Orhan Pamuk – Neve (Kar)

orhan pamukBom dia, amiguinhos, já estou aqui, emendando um prêmio Nobel no outro neste fim de ano maluco de black fridays e adjacentes. O livro de hoje é um calhamaço e, sinto dizer, é o último deste ano resenhado aqui. Não fiquem tristes, porque a razão do recesso não é outra senão a nobre construção de um banco de resenhas que me faz muita falta. É um pouco frustrante para um sujeito que escreve periodicamente sobre livros ter de escolher suas leituras pelo tempo que elas vão consumir, para termos material toda semana, e qualquer um que entenda um mínimo de literatura sabe que isso não pode e não deve ser critério para ninguém, muito menos para um cara como eu, que procuro boas leituras sempre. Ter um banco de resenhas vai me colocar um pouco à frente das minhas postagens do ano que vem (assim espero) e isso vai me possibilitar pegar um livraço vez ou outra sem medo de gastar mais de duas semanas na leitura dele. De modo que entendam e não fiquem tristes por eu não ser uma máquina de ler livros. Tenho meu trabalho, minhas bandas, minha musculação, minhas propagandas de cueca para fazer, então achar tempo para ler um romance aqui fica muito difícil. Eu consigo, mas não com a qualidade que gostaria. Por último, ninguém tem saco pra ficar lendo resenha no fim do ano, já que todo mundo só está pensando em alugar casa na praia, comprar carrinho pras crianças e fazer piada de fim de ano com suas famílias pelancudas. De modo que, no fim das contas, não vai fazer muita diferença mesmo.

Mas vamos falar de coisa boa, vamos falar de Neve. Neve é talvez o romance mais popular do turco Orhan Pamuk, e vocês logo vão sacar o porquê. Pamuk tem essa rara habilidade nos escritores de hoje de prender a atenção do leitor com um livro de qualidade, que não gire somente em torno de ação ou intriga e suspese, embora seja muito verdade que ele comumente se aproprie de elementos policialescos para jogar a primeira isca. Resumir o romance a isso — uma trama policial –, entretanto, é um pecado digno de fazer você queimar no mármore do inferno.

A verdade é que Pamuk escreve sobre as complexidades de ser turco. A dicotomia de ocidente e oriente, de religião e estado, de fundamentalismo e secularismo e o grande dilema — para onde vai a Turquia no mundo globalizado — não estão muito longe da gente, mas vamos por um momento parar de ser paternalista e tentar fazer vocês gostarem de algo só porque a coisa se aproxima da sua realidade. Não! Experimente também o exotismo, experimente se preocupar com questões que não têm nada a ver com você de vez em quando, experimente a compaixão distante. Você vai ver, vai ser legal.

Em Neve, essas questões estão mais presentes do que nunca. O mocinho é Ka, um poeta quase quarentão que, após morar um tempo na Alemanha, vai à diminuta, pobre e esquecida cidade de Kars investigar o suicídio de garotas novinhas que foram obrigadas a descobrir a cabeça para entrar na escola em nome do Estado secular. O suicídio é o pecado-mor do islã, embora você tenda a não acreditar nisso dada a quantidade de homem-bomba que tem por aí, mas acredite, é verdade. Pois bem, o manto, que representa o islã político, representa também a visão descompassada do país com os movimentos sociais que estouram pelo mundo, mas o suicídio continua misterioso justamente por ser um pecado que garotas tão religiosas a ponto de morrer por vergonha do secularismo não cometeriam.

Mas Kars também é a cidade de Ipek, sua paixão de escola, com quem pretende casar. Rá, tem que ter romance, nem só de política um livrão desse sobrevive, não é verdade? Mas é aí que entra a genialidade de Pamuk, que pega o papel passivo da mulher que só faz romance enquanto os homens fazem política e inverte a coisa: os homens são uns bobos apaixonados e as mulheres é que são as políticas por trás de todos os atos que antecedem um golpe de Estado que toma conta de Kars.

orhan pamukNo meio disso tudo, Kars cria poemas como há muito não criava, e tudo se cria a partir da neve, uma constante na narrativa que a cada hora representa uma coisa, mas que, ao fim e ao cabo, é a expressão máxima da existência de Deus tanto em sua perfeição quanto em sua paz serena que acalma e perturba ao mesmo tempo. A neve desperta poemas que parecem surgidos de outro plano, transforma ateus em religiosos, traz o isolamento e pontua a narrativa com a lembrança constante de que Neve é um romance sobre uma vida que busca sentido após quase 40 anos de existência.

