Mia Couto – Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

Mia Couto, caralho! Tava demorando para esse mestre aparecer por aqui. E justamente com qual livro senão o meu favorito em língua portuguesa (depois do Grande Sertão, lógico): Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.

Conheci o autor através do amigo Cássio (compadre meu Quelemém), que emprestou O outro pé da Sereia para a Carlinha, que sempre foi muito mais destemida para literatura do que eu (do tipo “Ah, acho que vou começar a ler Górki”), e ganhei o livro de Natal do pai numa festinha na Fnac. Vou falar que fiquei com um pé atrás com esse título, que soa como a) livro de poesia (ugh!) b) livro psicografado pelo espírito Lucius (ou coisa que o valha) c) livro arrogante com nome arrogante, do tipo “O Pêndulo de Foucault” d) livro de escritor que publica livro independente e vende na feirinha (“ganha um cd com mantras para ouvir enquanto lê, bicho!”). Claro que o livro no fim das contas não era nada parecido com o que eu achava e isso me ensinou a não ter preconceito com título de livro (mais ou menos, ainda não tive coragem de ler O Segundo Sexo).

Um rio chamado tempo conta a estória de Marianinho e sua família, e parte da ocasião da morte de seu avô Dito Mariano em Luar-do-Chão, uma daquelas aldeias onde a única opção de lazer deve ser o barranqueio. Voltando à aldeia, o neto reencontra a família de tipos engraçados e nomes mais engraçados ainda: os tios Abstinêncio, Admirança e Ultímio, a avó Dulcineusa, sem falar no seu pai, Fulano Malta. No meio do velório e de tanta coisa esquisita tida como tradição local, como tirar os telhados da sala para o velório, Marianinho começa a receber cartas do avô morto. Aí entra um viés policial que, até pouco tempo atrás (antes de Antes de nascer o mundo, seu último livro), era uma característica corrente de sua obra. O mistério a ser resolvido, esse, muito mais num lance Miss Marple, faz de uma ocasião chata pra caralho (afinal, velório só era legal pro Nelson Rodrigues) no cu do mundo um thriller de suspense familiar eletrizante (maldita Sessão da Tarde e os vícios que ela deixou na nossa escrita).

Vi uma entrevista com o Mia Couto uma vez na televisão junto com o José Eduardo Agualusa, onde ele falava que a molecada de hoje quer muito escrever mas quer fazer literatura só de palavras bonitas. Ele nos lembrava da importância de se ter uma história para contar. E o Mia Couto tem história pra contar sim, hein? (Menos naquele Venenos de Deus, Remédios do Diabo) A história não te larga e você, por sua vez, não larga a história. Eu li esse livro em dois dias e fiquei amarradão.

Mas, além da boa história para contar, Mia Couto também SABE escrever (com tudo maiúsculo). Sério, rapeize, esse moçambicano é a melhor coisa da língua portuguesa desde Guimarães Rosa. E não é só a prosa fluida e a musicalidade de seus parágrafos, é tudo: seu estilo híbrido, seus neologismos que brotam da terra e suas pequenas filosofias que são despejadas de torneirinha no livro (se bem que às vezes ele não sabe a hora de fechá-la um pouco). Eu geralmente me limito a resenhar os livros, mas dessa vez vou abrir uma exceção e dizer que se você gosta de boa literatura e de linguagens diferentes, você precisa ler Mia Couto. Se você for cagalhão como eu fui quando peguei esse livro pra ler, sugiro uma coisa: Vá numa livraria, pegue esse livro para folhear e leia as frases que abrem os capítulos, de autoria do autor: “O mundo já não era um lugar de viver. Agora, já nem de morrer é”, “A mãe é eterna, o pai é imortal”, “Se eu não creio em Deus? Lá crer, creio. Mas acreditar, eu acredito é no diabo”, etc, etc. Amigo, só um retardado mental não percebe a preciosidade que existe por trás da escolha de palavras para compor esses ditos e filosofiazinhas.

E o projeto gráfico da Companhia das letras hein? Sen-sa-c-i-on-al (porra, preciso reaprender a separar sílabas) Uma fonte especial para os títulos das obras, capas coloridas com desenhos em silhuetas translúcidas, porra, fantástico. Só uma ressalva, que é coisa de gente chata eu sei, mas o nome do autor ficou na metade da lateral ao invés de ficar no topo como todos os outros livros. Damm, nigga! No mais, tudo um pitéu: fonte maneira, papel maneiro e o principal: falta de economia com papel. Acho ótimo deixar sempre o título do capítulo numa página a parte, sempre no lado ímpar, coisa e tal. Mostra que você tá nessa pra fazer algo que valha a pena os quarenta e cacetada reais que você gasta no livro.

Comentário final: 262 páginas em papel pólen soft. Pimba!

PS importante: Porra, como esqueci de colocar isso aqui? Eu entrevistei o Mia Couto para a Gazeta, sobre seu livro mais recente “Antes de nascer o mundo”. A entrevista está aqui.

Michel Houellebecq – Extensão do domínio da luta (Extension du domaine de la lutte)

Issa! Mais um domingo de crítica literária totalmente isenta de embasamento e arrogância! E, olha só, falando em arrogância e falta de embasamento, olha o livro de hoje: Extensão do domínio da luta, do francês boiolinha favorito de todos, Michel Houellebecq.

Esse título é um negócio, é ou não é? “E aí, o que você está lendo?” “ah, nada demais, só ‘Extensão do domínio da luta’ do Michel Houellecq…” “Cacete, como você é inteligente!” Sentiu a MORAL do cara que lê um livro desses? Então pode esquecer agora, porque esse título é só pra pegar otário. Sabe o que esse rapazote queria dizer com esse título? Vamos explicar pra você. (Tô me sentindo muito aquele cara do Larica Total que diz “Olha minha cara… Vê se eu não tenho cara de uma pessoa que vai te ajudar?”)

