Hermann Broch – Esch ou a anarquia (Esch oder die Anarchie)

esch ou a anarquiaRound two na trilogia dos sonâmbulos, mais de um ano depois da publicação do texto sobre o Pasenow ou o romantismo. Até que tá bom, levando em consideração que entre a publicação de um livro e outro, Hermann Broch levou quinze anos. E estou lendo esses livros espaçadamente por um bom motivo: caí de amores pela literatura deste senhor e não quero que acabe logo. Hermann Broch foi a minha grande descoberta, e essa trilogia lançada pela Benvirá tá muito subestimada no que diz respeito à recepção da crítica. Quando pesquisarem no google, a única resenha que encontrarão deste livro em específico será a minha, então EXCLUSIVO! Livrada! conta tudo sobre o segundo livro da trilogia sinistrassa do austríaco mutcho loko. É até um pecado que um livro da magnitude de Os Sonâmbulos caia apenas na minha humilde e pesada mão para comentar, mas vou fazer o possível para fazer algo à altura.

Em primeiro lugar, e não custa reiterar isso, se vocês não conhecem Hermann Broch, tão marcando. O sujeito tem senso de humor e ainda por cima escreve bem pacas. Ele está na divisão dos grandes: Thomas Mann, Robert Musil, Proust e Joyce, de acordo com o grosso da crítica mundial, mas quase ninguém conhece because… NAZISMO. A obra do sujeito foi apagada do mapa durante um período e redescoberta tempos depois. Por quê? JUDEN! NEIN NEIN NEIN! Moleza, explicação pra tudo que aconteceu de ruim na Alemanha naquela época. Bom, vamos ao livro em si.

No segundo volume da trilogia, o protagonista é August Esch, um empregado de uma empresa em Colônia que é demitido e resolve arrumar um emprego em uma companhia de navegação em Manhein, chefiada por quem, por quem? Bertrand! Sim, amigos, o antagonista de Pasenow é o chefe de Esch neste livro. Esch deixa então seus amigos de Colônia, em particular a viúva Frau Hentjen, e se muda para um quarto na casa do inspetor aduaneiro Balthasar Korn, que divide a casa com sua irmã solteirona Erna. É em Manhein que ele conhece também dois húngaros circenses: Gerneth e Ilona. Também encontra o amigo Martin, preso durante uma greve na empresa em que trabalha, e Lohberg, judeu que topa investir dinheiro quando Esch e Korn resolvem montar um negócio de luta livre feminina. E no meio de tudo isso, o cara quer se mudar pros Estados Unidos, pela sua liberdade de expressão, em resposta à repressão covarde da greve que prendeu Martin.

Hermann Broch

CUMA??

Então vamos à primeira questão: O Esch a gente já conhece, agora que anarquia é esta de que fala o título? Hermann Broch é um cara velho, e o que significa anarquia pra qualquer pessoa velha? Bagunça, obviamente. Broch queria falar aqui, mais uma vez, dos muitos elementos do período transitório para a nova ordem mundial (pós-Grande Guerra) e da falta de hierarquia entre eles. Sim, porque a perda de valores é também a perda do peso exato que cada elemento deve ter na sociedade. Assim, Esch está tentando achar seu norte moral no meio da bagunça: se revolta com a prisão de Martin e despreza Bertrand por ele ser patrão ao mesmo tempo em que intenciona se tornar um empresário ele mesmo. E o trabalho é encarado apenas como uma função social da qual só é possível extrair respeito, e esse respeito apenas para duas funções: colocar um senso de ordem e retidão no mundo a sua volta e tirar uma onda com os antigos empregadores que o rejeitaram. Tem essa mesma relação confusa com as mulheres: tenta corromper Frau Hentjen, que nem bonita nem jovem é, apenas pela atração que sente por sua retidão moral; tenta trazer Ilona para um mundo mais regrado – resgatá-la — depois que ela começa a ter um caso com Balthasar Korn, e rechaça Erna depois de ter um caso furtivo com ela, mas ao mesmo tempo, sente um desejo profundo de arruinar a relação dela com o judeu Lohberg depois que os dois se aproximam. Obviamente que o final disso não é muito bonito pra ninguém, afinal de contas, ninguém escreve um livro pra dizer que os tempos estão mudando, faz um personagem desprezível de protagonista e terminam dizendo que o mundo tá mudando é pra melhor.