Personagens memoráveis nesse livro, minha gente. Sendar bei, o jornalista que publica notícias que ainda vão acontecer e que não acredita no que escreve; Azul, o terrorista clandestino que tem verdadeiro amor por sua própria imagem de terrorista; e Fazil (i sem pingo aqui, não sei qual é o significado,mas acho maneiro), o estudante que às vezes acredita demais no etéreo, e às vezes não acredita em absolutamente nada.  Todos eles, de alguma forma, representam a personalidade esquizofrênica da Turquia, já comentada antes. O resto é história, e a história deve ser lida e não contada num blog mequetrefe que nem funciona direito em dezembro.

Ah, esqueci de dizer uma coisa. O narrador da história também é um escritor chamado Orhan, que também é escritor. É engraçado como o Orhan da história se mistura ao escritor Orhan Pamuk, que às vezes não sabe do que não viu e às vezes é onisciente o bastante para saber os detalhes mais íntimos de momentos insignificante da vida de Kars, de quem é amigo. Um bom joguinho é tentar descobrir qual Orhan narra qual capítulo, mas isso é só pros nerdões de plantão.

O livro é um livrão, em formato grande mesmo, da Companhia das Letras. Tem o selinho do Nobel que encarece tudo e uma foto maravilhosa na capa. Comprei esse pra digníssima num sebo em que entramos para escapar da chuva e ele estava praticamente intacto pela bagatela de 20 dilmas, mas ainda tem bastante desses nas lojas por aí, então não se preocupem. Fonte Electra e papel pólen pra dar aquela suavizada no material. Resumindo, o tipo de livro que é difícil largar.

Relaxa que ainda boto mais um post aqui de fim de ano falando de mais coisas. Semana que vem ainda tem mais!

Comentário final: 482 páginas de puro calibre turco. Maktub.

Cormac McCarthy – Todos os Belos Cavalos (All The Pretty Horses)

All the pretty horsesTodo mundo que me lê aqui sabe que eu começo falando dos livros pra depois falar da edição. Mas vou inverter a pirâmide hoje (tá ligado em pirâmide invertida? É gíria de jornalista pra prexeca, só quem é malandro sabe) e começar falando da edição. Todos os Belos Cavalos foi lançado pela editora Planeta DeAgostini, que fez a coleção Grandes Escritores da Atualidade, uma dessas coleções de banca de jornal que você compra quinzenalmente pra dar a chance do jornaleiro de ter carne na ceia de natal dele. De modos que esse livro, caso você goste do que eu vou escrever aqui hoje, vai ser meio difícil de ser encontrado, porque a Companhia das Letras, que é quem o publica, deixou esgotar a edição e nem sequer se dignou a fazer uma reimpressão desse que é top 3 das minhas leituras desse ano.

Enfim, a coleção foi lançada em 2003/2004 e era vendida a R$16,90 cada exemplar. Só que os caras fizeram uma coleçãozinha matadora, com títulos como Reparação, Abril Despedaçado, Voragem, Pastoral Americana, Ruído Branco, Todos os Nomes, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Os Versos Satânicos, Santa Evita, Quando Éramos Jovens, Os Cadernos de Dom Rigoberto, Se Um Viajante de Uma Noite de Inverno, Os Mímicos, Coelho Corre.. ah, é demais, cara. Quando descobri isso fiquei meia hora batendo a cabeça na parede me perguntando onde diabos eu estava com a cabeça em 2003 que passei por várias bancas de jornal e não comprei nada disso. Enfim, passou e esse livro foi resgatado pela digníssima num sebo via Estante Virtual, anteriormente propriedade de um certo Ariel R. Pinheiro, que, vou dizer, deu mole ao vender essa joia provavelmente pelo valor de um maço de cigarros. A coleção é caprichada, com capa dura, uma foto boa pacas na capa e de resto, a mesmíssima tradução da editora original, que provavelmente fez com capricho. Recomendo, e agora que vocês já estão ávidos pela coleção, vamos ao livro em si.