A história é o seguinte: Um sujeito que não come ninguém (isso, tipo o autor), chamado no livro de “nosso herói” (rá rá rá, se achou, hein, Houellebecq? Você não é herói nem de gato magro de mendigo que sobe na árvore), trabalha num trabalho chatão de programador de computador para o ministério da agricultura (se bem me lembro). O sujeito fica lá nas punhetas — mentais ou não — enquanto se toca que é um merdão. Pra sorte dele, ‘nosso herói’ arruma um amigo que consegue ser pior do que ele: um merdão-mór, virgem de vinte e oito anos, que admira o protagonista por ele ser capaz de ter um relacionamento em algum momento da vida dele. Aí, tudo o que eles fazem é para provar que eles são merdões: vão comprar cama de solteiro, um atestado de que você nunca mais vai comer ninguém, saem para dançar, etc etc. Em dado momento, o sujeito se convence que, entre a vasta luta das relações humanas, sejam elas de gênero, classe social ou etnia, a sexualidade é uma forma de poder. Isso, algo que qualquer criança na sexta série que descobre que beleza interior é um conceito altamente falacioso consegue perceber. Por isso, a sexualidade é a ‘extensão do domínio da luta’, sacou? Olha só, hein, tô te ajudando!

Mesmo que você já tenha percebido que beleza põe mesa, Extensão do domínio da luta é um livro muito bem escrito e necessário, seja pela diversão, seja pelas ideias contundentes e, para usar uma palavra que eu ainda não usei, necessárias (d’oh!) nesse mundo Emo que a gente vive. Quando o amigo Cássio (que, de tanto aparecer nesse blog, já virou uma espécie de entidade digna de um compadre meu Quelemén) leu Plataforma, do mesmo autor, fez uma comparação que me pareceu muito boa: de um lado, aquele mundo feliz e bamboocha do filme ‘O Albergue Espanhol’ (alguém já viu esse lixo?), todo mundo dando a mão e dizendo “nós somos um só” e outras coisas igualmente nauseantes; do outro, as ideias pé-no-chão do Houellebecq, um sujeito que sabe bem do que ele está escrevendo. Quer dizer, olha só pra cara dele. Olha essa cara de criança que apanhou demais na escola, que tomava Yakult no recreio, que comprava Fandangos só para pegar o Tazo e jogava o biscoito fora, que foi o primeiro da turma ter um Nintendo 64, que fez amizade com a monitora do colégio (e só com ela). Sumite materiam vestris qui scribitis aequam viribus, já dizia Horácio, aquele simpático dinossaurinho. Em latim (uma lígua morta que morreu quando os dinossauros foram extintos) quer dizer “você aí que tá escrevendo, vê lá se não vai falar merda hein? Escreve sobre um troço que você conheça”. Então amigo, se o Michel Houellebecq quer escrever sobre um cara que não come ninguém, é bom todo mundo parar pra ler, porque o cara tá fazendo pesquisa de campo desde que Biafra tocava no rádio.

Agora vamos falar desse projeto gráfico da maravilhosa Editora Sulina, afinal, se não fosse ela e as maracutaias de programas de incentivo a cultura, embaixada da França no Brasil, patati patatá, essa pérola da literatura francesa não ia chegar às nossas mãos. Infelizmente, esse projeto gráfico ficou muito aquém da editora e do livro. Sério, não tem nada que se salve! NADA! Fonte horrível (sério, já viu Garamond ficar ruim em algum lugar? Só vi nesse livro!), papel mais horrível ainda, capa que mais parece disco do Radiohead, quarta capa vergonhosa com uma foto ridícula do autor e um cachorrinho com a frase “Um romance de aprendizagem: a aprendizagem do desgosto”. Fala sério, né? Desgosto tenho EU quando leio uma porra dessas! Colocaram o código de barras do livro exatamente embaixo dos pés do autor, parece que ele tá num pódio com um ISBN inscrito. E a frase escrita dentro da silhueta dele, que… argh! Sei que reclamando assim tô parecendo mais aquela bruaca do Diabo Veste Prada, mas puta que pariu, vai fazer um livro feio desses lá Martin Claret! E você já viu ficha técnica de livro que não tem nem o título do livro no original? Rá, surpresa pra você que comprar um exemplar desses. Tá certo que o que importa é o conteúdo, mas se fosse assim, para quê se incomodar? Bota um espiral de xerox de esquina e pronto, né? E a orelha do livro? Caralho, algum dia vou transcrever aqui as orelhas de livros mais exultantes que existem pra vocês votarem na mais jogadora de confete. O Juremir, tradutor do Houellebecq, um cara fodão mesmo, gasta linhas e linhas numas loas e boas que se esquece de fazer a sinopse do livro. Seguindo a linha dos Tumblrs: PORRA, Juremir!

Comentário final: 142 páginas embrulhadas numa capa vergonhosa. Inutilizável até pra dar umas porradas em alguém.

Stieg Larsson – Os homens que não amavam as mulheres (Män som hatar kvinnor)

Pode parecer, mas este blog não está morto. Como prometi no último post, continuaria a postar aqui independentemente das agruras do cotidiano. E pode crer, tá agruradasso. Mas enfim, o conselho se reuniu, deliberou e decidiu que doravante as postagens aqui no livrada serão como a fé cristã de 99% da população: dominical. Por isso, espalhem a mensagem, assinem o RSS e fiquem ligados porque muito provavelmente ler isto aqui vai ser uma das únicas coisas divertidas no seu domingo.

E que volta por cima, minha gente! Esse é o retorno mais oportunista da história brasileira desde Fernando Collor no senado graças aos alagoanos burros, desde RPM graças ao Big Brother, desde Los Hermanos graças ao Radiohead, desde Marcelo Tas graças à Band, desde sua mãe graças à drenagem linfática! Pois estou aqui justamente hoje para falar de um livro está bombando neste fim de semana, quando sua adaptação para o ecrã cinza estreia majestosamente nos cinemas de todo o Brasil. Senhoras e senhores, eis o primeiro volume da trilogia Millennium: Os homens que não amavam as mulheres!

Stieg Larsson, o sueco que é a cara do Bill Gates no corpo do Elton John, fez fama com muitas coisas: seu trabalho jornalístico militante, que denunciou os grupos fascistas na Suécia, sua revista tchananã que era promessa de jornalismo verdade no continente dos The Suns, sua obra policial megalomaníaca do tamanho de três Montanhas Mágicas e, mais recentemente, sua morte misteriosa e repentina, que gera especulações totalmente justificáveis na cabecinha da legião de pequenos detetives que ele formou. Desta vez, vamos nos concentrar na obra megalomaníaca. A trilogia Millennium, não se sabe ao certo, poderia ser na verdade uma decalogia. Isso mesmo, há quem diga que o plano inicial do sujeito eram fazer uma Barsa recheada de histórias policiais ao invés de cultura inútil. E vamos combinar que ainda bem que parou no terceiro, porque os livros estavam crescendo assustadoramente a cada novo volume. É como aquela bruaca que escreveu o Harry Potter: escreve um livro de umas duzentas e tantas páginas, faz aí um sucessinho e quando você vê, tem mais seis livros depois desse sendo que o último é maior que o Dom Quixote! (E o pior é que a garotada lê). Por isso, para quem for se aventurar a ler Millennium, não se espante com pontas soltas deixadas para trás: pode tudo ter feito parte um dia de um plano maior (ou não).