Esch, o rapaz que não sabe se casa ou compra uma bicicleta e acaba comprando uma esposa e casando com uma bicicleta, é o símbolo da confusão que o século 20 representava para aqueles loucos germânicos. Seu mundinho se abalando, ele trabalha só pra ganhar dinheiro, sai comendo todo mundo que vê pela frente e tenta ganhar dinheiro da maneira mais improvável possível. Soa familiar? De certa maneira, Broch estava antecipando a vida sem roteiros que vivemos hoje em dia. Alguns lidam melhor com a anarquia do que outros, e agora estamos vivenciando um momento tenebroso de volta às origens e tradições e ao conservadorismo em resposta à “anarquia”, então o sujeito é um profeta da literatura. E ainda faz uns caras engraçados e perdidos pra gente dar risada deles.

Essa edição é igual á anterior, tem tradução e posfácio do Marcelo Backes e capa do Ernst Ludwig Kirchner, que é um expressionista alemão que manjava das xilogravuras também e que era todo errado e cheio de problema e acabou se matando, e é sempre legal ver obras de arte de gente assim.

Se recomendo? Ora, se você ainda não sabe a resposta pra isso, amigo, leia esse texto de novo!

Comentário final: 312 páginas em papel de jornal. Anarchy in the Livrada!

Vídeo: O Demônio do Meio-Dia, de Andrew Solomon

Estamos de volta com mais um vídeo, e dessa vez com um livraço do Solomon. Em O Demônio do Meio-Dia, o autor explora os vários aspectos da depressão, essa doença tão misteriosa e tão presente nessa vida loka. E como as pessoas reclamaram muito da minha barba, dei uma repaginada no visual e fiquei bonitão. Então clica no bonitão aí embaixo.

vlog solomon

Ernst Jünger – Nos Penhascos de Mármore (Auf den Marmorklippen)

Auf den MarmorklippenTem livros que são tão sinistros que poucas pessoas conhecem, menos pessoas ainda o leem e menos ainda tem a audácia de comentar. Como a gente é enxerido e cara de pau, jackpot! Assim é Nos Penhascos de Mármore – um título bem gay pra se dar a um livro, segundo um amigo gay que eu tenho, principalmente na tradução anterior, Sobre as Falésias de Mármore – do Ernst Jünger. O melhor adjetivo pra descrever o Jünger é: alemão. O cara é muito alemão, galera. E como Nos Penhascos de Mármore é uma obra alegórico-simbólica, é preciso entender certos aspectos do autor e de sua época para entender porque ele escreveu o que escreveu. Vamos falar desse alemão então.

Jünger foi capitão durante a Primeira Guerra Mundial e foi condecorado duas vezes com a cruz de ferro e outra vez com uma medalha ao mérito que, olha, não é pra qualquer um. De modo que é um sujeito rigoroso e militarista. Inclusive ele defendeu o caráter ontológico da guerra em alguns ensaios que escreveu. A guerra, pra ele, está dentro de nós, é uma parada de que o bicho hômi simplesmente precisa como alavanca da civilização. Ele é, basicamente aquele seu bisavô maluco que acha que a gente tem que entrar em guerra com alguém e que seria muito bem amigo do Tarás Bulba. Mas também é um sujeito muito sensível, e tem uma formação naturalista, de modo que observa muito a natureza e gosta de catalogar tudo que encontra, tendo viajado ao Brasil em 1936 e se encantado com o Pará e com o Instituto Butatã em São Paulo. Conforme o regime nazista ia ganhando forma e força, Jünger foi se irritando com os excessos e as atrocidades da SA e da SS, de modo que escreveu Nos Penhascos de Mármore como uma alegoria contra forças totalitárias em geral, mas certamente motivado pelo nazismo. O Goebbles ficou putíssimo com a publicação e queria sair na porrada, mas o Hitler como gostava dele enquanto militar, deixou a publicação passar sem represálias, embora o livro tenha ficado sem comentário crítico por razões óbvias.