Todos os Belos Cavalos é o primeiro volume de uma trilogia chamada “The Border Trilogy”, ou a Trilogia da Fronteira. São romances ambientados na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Seguem a esse o A Travessia (também esgotadão na editora, nem adianta chorar) e Cidades da Planície (talvez esse ainda tenha alguma coisa), os quais certamente estão entre as minhas próximas leituras, todos devidamente providenciados. Por hora, posso falar do primeiro. O livro conta a história de um sujeito chamado John Grady Cole, que veio de uma família de fazendeiros do Texas e cujo sonho maior é… tchanam! Ser fazendeiro. Mas justo quando chega a vez dele de assumir, o avô morre e o resto da família acha por bem vender a droga da fazenda que nunca deu dinheiro mesmo. Ele luta com isso o quanto pode, mas quando vê que não tá dando pé pra ele, resolve pegar um cavalo junto com o primo, de sobrenome Rawlins, e partir pro México, sem nenhum plano muito mais elaborado na cabeça. E aí ele chega numa fazenda mexicana, resolve domar os potros selvagens, se apaixona pela filha do hacendado e se mete em altas confusões, ao estilo faroeste cabôco do McCarthy. Seus personagens são todos sábios taciturnos, ninguém fica desfiando muitas teorias e ninguém vacila  com os sentimentos na frente de ninguém. Onde os fracos não tem vez.

The Border TrilogyA sacada é que tudo isso se passa no ano de 1949, se fiz as contas direito, ou seja, algum tempo depois da época das grandes diligências e da época em que as pessoas faziam viagens de cavalo. A guerra já tinha acabado, “Guerra Fria” era um conceito moderno, como “sustentabilidade” é pra gente hoje, o bebop tocando nas vanguardas e tudo mais, e o cara viajando a cavalo. É justamente essa a graça dos romances desse senhor. Sabe quando você vê essas propagandas patéticas do governo incentivando as pessoas a lerem dizendo “quando você lê, você se transporta para outro mundo”. Bom, isso é balela pra 90% dos livros que eu leio, mas não para os livros do Cormac McCarthy. A parada sempre vai numa vibe meio Red Dead Redemption, meio Sergio Leone, meio propaganda de cigarro (galera que é mais novinha que lê esse blog nem deve saber do que eu tô falando). Bate uma sensação de liberdade, um isolamento do tempo, um despreendimento dos problemas mundanos em favor de questões existenciais.

Porque essa é outra beleza da literatura de McCarthy. A ideia de que mesmo entre pessoas de vida mais simples, ainda há a inquietação cósmica, a vontade de entender o ininteligível, o desassossego da alma e o debate metafísico. Talvez até com mais propriedade, ante o contato maior com a vida do que nós, citadinos bunda-moles. E talvez por isso também o livro faça referência, em seu título, apenas aos cavalos, esses seres que são tratados com todo o carinho e veneração por seus donos. Os personagens de Todos os Belos Cavalos conhecem histórias de cavalos famosos, leem sobre cavalos, discutem sobre cavalos, comparam cavalos, matam e morrem por cavalos. E os cavalos continuam bichos, não são repletos de humanidade como em um certo filme do Spielberg que deveria inaugurar o Oscar de Melhor Cavalo, mas também nem por isso são desprovidos de profundidade ou vida. Entendem os homens, criam laços com eles, mas não se furtam a arroubos de susto e surpresa ante suas atitudes. Ainda são apenas cavalos, mas paradoxalmente são muito mais do que isso.