Os homens que amavam as mulheres é um policialzinho muito do sem vergonha se você for parar para pensar. É o feijão com arroz, afinal. Está tudo lá: mocinhos obstinados, mocinhas desajustadas, vilões ocultos, pistas conseguidas a muito custo, revelações ao acaso e por aí vai. E o livro nem é tão bem escrito assim, em termos de estilo e erudição. Mas o mérito do sujeito é justamente o talento em fazer você grudar no livro mais grudado do que Eng e Chang. A história flui que é uma beleza e a narrativa te empolga que quando você vê, as quinhentas páginas que te separavam do final do livro viram trezentas, duzentas, cem e acabou. Deve ser esse o segredo de outros best-sellers sem consciência ecológica, tipo Stephen King.

Ora, não vou aqui ficar gastando meia hora para dar a sinopse do livro quando há por aí um filme que lhe conta a história inteira em três horas (três horas, Charlie?). Leia lá o resuminho tosco do Cinemark para se inteirar que eu quero falar de outras coisas.

Muito se falou em Lisbeth Salander desde que o livro caiu nas graças do povo. Caiu sim, claro, nada melhor pra fazer um sucesso com as gatinhas que carregar um livro tão grosso quanto Moby Dick embaixo do braço, com a diferença de ser um livro que você de fato lê. Lisbeth é isso, Lisbeth é aquilo, será Lisbeth uma feminista? Será Lisbeth uma anarquista? Será Lisbeth a bola esquerda do meu saco? Então chega de falar de Lisbeth, foda-se a Lisbeth, vamos falar aqui do coadjuvante que mais parece protagonista desde Michael Madsen em Cães de Aluguel: Mikael Blomkvist, o jornalista empenhado em ganhar uma bolada para resolver o mistério da família de um velhus decreptus magnata. Mikael é pura obstinação: não tem nenhum talento em especial, não é necessariamente inteligente, ou bonito, ou engraçado, ou o que for. Ele é só um cara que se dedica. E, veja bem, você conhece alguns romances policiais escritos nos últimos dez anos? Essa é a matéria primordial de qualquer protagonista do gênero. Chega de Sherlocks Holmes com suas observações precisas, o fim da era Conan Doyle coincide com o fim da era de Peixes e, seguindo em frente, estamos entrando na era de Aquário e Agatha Christie, com seus Hercules Poirots e Miss Mays. Menos 007 e mais Tintin, clamam as massas. Contanto que o rapazote faça seu trabalho e consiga comer sete oitavos do elenco feminino, ninguém está reclamando de nada.

Claro que em Millennium ninguém está reclamando de nada por enquanto porque todo mundo só presta atenção em Lisbeth Salander, mas repare só quando ler o livro: Mikael Blomkvist é tudo o que você sempre quis ser, com a diferença que você pode. É só fazer a porra do seu trabalho direito. Sim, mais ou menos como quando seus atletas favoritos dizem que o segredo do sucesso é comer verdura e fazer lição de casa. A que ponto um escritor precisa chegar para criar a devida conexão com o homem moderno?

E enquanto a Salander, bem, todos gostam dela porque ela sim tem os talentos, ela é o Sherlock na história de um Poirot. Mas, basta um olhar detalhado ante a irrealidade da personagem para o leitor juntar-se a mim no lado negro da força e advogar a favor de Blomkvist. Mas hey, Larsson quis ser melhor que Jesus e agradar todo mundo, colocando uma criação de Conan Doyle e uma de Agatha Christie no mesmo livro. E agora ele está morto. Pense nisso.

Comprei o livro nesse mesmo mês no ano passado junto com o livro do J.M.G. Le Clézio que dei para a Carlinha de aniversário. Tava barato, era uma promoção da livraria que dizia “conheça a Trilogia Millennium, compre um livro maior que você por vinte reais”. Ora, por que não? Todo mundo falando desse cara, vamos ver qualé que é. No final do ano já tinha lido todos e inclusive resenhei o último volume lá na Gazeta do Povo (atenção: contém spoilers), El Dorado particular. Tudo bem que hoje em dia tem aquelas edições “econômicas” da Companhia das Letras, que na verdade, só tem uma capa diferente e sem orelhas, o que só ajuda a danificar o livro mais rápido. Ainda assim, conseguiu adquirir todos os volumes em promoções vantajosas de maneira que todas as edições foram econômicas para mim. Só não está sendo econômico para a parede daqui de casa, que está quase cedendo com o peso da estante. Fazer o quê?

Ah, ainda não vi o filme. O quê? Acha que eu ia fazer uma coisa dessas e misturar crítica de cinema aqui nesse espaço inconspurcável? É muito querer jogar água no chope, pimenta no seu, e etc. Nada disso, estou indo ver o filme hoje. Vamos ver quantas voltinhas Stieg Larsson vai dar no caixão.

Comentário final: 510 páginas pólen soft. Se jogar no prédio do lado, também é terrorismo!

PS: não sei o que houve com o tamanho da letra nesse post. Malz aí!

J.M. Coetzee – Infância (Boyhood – Scenes from Provincial life)

Aê, mais um livro que eu terminei (viram como eu não leio tanto assim?). Tava pilhadão pra ler a primeira parte de Cenas da vida na província, a trilogia do all-mighty Coetzee, já que até então o único livro que tinha sido lançado aqui era o Juventude (devidamente já resenhado nesta bagaça). Claro que agora vou emendar num c-c-c-c-COMBO e ler Verão, a última parte da trilogia que, assim como Infância, foi presente de aniversário de namoro que a amada Carlinha me deu (azar o seu se você ganha camisa, amigo).

