeitas à beira de um ataque de nervos (afinal de contas, ninguém toma banho na França e, naquela época, catupiry significava outra coisa).

Bom, mas, afinal, por que eu não gostei desse livro? Vários motivos, meu amigo, e quem leu sabe. Primeiro, e talvez o mais importante: esse livro é um livro covarde (ouviram aí um “bump” no caixão do Stendhal?). Veja bem, Stendhal escreveu o vermelho e o negro (olha, a quantidade de neguinho imbecil que perguntou “é sobre o Flamengo?”… Não fode a minha vida, Ruy Castro) em uma época em que a burguesia Francesa estava por cima, mas não estava, necessariamente, com tudo. Tremendo de medinho do que as forças acima de sua cabeça poderiam fazer com a sua cabeça de cima, escreveu sem a cabeça de baixo e fez uma história, no mínimo, xoxa. Pode ver que, para cada ideia minimamente polêmica que ele coloca no livro, são duas páginas tentando se desculpar. Isso quando não acontece dele simplesmente omitir a discussão polêmica que está rolando entre os personagens, pro seu desespero, que a essa altura do campeonato, quer ver sair um tiroteio de qualquer página.

Aliás, dessas desculpinhas pelas polêmicas saiu a grande sacada do livro, considerada por alguns teóricos, como Walter Benjamin naquele seu textículo esquerdo “O Narrador”. É, o lance do espelho: que o livro é como a carroça que passa com um espelho, refletindo toda a paisagem. Se, eventualmente, refletir algum lamaçal, tem culpa eu? O espelho só reflete, né não? Só que, na moral, Stendhal, não mete essa. NÃO METE ESSA! Se o cara quer causar, quer matar a cobra e mostrar o pau, quer chutar o balde, então faz, mas depois não vem com desculpas do tipo “eu estava bêbado”, “eu precisava extravasar” e “o espelho só reflete o lamaçal”. Pra cima de moi, xará?

Outra coisa irritante sobre o livro: é tudo falso, como aquela música do Skylab. O vermelho e o negro poderia muito bem ser uma novela de época das 6. Os amores arrebatadores, a vontade de ganhar o mundo, a gana de impressionar, a tensão sexual velada entre a madame e o empregadinho, tudo isso é só reflexo daquela época, nada que pudesse ser sustentado se a sociedade descrita não fosse tão empata-foda. Mulheres leitoras deste blog, imaginem que vocês moram num fim de mundo (pior que, sei lá, Pato Branco), cidadezinha de mil habitantes, esposa do único homem pra quem você deu, um cara importante, junto do qual você precisa passar o ano inteiro fazendo pose e vivendo em um mundinho de aparências. Eis que surge um jovenzinho borbulhando hormônios, doido pra ser alguém na vida sem nunca ter conhecido mulher. Acabou, amigo, taí a ruína do teu estilo de vida. Agora, acreditar que isso aí que os dois vão sentir vai ser amor, ou mesmo uma paixão dessas de embaçar vidro… Again, não mete essa, Stendhal!

Por fim, o livro é extremamente longo pra historieta que conta. Não longo o bastante pra os pederastas beletristas colocarem debaixo do braço como o Caminho de Swan ou o Moby Dick, apenas longo o bastante pra você perceber que poderia estar fazendo outras coisas e que você pode viver sem ler esse livro, que ninguém vai te recriminar por isso. Não, a patrulha intelectual não desconta três pontos na sua habilitação de inteligência se você não ler Stendhal, relaxe.

Agora, se tem uma coisa que esse livro tem de bom é o projeto gráfico. Cosac e  Naify, seus turcos maravilhosos, quero pagar um sorvete pra vocês qualquer dia! Fala sério, não bastasse a capa dura coberta pela capa de papel, a fonte Bembo (alguém já ouviu falar dessa fonte?), o papel chamois fine dumas de 80g/m² (qualquer editora mais mão de vaca colocaria no máximo 50g/m² em um livro de mais de quinhentas páginas), tem essa imagem maravilhosa, que dá vontade de fazer um pôster desse quadro e ficar olhando o dia inteiro. “Napoleão após a abdicação”, de Paul Delaroche, é o nome da peça. Olha a cara desse Napoleão, galera! Quem me dera ter pintado um quadro desse? Aposto que essa seria a cara que ele faria depois de ler O vermelho e o negro. Ah, e falando em pintura, o prefácio é da Tarsila do Amaral, o que mostra que essa tendência de colocar artista pra dar pitaco nas coisas não é de hoje. No mais, é ter coragem e disposição. Mais coragem do que um irmão Coragem e mais disposição do que para dançar o creu.

Mais uma vez, o título original, Rouge, em letra maiúscula.  Será que é alguma coisa? Será que Stendhal curtia um Ragatanga?

Ah, a promoção ainda está rolando. O comentário de número 500 ganha o Plataforma do Michel Houellebecq.

Comentário final: 572 páginas chamois fine com capa dura. “Mas que mulher indigesta, merece um vermelho e o negro na testa”