O que é estranho (e não deixa de ser uma qualidade) é o apelo comercial desse livro, que poderia muito bem virar um drama de faroeste moderno nas mãos de um charlatão de Hollywood. Acho que isso é uma técnica de sobrevivência dos escritores nos Estados Unidos. Nunca fazer um livro puramente contemplativo ou sisudo demais. Sempre tem que dar uma brecha pra, caso surja o desejo, adaptar a coisa pro cinema. Deve ser bem difícil conviver com esse povo ignorantão que mora nessa terra esquecida por Deus por causa disso, mas por outro, a coisa trabalha como um darwinismo literário: quem se sobressai, vira sucesso de crítica e público, e isso nunca vai ser algo ruim em tempos de Quentin Tarantino.

Por fim, Todos os Belos Cavalos pode ser o livro que vai te distrair durante um final de semana ou uma leitura que vai te marcar pela beleza, singeleza e profundidade. Assim como num finado programa da Globo, você decide.

Comentário final: 272 páginas do mundo de Marlboro. Oh yeah!

Michel Laub – O Gato Diz Adeus

o-gato-diz-adeus-capaAh, os livros curtos! O paliativo dos críticos procrastinadores com metas a cumprir, sempre à mão e, graças à má vontade desse país pra ler as coisas, cada vez mais fácil de encontrar. Eis que estou aqui, enrolando-me com um livro há mais de um mês — algo imperdoável, sei bem eu, mas às vezes a vida é mais do que livros e pede atenção a outros assuntos, mas só às vezes — e chego ao fim de semana sem ter absolutamente o que resenhar. Minhas leituras do passado já estão num canto um tanto inacessível do meu cérebro, e temo comprometer o julgamento com algo que não esteja fresco em pelo menos dois meses. Mas aí vem esse O Gato diz Adeus, quarto romance do gaúcho Michel Laub, com suas 79 páginas, encarando-me num domingo à noite como quem diz “sério mesmo que você é preguiçoso a esse ponto?”. E eu provo pra esse safado que eu não sou, ora bolas. Aqui dentro bate um coração que anseia por mais atitude, e não posso continuar negando meu coração por muito mais tempo, porque uma hora ele cobra seu preço. Então cá estou com essa obra que talvez seja a mais curta já tratada nesse blog cujo nome evoca os grandes e volumosos clássicos capazes de injuriar uma fera ferida no corpo, na alma e no coração. E atenção, corja: tem spoiler.

O Gato Diz Adeus é um desses livros que você acha que entende até que descobre que não entende, se frustra, tenta voltar umas páginas, tenta nadar corrente acima ante o turbilhão de jogos metalinguísticos que o autor joga na sua cara, mas quando você vê, já está imerso em camadas e camadas de texto, tempos pretéritos mais-que-perfeitos, perfeitos, imperfeitos, complicados e perfeitinhos. A história é basicamente uma, que anda até o ponto em que você começa a lê-la, e depois anda de novo até o ponto em que o que você achava que era literatura despropositada é meta-literatura, escrita por um dos personagens. Pois bem, são três personagens, e cada um deles narra um pouquinho do livro. Um parágrafo ou mais, digamos: Sérgio, um escritor com mania de dominação e um pezinho no swing (não aquele swing que tem música, o swing de casa de swing), Márcia, a mulher coitadinha desse sujeito pintado em pinceladas grossas e esparsas como um ser asqueroso ao extremo, e Roberto, um professor universitário que se torna amante de Márcia depois que Sérgio arma o palco pra oferecer a mulher pra ele. E daí tem um gato, que Márcia oferece pro Sérgio numa tentativa de se reaproximar da vida dele uma vez que as coisas meio que acabam. Meio que acabam, esse período conturbado sem fronteiras definidas.