Mas uma coisa de cada vez. Vamos tratar aqui primeiro desse tal de Infância. Galera, devo dizer que fiquei decepcionado com a manobra editorial da Companhia das Letras (editora que eu gosto muito e ninguém tá escondendo isso, olha lá o tamanhão da tag dela ali embaixo) pra lançar Verão. Obviamente que se a última parte da trilogia fosse lançada sem que a primeira já estivesse publicada, o livro perderia o sentido e mesmo não venderia muito. Então o que fizeram? Lançaram Infância só em formato de bolso (que isso gente, o cara é prêmio Nobel!) junto com Verão. E, enquanto o fodão José Rubens Siqueira estava traduzindo a boa nova, o senhor Luiz Roberto Mendes Gonçalves traduziu essa obra de uma maneira, vamos dizer… bom, ele devia estar com pressa, afinal. Ok, erros foram cometidos. Por exemplo, fez sentido em língua portuguesa a religião católica ser diferente da religião cristã, pois enquanto aquela é a forma como a conhecemos, esta chamamos por aqui de puritanos, ou presbiterianos, ou mesmo protestantes. E custava colocar um glossário de africâner no final do livro já que se optou por não inserir notas de roda pé traduzindo-as todas? Vamos lá ficar lembrando toda hora o que são palavras como “asseblief”? Desculpaí se a gente não é fluente na língua, valeu? O livro tem apenas UMA, eu disse UMA nota de rodapé, para explicar o que é Karoo. Acho que isso prova pelo menos que um livro de bolso tem uma importância menor para as editoras.

O aparente descaso com essa edição certamente tira o peso da obra que — não podemos esquecer — foi a única parte dessa trilogia durante cinco anos: de 1997 a 2002, quando Juventude foi lançada.   E o livro, aliás, é sensacional, quero todo mundo lendo ele, hein? Impressionante como Coetzee é sincero consigo mesmo, quase cruel e masoquista mesmo, ao descrever seus primeiros anos vivendo em Worcester. Ele, então com idade próxima dos oito anos, se esforça para ser o primeiro da turma e sente muitos medos, principalmente de ser humilhado. A criançada na África do Sul é toda dividia por causa dos africâners. A família dele mesmo é africâner (Coetzee afinal, não soa como um nome inglês, né?), mas eles renegam: falam inglês dentro de casa e o jovem John Maxwell se borra de medo de ser colocado junto aos outros africâneres. Tem de lidar com sua mãe africâner, que ele venera e odeia ao mesmo tempo, e seu pai, um sujeito relaxado e submisso que não sabe gastar dinheiro.

Esse livro é tão sincero que é uma das poucas autobiografias que dá pra você saber da verdade sobre a vida e a formação do caráter do autor. Por exemplo, Infância só comprova o que eu já tinha dito: que Coetzee tem uma relação muito forte com a linguagem. Pensa em cada letra separadamente e no peso que cada uma dá à palavra. E isso com dez ou doze anos. Também podemos observar o quanto ele era esquisitão, como dizem que é hoje, taciturno, sério e excêntrico. Não se relaciona com as pessoas direito e tem muito a considerar sobre tudo. Há de se admirar esse tipo de coisa, o cara é corajoso pra escrever.

Por último, devo acrescentar que esse é um livro triste pra cacete como são todos os outros livros dele. Não espere ver uma infância muito feliz. Aliás, será que esse cara já foi feliz em algum momento da vida dele? Bom, acho que um milhão de dólares na conta por conta do prêmio Nobel devem ajudar a colocar um sorrisinho em qualquer rosto. Como dizem os curitibanos, “fica de boua” aí, Coetzee!

Comentário final: 150 páginas formato de bolso. Faz nem cosquinha.

Um Grande PS: Hoje o Livrada! completa um mês! Aêêêêê. Há de se reconhecer que foi um mês intenso, com 27 posts, 138 comentários (dos quais quase a metade é minha, porque eu respondo os comentários, tudo bem), e, até o momento que eu to olhando aqui, 1.394 visitas (e isso, pra um blog de literatura, é coisa pra caralho, eu acho). Posso dizer com um orgulhinho que cumpri uma proposta relativamente inovadora (um blog de literatura que fosse diário e com uma linguagem informal), e fiquei muito feliz com a aceitação dele. Mas, com um pequeno pesar no coração, devo dizer que, a partir de segunda feira, não teremos mais posts diários. E isso porque, além de ter outras obrigações (entre elas me formar), passarei a escrever sobre literatura de uma forma mais séria em um outro veículo. Mas , como diria Fernando Collor, não me deixem só! O Livrada! pretende continuar até onde der. E se não der não deu e, citando aquela outra dupla de hip hop, se virar, virou (“aí maluco eu to na minha e se virar virou”). Muito obrigado, gente!

Philip Roth – A Marca Humana (The Human Stain)

Conheci Philip Roth por indicação do Irinêo, lá do caderno G (dentre as várias indicações que peguei por lá), e assim que li o primeiro livro do sujeito — no caso, o Animal Agonizante — voei em cima de outros títulos o suficiente para acumular suas obras em uma estantezinha. Hoje Philip Roth está entre meus autores favoritos FÁCIL, amigo (atrás, é claro, do all-mighty Coetzee). E a Marca Humana, embora não tenha sido uma de minhas primeiras leituras do autor (foi o quarto livro dele que eu li), é a obra que mais me chamou a atenção pela orelha.

Trata-se da história de Coleman Silk, um professor sexagenário que, após uma longa vida dedicada à universidade, se vê em desgraça por causa de um mal entendido. É acusado de racismo por chamar dois alunos de spooks (assombração ou, sei lá, algo ofensivo como crioulo), sem saber que eles eram negros. Só falou isso porque os dois nunca apareciam nas suas aulas, mas estavam na lista de chamada, como assombrações (vai lá entender humor de professor universitário). Aí todo mundo cai de pau em cima dele e o sujeito é afastado de seu cargo. Todo tristonho e sem ter o que fazer, o professor começa a comer a faxineira da universidade, que é uma mulher que se finge de analfabeta pra ganhar a pena das pessoas e tem um casamento conturbadíssimo com um veterano da guerra do Vietnã todo sequelado. A história é contada em parte por Nathan Zuckerman, personagem de outros livros de Roth, como o Fantasma Sai de Cena (só consigo me lembrar desse agora).