Mas bom, de que fala, afinal, Nos Penhascos de Mármore? Bom, o livro, que se passa em um universo fictício, é narrado por um narrador sem nome, que se recorda de uma época em que passou em um retiro em Marina Grande, um lugar que na alegoria é o lugar-tudo-de-bom do universo. Ele e o irmão Otho, que é o irmão dele, ficam lá de bouas num eremitério bebendo e rindo e tudo mais, até que a ordem de sua vida começa a ser arruinada quando uns arruaceiros caçadores do bando de um tal monteiro-mor – uma alusão às forças nazistas e seus líderes, respectivamente – que transitam pela região começam a causar. E por causar eu digo matar uns pobres coitados. É bom que se diga que o universo do livro está separado em principalmente três regiões: Marina Grande, que é o lugar massa, que fica pra cá dos penhascos de mármore. Depois, a Campanha, que é tipo um lugar intermediário, patriarcal e de pastoreio, e a Mauritânia (que não é a Mauritânia de verdade), onde o bicho pega mesmo, onde mora o monteiro-mor, tirano da história, inimigo da civilização. É contra ele que o narrador e irmão Otho acabam lutando, numa alegoria do embate entre civilização e barbárie, mesmo esta camuflada de ordem e progresso. Mais do que isso são detalhes, acho eu, e detalhes estão na leitura.

Ai como eu to bandida

Ai como eu to bandida

A narrativa de Nos Penhascos de Mármore é relativamente curta – 176 páginas de história, mais a brilhante apresentação de ninguém menos que Antonio Candido (e se o Antonio Candido apresenta uma parada, você pode se segurar no corrimão que o chão vai tremer, o tempo vai fechar, os lisos vão correr e as cocotas rebolar) e o posfácio igualmente informativo do tradutor Tercio Redondo, que olha, se esmerou, viu. Mas a história mesmo é ainda mais curta do que isso, porque boa parte do livro é descrição das coisas, dos lugares e das pessoas. Com esse lance de naturalismo e atenção à natureza – hobby partilhado pelo narrador e seu irmão Otho (que segundo o tradutor, são alusões diretas ao próprio autor e seu irmão), Jünger se mostra um esteta de primeira e um parnasiano alemão como poucos. O Candido fala na apresentação que pra ele, naquele momento, a escrita em si era a expressão máxima da beleza artística e que pra fazer valer a literatura, o estilo tinha que ser milimétrico, com escolhas exatas de palavras e tudo mais. De modo Nos Penhascos de Mármore é antes de tudo a construção estética da escrita e a descrição detalhada do universo criado pelo autor, o que pode deixar a coisa bem chata lá pela página cem, mas se você não tá acostumado com um pouco de lirismo na sua vida, corra desse livro porque você não vai conseguir passar da página dez. No mais, a história em si é até bonita pela aparente placidez do personagem, que é levado à guerra por um instinto de sobrevivência e luta muito bem, mas antes de tudo por um sentido inerente de nobreza, que é um troço meio nazista se você parar pra pensar, mas que tudo bem, porque o cara é bom de briga e briga, teoricamente, do lado do bem. Tipo aqueles filmes de ação em que mexem com o cara errado e os bandidos se dão muito mal por causa disso e você gosta muito do protagonista. É, tipo isso.

Esse livro faz parte da Coleção Prosa do Mundo da Cosac e eu comprei ele numa dessas promoções de 50% de desconto da editora no ano passado, porque só assim na minha atual situação econômica. Ele tem uma capa paperback por cima da capa dura cinza e sem graça só com as iniciais do moço na frente em azul. Além dos nomes que agregam valor à obra (e aqui vamos parabenizar de novo o Redondo pelo trabalho excelente e provavelmente exaustivo), o livro tem papel chamois fine, que é o pólen soft ainda mais glamoroso e fonte Bembo, da qual nunca vi nem comi eu só leio e ouço falar.

Comentário final: 197 páginas em papel chamois fine e capa dura. Arrebenta os totalitarismos pra lá do penhasco de mármore!

Vídeo: Dora Bruder, de Patrick Modiano

Prêmio Nobel é sempre bom de conhecer, né? Pois é, só que já passou meio ano e as pessoas ainda não sabem muita coisa sobre o Patrick Modiano e as chances dele entrar pra lista dos Nobéis esquecidos (pelo menos por nós) é muito grande. De qualquer forma, pra não deixar passar, aqui vai um vídeo curtinho pra comentar um livro curtinho que ele escreveu.

dora bruder

Clica no Cauê Moura, abestado.