A história vai rodando assim, tipo um jogral: uma hora fala um, outra hora fala outro, e volta e meia alguém dá a entender que o que um disse foi ouvido ou lido pelos outros dois personagens, que comentam a mesma passagem, por assim dizer. No final do livro, Laub diz que o livro “deve algo”, em estrutura, temática e etc, à Caixa Preta, do Amós Oz, que também é um livro sobre separação e que também tem um personagem que é um escritor e é um escroto e que também tem taras sexuais variadas. Além desse, o Enquanto Agonizo, do Faulkner, e A Chave, do Tanizaki, esses dois sobre os quais nada sei porque não li e não cheguei perto ainda (difícil pra caramba achar A Chave, todos os bons escritores comentam esse livro, mas cadê na loja?). Mas enfim, só pra vocês saberem isso aí, porque achei honesto da parte do cara listar sua… hã… bibliografia inspiracional, e porque vai que vocês leram mais do que eu nisso aí e têm outras coisas a acrescentar, né? A Caixa Preta também é contada de forma epistolar e alternada. Ou esse seria o Meu Michel? Ou o Caro Michele, da Natalia Ginzburg? Gente, é muita coisa na cabeça do cidadão, me desculpem.

Michel Laub por Renato ParadaO mais legal do livro é uma personagem que aparece lá pelas bandas da segunda parte, intitulada “Um Grão, Uma Gota d’Água”, que é uma leitora do romance que o Sérgio escreveu, expondo sua história de devassidão e dominação. A mulher, uma estudante de letras na universidade onde o personagem dá aula, já vai esquentando os motores da crítica do livro, vai comentando as passagens e levanta os pontos altos do livro. E você pode pensar que o Laub talvez seja um desses caras realmente preocupados em fazer o leitor entender as minúcias da história, todas elas pensadas, talvez seja só uma brincadeira com esse fato, e talvez seja ainda a criação de um leitor ideal que dá suas pinceladas sobre a própria obra, mas aí a personagem vai aos poucos se sobrepondo à trama e se imbuindo de significado. Não vou dizer mais, mas sei que achei a parada bem inventiva, para o bem ou para o mal.

E no final, aquela pergunta que precisa ser respondida para as pessoas que vem aqui: Esse livro é sobre o quê? Bom, eu diria que é sobre isso: um cara devasso e cruel e o jogo que ele monta pros outros, e como cada um reage a tudo isso. É uma história de submissão, dominação, ciúmes, sentimentos complexos ligados ao voyeurismo e à troca de casais, tudo numa polifonia que, é preciso dizer, peca por não criar vozes próprias, diferentes umas das outras. Mas fora isso, é o que já comentei aqui, e quem gosta de corrida de fundo pode muito bem pegar esse livro num dia preguiçoso. E não precisa se incomodar em achar um marcador de páginas.

Essa capa modernética e neonzótica da Companhia das Letras me faz supor que o objetivo deles com o Laub é fazer uma parada completamente diferente da outra em cada um dos livros dele. Mas por dentro é aquele padrão: Electra em pólen bold pra ver se o livro para de pé com uma gramatura boa. Gosto de capas gráficas, elas dão uma certa aura de grandiosidade e de edição definitiva do livro, sem falar que parece que o cara não conseguiu traduzir em imagens a história, o que é sempre um ponto positivo pro autor.

Comentário final: 79 páginas em pólen bold. Faz machucadinho não, tio.

Ismail Kadaré – O Jantar Errado (Darka e gabuar)

darka e gabuarToda vez que eu faço um post sobre o Ismail Kadaré aqui nessa espelunca eu perco cinco fãs no Brasil e ganho vinte na Albânia. Até hoje tem gente de lá que entra aqui todo dia procurando pelos livros desse simpático sujeito triste que tem a responsabilidade moral de colocar seu diminuto país no mapa e na rota da literatura. O Jantar Errado é seu mais recente romance mas, veja bem, é de 2009. Contudo, não quero ninguém reclamando do delay de quatro anos. Primeiro, porque esse delay é bem menor que o delay do cinema da minha vila, que acredito estar exibindo Titanic por esses dias. Segundo, porque se o Brasil não tivesse Bernardo Joffily, vocês estariam chupando o dedo ou se contentando com traduções indiretas do francês. E tradução indireta é que nem usar duas camisinhas, vocês sabem. O nosso grande Joffily, que até onde sei, também é editor do portal Vermelho.org (a esquerda bem informada, diziam eles), talvez seja nosso único tradutor direto do albanês, mas a sorte dele é que a demanda também não é muita, porque a gente só conhece um escritor da Albânia. Então tá tudo certo.