O livro é grande como eram os livros de Philip Roth quando ele tinha vigor. Hoje em dia só publica livrinho de cento e poucas páginas. A Marca Humana faz parte de uma trilogia que compõe Pastoral Americana e Casei com um Comunista, e até agora, foi o único a virar filme (parece queestão fazendo um filme de Pastoral também). Só que o filme é uma merda completa, a começar pelo elenco. Quem iria botar fé que a Nicole Kidman seria uma faxineira analfabeta? Sei lá, eu vi o filme lá pelos meus doze anos, mas defendo que meu juízo naquela época era bom também. Veja só: eu assisti City Hall com 6 anos e achei uma bosta. Assisti de novo com 20 e também achei uma bosta. Em compensação, assisti Darkman com 5 anos e achei o máximo. Assisti de novo com 22 e achei demais também. Então, tudo bem né? Eu tenho meus critérios…

O livro em si tem uns pontos que não tem pegada, e o ritmo se quebra. O uso da narrativa não-linear, entretanto, deixa o livro bem interessante e a história do passado do professor Silk é foda. Mas, o mais foda do livro, na minha modesta opinião, é a neurose de Lester, o marido da faxineira, que se esforça para não odiar os vietnamitas, indo a um restaurante de comida oriental com um grupo de apoio e tudo mais. Vale muito a pena ler essas cenas.

A edição da Companhia das Letras para esse livro é um pitéu, cara. Tudo que um autor gostaria de ter, eu acho. Se eu fosse escritor, queria umas edições bonitas assim nos meus livros, com logo de assinatura e o caralho a quatro. Papel pólen soft, fonte Electra e capa com fosco e brilhante para fazer efeito. Quer mais o quê?

Eu sei, a resenha de hoje não é das melhores. Embora goste muito dele, não estou muito inspirado para escrever hoje. Hum, leia a anterior, tá bem legal…

Comentário Final: 454 páginas aaaah, hoje é sexta feira!!!

Ismail Kadaré – Abril despedaçado (Prilli i thyer)

Aê, até que enfim repetimos um autor por aqui. Tem um porquê, entretanto. O livro de hoje seria outro do leste europeu, mas, esqueci o livro no trabalho, então, numa manobra editorial relâmpago, o conselho se reuniu deliberou e decidiu que o livro desta quinta feira ensolarada seria o belíssimo Abril despedaçado, de Ismail Kadaré. Sim, aquele que tem um filme com o Rodrigo Santoro. Eu não vi o filme, e, contrariando todo mundo, se um dia fizerem um filme sobre a minha vida, não vou querer o Rodrigo Santoro me interpretando. Quero o Simon Pegg.

Abril despedaçado é um clássico da literatura. Sabe como eu sei? Porque esse post tá com a tag “clássico da literatura”. Mesmo que seja um clássico contemporâneo. É também um livro democrático em sua edição da Companhia das Letras: Tem formato normal e de bolso. Fico puto às vezes quando a editora para de publicar o livro em versão normal pra lançar só a versão econômica. Vou fazer o quê com um quadradinho daqueles depois que eu ler? Calçar o pé da cama desnivelado?

Do que eu estava falando? Ah, sim, é um clássico. A história fala do Kanun, um código de lei de origem patriarcal que prega um loop eterno de vinganças. Uma parada que você acha mutcho loka até descobrir que, na verdade, é muito triste, porque essa merda existe até hoje, e o G1 publicou recentemente uma matéria sobre o assunto (aí G1, tô te ajudando hein? Quem quer rir tem que fazer rir pô! Aí Pantoja! Tem que fazer rir!). A farândola funciona assim: alguém mata alguém. Daí a família do morto tem o direito de vingar o sangue matando alguém da família do assassino, incluindo o próprio assassino (excluem-se mulheres e crianças e considera-se criança o menino que não consegue segurar uma arma ainda). Depois que alguém da família do assassino morre, invertem-se os papéis. E assim ad náusea (náusea mesmo, quanto sangue!). E aí no meio tem uns pormenores que se você quiser saber, vá ler a porra do livro que não vou ficar fazendo resuminho de escola pra vagabundo não, valeu?

E o livro conta a história de um sujeito de uma família que precisa vingar a morte, ou seja, precisa matar alguém. E ele sabe que depois que ele fizer isso, a bola tá no campo da outra família e ele será o próximo a rodar. Já sei, você vai dizer “Ah, a inevitabilidade das coisas… Kafka!” e eu digo “cala a boca, animal!”. Citar Kafka todo mundo sabe, agora sentar pra ler aquela merda de O Castelo, é ninguém, né? O livro trata sim do drama inevitável Gjorg Berisha (esses albaneses se embolam todo na hora de dar nome pros filhos, hein?), mas há uma quebra na narrativa para tratar de outra história, que, embora tenha tirado o tesão da odisséia de Gjorg, é a chave da literatura de Kadaré (aliás, Ismail Kadaré… Ô nomezinho de hippie que ganha a vida fazendo pulserinha e poesia): A viagem do casal Vorps, Bessian e Diana, rumo à região atrasada da Albânia, onde as leis não se aplicam e todo mundo é meio caipira . É, tipo Curitiba. Diana e Bessian, pessoas descoladas da parte boa do país (será que tem parte boa na Albânia?), se surpreendem com a organização familiar baseada no Kanun. Na verdade, só Diana. Bessian fica dando umas de machão. E bom, eis o que eu queria dizer: a literatura de Ismail Kadaré é, metaforicamente falando (metafórico é quando, por exemplo, dizem que o seu voto vale alguma coisa) essa viagem pela Albânia provinciana. O mundo que se descortina e a barbárie presenciada é experimentada —em intensidades diferentes, é verdade — por nós assim como pelos viajantes. Algo similar ocorre em Dossiê H, que resenhei aqui no começo do blog. E nisso se vê que Kadaré é um autor desses que escreve pra fora, pra nós, estrangeiros que graças a deus não moramos naquele cu de mundo (ora, o que dizer de um país cuja maior qualidade é a bandeira?). E justamente isso possibilitou que ele se destacasse e se projetasse internacionalmente, tanto que ganhou filme aqui no Brasil com o Rodrigo Santoro (ó que honra!). Ler o autor é viajar por dentro de uma Albânia despedaçada assim como o abril do protagonista (sentiram essa né, jornalões? Contratem-me!)