Pois bem. De todos os livros que eu já li do Ismail Kadaré, O Jantar Errado foi o que eu menos gostei. E vejam que eu tenho a envergadura moral mesmo para espinafrar um auto que eu gosto e conheço muito. Quer dizer, para ser justo, li seis livros dele: Abril Despedaçado, Dossiê H, O Acidente, Uma Questão de Loucura e Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek. Então estou assim, no limiar entre conhecer pouco e conhecer muito da obra de um autor. Gosto de pensar que estou no caminho certo. Ok, então, se a gente pegar três desses livros – Dossiê H, o Acidente e O Jantar Errado – e colocá-los nessa ordem, cronológica (Abril Despedaçado é de antes desses, Uma Questão de Loucura não conta porque é autobiográfico e Lul Mazrek pode ser um ponto fora da curva, vai), dá pra perceber que o autor foi “evoluindo” numa linha de distanciamento do núcleo da narrativa em favor de um sobrevoo geral sobre toda a ambientação do romance. Esse livro é o ponto máximo desse movimento. A história começa falando de dois médicos, o Guramento Grande e o Guramento Pequeno. Os dois tem o mesmo sobrenome, e por causa disso os dois são alvo de comparação para qualquer coisa. Primeiro erro já tá aí. Que introduçãozinha sem vergonha, hein? Conheço gente que faz oficina de escrita criativa que bola coisa melhor do que isso. Bom, mas aí o Guramento Grande ganha mais destaque na história quando o exército nazista (ah tá, o livro se passa na segunda guerra, alright?) invade Girokastra, que é onde se passa o livro e também onde Kadaré nasceu (ele até cita uns parentes dele como figurantes no livro), e o general malvadão vai pra casa do Guramento pra um jantar, porque ele estudou na Alemanha e eles se conheceram lá. O exército prende uma porrada de gente logo de cara como represália por um levante de resistência contra os nazis na entrada da cidade e ele programa a execução de todos eles como forma de retaliação. E aí o Guramento pede pro general malvadão liberar os presos, e ele realmente libera. Só que ninguém sabe a custo de quê, e tampouco o que aconteceu nesse jantar misterioso.

Ismail Kadaré 4Pronto, a partir daí a história entra numa pira meio David Lynch de não explicar direito o que tá acontecendo e ainda conseguir a proeza de te deixar com cagaço da história. Porque aí tem chantagem, gente que não é gente, gente que já morreu e não sabe, enfim, toda a sorte de reviravoltas digna de um Revenge (vocês assistem a esse programa? Recomendo pra quem gosta de ver barraco e climão) que não necessariamente deixam o livro mais interessante de se ler. Isso porque existe algo na literatura do Kadaré que a torna extremamente dispersiva. Não ruim, apenas… dispersiva. Ela requer uma imersão maior na leitura, e ele cobra isso de você com passagens aparentemente insignificantes que se tornam maiores depois.

E agora vocês me perguntariam, “tá, Yuri, mas o que isso tem a ver com o lance do sobrevoo geral sobre o ambiente do romance?”. E eu respondo. Tem a ver que praticamente a primeira metade do livro é narrada de longe. O narrador onisciente passa pela vila fazendo um recorte dos melhores boatos que a população faz sobre a invasão, o jantar, os nazistas e tudo mais, e se constrói isso: um clima geral de vozes anônimas e aparentemente coletivas. Só que você, leitor esperto que lê o Livrada!, sabe que o recorte do narrador já é parcial por si só, e esse clima já está comprometido desde o começo, até porque não aparecem personagens com cara para confirmar esses boatos depois. O resultado, na minha modesta opinião, é porco, e, de novo, saberia encontrar gente em oficina de escrita criativa que bolaria um jeito melhor de retratar o clima da cidade.

Já pelo meio do livro você já flagra como ele vai acabar, se você é desses para quem o mistério é parte principal da experiência de ler um livro. E acho que pro Kadaré é mesmo parte principal, porque o cara discute muito pouca coisa além do romance. E isso é outra coisa que eu não gosto. Acho que ele já foi muito mais preocupado em mostrar as contradições e as idiossincrasias do povo e do país, e agora ele resolveu fazer um fast-pace mixuruca. Fast-pace mesmo, li em um ou dois dias. E o final em si, bem, não é lá essas coisas. É só mais um final triste de um livro do Kadaré que certamente não será sua obra mais lembrada.