Essa edição é daquela bela coleção do autor que eu já comentei no Dossiê H. Minha única ressalva é a foto da capa, de autoria do senhor Walter Carvalho que por acaso é direto de fotografia do filme homônimo (do livro, né, cambada? Não tem nenhum filme chamado Walter Carvalho!) e diretor de alguns filmes baseados em livros, como Budapeste, do queridão de todos Chico Buarque. Sei lá, essa foto ficou granulada pra caralho na camisa, e ela tá sendo levada pelo vento, mas tá presa no varal, e parou numa pose estranha pra caramba, parece que um mendigo invisível tá me dando tchau. E esse azul que vira branco… Essa porra é de polarizador? Curti não, aí…

Comentário Final: 201 páginas em papel pólen soft. Um bom substituto para um pescotapa: o pescolivrada!

Lygia Fagundes Telles – Meus Contos Preferidos

Não há dúvidas de que a senhora Lygia Fagundes Telles é, talvez, uma das escritoras mais originais do Brasil que ainda respiram. E nesse sentido, acho legal as faculdades que colocam livros dessa simpática e perturbada vovó na lista das obras obrigatórias para o vestibular. Em meio à tantos floreios parnasianos da literatura hã… clássica brasileira, as verdadeiras odisséias na maionese dos contos de Telles são um oásis em meio a um strokes. Peraí que não gosto nem de oásis nem de strokes. Digamos então que é como um dead kennedys em meio a um monte de parangolés. Quem a vê, com aquela cara de quem é da turma de oração da minha vó nunca imagina que Lygia escreve coisas como um gato que quer transar com um quadro (ou algo assim).

É um fato também de que a escritora é muito mais reconhecida por seus contos do que por seus romances, e isso, camaradinhas, é honra pra qualquer um que escreve contos. Considerado um gênero menor, o conto é aquela coisa que as editoras “suportam” enquanto um romance novo não aparece (há uns tempos atrás teve um G ideias bem legal sobre isso, busquem lá). E Lygia Fagundes Telles escreveu romances, meus amigos, romances reconhecidamente bons inclusive, como As Meninas (bom xi bom xi bom bom bom) e Ciranda de Pedra, que virou novelinha da Globo. Mas é realmente no conto que ela prova a que veio. Com poucas (bom, às vezes muitas) páginas, ela consegue montar verdadeiras tensões, angústias e qualquer outra coisa que ela queira porque ela é FODA!

E tudo isso pra falar de sua antologia pessoal, intitulada Meus Contos Preferidos. Acho que preferidos não só da autora mas também da torcida do Flamengo. O livro é só história boa, e são muitas: Tem aqueles Venha Ver o Pôr do Sol e As Formigas, ambas de arrepiar os cabelos do cu, WM e Pomba Enamorada, sobre gente louca (sempre um bom tema), Verde Lagarto Amarelo, um conto que parece muito a história dos irmãos Ivan e Sério Sant’Anna (oooopa, peguei na ferida, hein?) e tantos outros… Eu particularmente, gosto muito do conto O Moço do Saxofone. Ri pra cacete lendo a história de um saxofonista corno que mora na pensãozinha onde sua mulher roda mais que pião maluco. E claro, não podemos deixar de esquecer de A Presença, o conto que todo mundo lê e fala “caralho, quem me dera escrever uma coisa dessas…”.

Em se tratando de uma antologia, na qual os contos estão ligados não por um fio de coerência ou temática, mas apenas por laços afetivos, é muito difícil comentar sobre esse livro como um todo. O que dá pra dizer que os contos favoritos são todos loucos, ah, isso dá! E que a edição da editora Rocco ficou excelente, não fosse o maldito filho da puta papel offset. Quando é que vocês vão parar com isso, gente? Parece que a bola agora está com a Companhia das Letras, que está lançando uma coleção bem menininha dos livros da escritora, mas, como este ainda não foi pra lá, tratemos da Rocco mesmo. Tem um cabeço meio escroto, mas a fonte, com os títulos em itálico, quase compensam a falta de tato na escolha do papel (e não venha dizer que é muito mais caro botar papel pólen soft quando um livro é vendido por 45 reais). A capa é bem simples, mas muito legal, tanto que faz par com a outra antologia da escritora, Meus Contos Esquecidos, com cinta dourada. Meu último comentário é uma pequena crítica sobre a qualidade da cola para fazer a encadernação de brochura: a capa soltou do miolo em pouco tempo de uso. E olha que cuido benzão dos meus livros. Puta falta de sacanagem!

Comentário final: 318 pesadas páginas em offset. Vai ficar difícil expressar seus sentimentos com a mandíbula partida em três lugares (Ética e Política da Amizade).

Caco Barcellos – Abusado

Uh, dobradinha não só de literatura nacional como também de literatura sobre o Rio de Janeiro. Legal, vamos propor uma sessão de porradaria: de um lado, o Rio de Janeiro exaltado de Ruy Castro; do outro, o Rio de Janeiro todo errado de Caco Barcellos em sua pièce de résistance (é sim, porra, muito melhor que Rota 66) Abusado – O dono do morro Dona Marta (hoje em dia, o dono do morro é o Eduardo Paes). E, antes que todo mundo fique falando que a visão deste é realista enquanto a daquele outro é idealista, vamos lembrar que o jornalista gatão Caco Barcellos (as meninas da faculdade dizem que o nome do meio dele é aimeudeusdocéu) é gaúcho, e se você me mostrar um gaúcho que gosta do Rio de Janeiro eu te mostro um sujeito que canta Surfin’ Bird com o ânus. Tá, eu eventualmente acabo mostrando a cena do Surfin’ Bird (não, o sujeito não sou eu, tem naquele filme do John Waters).

Falando sério agora, ninguém discute a veracidade e o compromisso de Barcellos em fazer um retrato fiel de um dos Marcinhos VP, o do morro Dona Marta, o traficante que fez história ao depor na CPI do narcotráfico em 2000, sendo um bandido com uma certa consciência social (não vou ficar dizendo que ele é uma versão brasileira de Robin Hood ou John Dillinger que isso é coisa de jacu). Barcellos colou mesmo com o sujeito e expôs em seu livro todos os pormenores da vida do crime no Rio de Janeiro, os tribunais do crime e a hierarquia do tráfico. Isso tudo além, é claro, de mostrar a faceta (FA-CE-TA!) humana de Marcinho, o patrocínio que recebeu de João Moreira Salles, os envolvimentos amorosos com uma aristocrata e muitas, muitas histórias sensacionais melhores que roteiro de filme brasileiro de miséria brasileira. E, sem querer endeusar o bandido, mas o Marcinho VP realmente era uma figura pelo que o livro conta. Particularmente na entrevista que deu para a Veja na ocasião da CPI, quando o repórter perguntou se ele já matou alguém e se ele conseguiu dormir depois, ele respondeu: “Já matei, no confronto. Viu o filme Mad Max? É a mesma sensação. Depois, em algum momento, você tem de dormir.” AHAHAHAHAHAH dorme com essa agora, revista Veja!

É lógico que não deve ter sido nada fácil fazer essa reportagem gigantesca se metendo em uma roubada (hã? Hã?) atrás da outra, inclusive saindo do Brasil junto com o bandido, mas Caco Barcellos nem por um segundo mencionou seu grande handicap: sua fama e complexão caucasiana em companhia contrastante — em um país de contrastes, é verdade — de um negão de olho puxado alto pra cacete. Deve ter sido foda passar despercebido desse jeito, acho eu. E o medinho?

Não sou muito leitor de biblioteca, mesmo porque na Biblioteca Pública do Paraná os bons livros são disputados a tapa. Mas, eis que um dia estava lá vagabundeando, tomando uma coça atrás da outra no xadrez por menininhos de 8 anos, quando passei na sessão de Sociologia e tava essa belezinha de tijolo ali no expositor dos mais requisitados. Aí peguei emprestado, fiz um malabarismo digno de um Danny Ocean com a carteirinha da biblioteca do amigo Murilo Domingos pra conseguir ficar por mais um mês com ele, e acabei terminando a leitura, ora veja, no Rio de Janeiro, numa oficina mecânica enquanto meu pai balanceava os pneus do carro (ou algo assim). E nesse dia, lembro-me de ter lido pelo menos umas duzentas e cinquenta páginas do livro (eita balanceamento demorado da porra!). A leitura é eletrizante, não dá pra largar o livro nem pra espirrar a alergia de papel de biblioteca que eu tenho. Eu não costumo dizer aqui que recomendo o livro ou não, falo apenas que gostei e que é uma opinião minha. Mas para o Abusado vou abrir uma exceção e recomendá-lo fortemente (e espero que com isso esse blog ultrapasse o site de catálogo de prostituta que aparece em primeiro lugar no Google quando se digita “abusado”)

Essa edição da editora Record é fodassa, embora tenha o MALDITO papel offset. Só não gosto muito quando uma editora lança dois livros do mesmo autor em formatos e tamanhos diferentes. Acharia melhor se o Rota 66 fosse igualmente grandão, porém fininho de espessura. Já que é pra fazer coleção, faz uma coleção que orna, né? Não é TOC, não é boiolagem, é só um conselho, ok? De qualquer jeito, como eu ia dizendo, a edição ficou legal, uma foto de capa muito foda, aquele miolinho colorido com as fotos, sempre fundamental e uma capa um pouco mais rígida do que a habitual, embora não possa ser considerada capa dura. Deixem para ler em casa. Ficar carregando essa porra dá torcicolo.

Comentário final: 560 páginas em formato grande e papel offset. Se tacar num prédio, é terrorismo!

Ruy Castro – Carnaval no fogo

Começo essa semana com um livro que acabei de ler. Não se assustem, criançada, eu não leio um livro por dia, mesmo porque não posso. Até então, tudo o que vocês leram nesse blog foi fruto de leituras pretéritas e uma relativa boa memória para livros que eu tenho graças a minha alimentação balanceada (tudo faz peso na balança) e minha abstenção do Gelol da Alma, o álcool (a benção, André Dahmer). Mas o livro de hoje, que ficou muito tempo figurado ali embaixo, no cantinho inferior direito, onde diz “Estou lendo”, finalmente foi concluído e está pronto para meu comentário nada abalizado, ainda mais em se tratando de Ruy Castro, um cara, que, pelo que eu ouvi, não gosta de nós, morlocks da imprensa. Então fica combinada a regra: enquanto não termino de ler o livro que está descrito ali embaixo, vou colocando outros que já li aqui, e assim que terminar algum, corro para a resenha do dia, ok?

Se Ruy Castro tem um talento visível aos olhos, é o de fazer o leitor se interessar pelos seus temas, mesmo que o tema em questão ainda não seja do interesse de alguém. Não me admiraria se houvesse, por exemplo, mais gente que leu o Anjo Pornográfico do que leitores assíduos de Nelson Rodrigues. Ou ainda, leitores que devoraram o seu Chega de Saudade e torcem a cara quando uma bossa nova qualquer toca no elevador de algum prédio chique. E com certeza há mais gente que leu Carmen do que gente que já viu algum filme da gaja mais brasileira aos olhos de Hollywood.

Sua fluidez de narrativa não é diferente em Carnaval no Fogo – crônica de uma cidade excitante demais, publicado pela Companhia das Letras e parte da coleção O escritor e a cidade, uma dessas coleções que eventualmente as editoras fazem para atacar o mercado com a força de quatro ou cinco escritores. No caso, mais três além de Castro: David Leavitt, que escreveu sobre Florença; Edmund White, sobre Paris e Peter Carey, sobre Sidney. Carnaval no Fogo é uma extensa crônica sobre a cidade do Rio de Janeiro, as particularidades e a história dos principais bairros e histórias curiosas sobre seus habitantes. Foi um dos vários livros que li sob a recomendação do José Carlos Fernandes, jornalista da Gazeta do Povo que, entre nós, ganhou a alcunha de o Gay Talese brasileiro. E ó, vale a pena, hein?

Ruy Castro, com esse livro, pode ser considerado talvez o primeiro escritor sustentável que já existiu. Não sustentável no sentido de que o papel do livro foi impresso em papel higiênico usado ou outras maluquices ecológicas, mas sustentável em seu tema. Ora, o sujeito passou a vida inteira falando de Carmen Miranda, Garrincha, Nelson Rodrigues, Bossa Nova e o caralho a quatro mais que tiver passado pelo Rio de Janeiro. Que mal tem então pegar todo o rebotalho dessas pesquisas, dar uma recauchutada em tudo e lançar um livro cujo personagem maior é o pano de fundo de todos seus outros livros? E, ao contrário da sobra da pasta de coca que vira merla e crack, o Carnaval no fogo não tem sua qualidade prejudicada por essa reciclagem de informação. Pelo contrário: a quantidade de informação do livro é tão grande que talvez seja a crônica mais bem escrita sobre uma cidade e seus personagens históricos. Parece que Ruy viveu esses anos todos no Rio e ficou só olhando quinhentos anos de história para escrever essa pequena obra. Na verdade, tem horas que ele exagera — o leitor ideal dele nesse caso teria que, além de ficar de falcão na história brasileira, obter conhecimento de mundo referente à história da Europa e das navegações de uma maneira geral. Então cuidado se você for um desses que se perde em meio a muitos nomes e datas, o Carnaval no fogo pode foder sua cabeça bonito! Mas calma, muito provavelmente é só impressão minha. Acho que, às vezes, ele só usa algumas referências obscuras pra não perder o ritmo e não pecar por falta de adjetivação. Com seus leitores, Castro não se incomoda se alguns são burros. Com os jornalistas, entretanto e já dissemos, parece que a banda toca diferente…

A edição da Companhia das letras é simpática, então palmas para o Raul Loureiro, seu idealizador. Com ilustrações de traço livre de Felipe Jardim, papel pólen soft de praxe e fonte Filosofia, uma fonte com as serifas redondinhas. Achei irada. E o melhor: encadernação e acabamento em capa dura, que, pelo preço dos livros hoje em dia, devia ser praxe também.

Comentário final: 254 páginas pólen soft com capa dura. Bom pra quando você não acha o martelo…

John Fante – 1933 foi um ano ruim (1933 was a bad year)

Nada melhor para terminar a tal da semaninha light com um livro RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRASO. Eu poderia colocar um livro beatnik, mas seria óbvio demais. Poderia colocar Pergunte ao Pó, de John Fante, mas também seria muito óbvio. Então, por que não pegar um lado B desse autor que foi o precursor dos beats (segundo o papa-beat Charles Bukowski) e que, ao mesmo, do meu ponto de vista, resume toda sua obra como nenhum outro livro seria capaz de fazê-lo. Sim, porque John Fante sabe escrever sobre uma coisa só: ele mesmo e sua família de italianos pobres.

1933 foi um ano ruim é uma dessas histórias tristes e que, assim como a sua quadrilogia (da qual Pergunte ao Pó é a terceira parte), trata das frustrações de um jovem chamado Dominic Molise, de 17 anos, que tem um sonho apenas: ser um grande jogador de baseball. Talento não lhe falta. Tem um daqueles braços campeões, que no livro, é inclusive um personagem a parte — volta e meia Dominic descreve os comportamentos autônomos de seu Braço (assim, chamado com letra maiúscula).

(Aliás, um parêntese: eu particularmente odeio esses filmes americanos de baseball em que o menino taca uma bola forte e o treinador fala “Santa Maria mãe de Deus, olha só o braço daquele garoto! Ei, filho, o que acha de jogar na liga?” “Não vou te decepcionar, treinador” brrrrrrr)

Como eu dizia, Dominic trata seu braço melhor do que trataria a um filho. O mantém aquecido com um unguento e atende aos anseios do membro (peraí que é o braço mesmo) mais rapidamente que os seus próprios. Mas Dominic é pobre, filho de imigrantes italianos paupérrimos que moram no gélido estado do Colorado. E por isso, precisa ajudar o pai, cujo maior patrimônio é uma betoneira. A saga de Dominic, que tenta escapar de sua rotina massacrante para ir para a Califórnia tentar ser alguém é dolorosa e bate fundo no peito. Qualquer frustração dessas de abrir mão dos próprios sonhos descrita num livro, de Anne Frank a Holden Caulfield, arrebanha multidões de leitores que sofrem junto (nunca vi esse povo, hein?). E Fante sacou isso antes de todo mundo, porque explorou essa mesma dor em quase todos os seus livros. Acho difícil alguém ler o livro e não chegar à última página com um aperto no peito. Final dramático, sem essas palhaçadas de beatnik de terminar o livro com frases esdrúxulas como “fumei o cigarro e olhei o mar”. Final tem que ser final mesmo, porra!

Muito embora já tenha passado da idade de ler literatura beat, guardo muitas boas recordações desse livro, pelo qual tenho um carinho. Inclusive o indico pra qualquer Zé Mané que insiste nessa literatura pobre de ideias e estilo. Aliás, acabei de incorrer no erro de chamar John Fante de beat. Tudo bem mesmo, afinal, não fossem os beats para divulgar sua literatura, Fante passaria despercebido aos olhos dessa garotada que só gosta de música, sendo ele um beat honorário, como um tiozão que joga bola com a molecada. Mas reconheço que sua obra, além de curta, é repetitiva. A foto também é repetitiva. Não aguento mais aquela foto horrorosa que tem ele de lado com o cabelo meio despenteado, por isso peguei uma foto bem escrota dele com um cachorro pra mostrar que qualquer coisa é melhor do que aquilo. Sério, que imbecil tira uma foto naquele ângulo? No mínimo, um anão incompetente com a câmera.

A edição do livro que eu li é aquela pocket da editora L&PM (que, segundo o Chico, são de alguns parentes distantes dele. Tô acreditando, hein, Chico?), que é o formato favorito para publicar beatniks (olhaí, falei de novo). E, convenhamos, a intenção de uma editora pocket não é fazer algo muito produzido. É, antes de tudo, divulgar o conteúdo. E por isso a capa do livro tem uma diagramação péssima, uma foto escrotérrima (provavelmente tirada pelo mesmo anão incompetente), e inclusive, propaganda de outros livros da editora no final. Se liguem, porra, ninguém de respeito faz mais isso desde 1980! E no começo, na parte de leituras afins, adivinha: só dá Bukowski e Jack Kerouac. O tiozão tá mesmo enturmado com a garotada. Não bastasse, papel offset pra tirar a gente do sério. Sorte da editora que eu não era o fresco que eu sou hoje pra livro na época que eu li 1933. Eu, seguindo o nome, realmente guardava o livro no bolso das minhas calças de mano. É, sorte deles.

Comentário Final: 135 páginas offset formato de bolso. Xi, marquim…