Ainda assim, o livro, enquanto objeto, continua uma obra muito bonita graças a não-tão-caprichada-edição-da-Companhia-das-letras-que-ainda-assim-é-mais caprichada-que-qualquer-livro-que-você-acha-por-aí. Papel de boa gramatura, fonte Electra, a minha favorita e uma capa que ainda que não seja inteiramente do meu agrado, orna com a recente mudança no planejamento gráfico dos livros do autor e exatamente por isso me agrada.

Comentário final: 164 páginas de puuuuuuura boataria.

José Luís Peixoto – Livro

José Luís PeixotoEi-nos, mais uma vez, a passar vergonha ante a onipotente literatura portuguesa. Camões, Eça de Queiroz, Almeida Garrett, Fernando Pessoa, Saramago, say no more. Mesmo que esses caras estejam fora de circulação há algum tempo, e que a grande maioria da nova safra de escritores lusos seja tecnicamente nascida na África, ainda há alguns que mandam bem o bastante para acharmos que o fenômeno é perene, mesmo que eventualmente comece a ir mal das pernas. Mais ou menos a relação do resto do mundo com a Seleção Brasileira de Futebol (SBF) (espero que seja essa a sigla), ou seja, só a gente aqui sabe a quantas anda esse futebol mixuruca.

De qualquer forma, temos cá conosco hoje o senhor José Luís Peixoto e seu livro meta-intitulado “Livro”. Ora, isso é sintomático de um povo que já se cansou de inovar na linguagem e agora resolveu subverter os títulos também. Mas rá, tem um porquê o livro se chamar Livro. Mas se eu explicar com todas as letras vou estragar o prazer da sua leitura, afinal de contas, o sujeito que resume seu título a uma palavra quer muito que você descubra porque aquela palavra é mais importante do que todas as outras dentro do livro.

Pois muito bem, vamos à história: Ilídio (não confudir com a musa Lídio Matheus) é um garoto abandonado pela mãe com uma mala e um livro. Rá, aí já se começa a desvendar o mistério, afinal de contas, há uma simbologia que um livro e uma mala compartilham, e isso tem a ver com todo o resto, faça as contas de cabeça para saber que tô cansado de ficar dando tudo mastigado pra um povo preguiçoso que chega aqui pelo Google querendo cópia de trabalho de escola pronto pra mandar pra professora (se não acredita nisso, dá uma olhada na primeira resenha desse blog, Grande Sertão Veredas). Bom, de qualquer jeito, o protagonista garoto é criado pelo pedreiro Josué, que felizmente é um pedreiro português e não um pedreiro de Feira de Santana, a Meca da pedofilia (brincadeira, amigos baianos, só fiquei traumatizado com o noticiário insistente). Abandonado pela mãe, criado pelo pedreiro, o sujeito desenvolve uma relação platônica com uma moçoila chamada Adelaide. Entendo que Adelaide parece ser um nome comum em Portugal, em especial durante um certo período do século 20, mas toda vez que algum portuga me fala em Adelaide eu lembro não apenas de “Adelaide, Minha Anã Paraguaia”, música da finada e esquecível banda Inimigos do Rei, cujo narrador/poeta se diz jogador de basquete português,  mas também do Bruno Aleixo na escola acusando a “Adelaide, aquela matulona”, de maneira que fica difícil pra mim transformar a história numa coisa mais séria, fora de uma comédia pastelão. De qualquer jeito, Adelaide é a Lenora de Ilídio, e os dois começam um flerte quando rola uma migração massiva pra França e a “Delaide” vai junto, e o Ilídio vai atrás porque, enfim, senão não tem romance.

José Luís PeixotoTaí o cerne da questão, e a boa primeira metade do livro também, porque até então é só descrição, aclimatação e uma boa encheçãozinha de lingüiça porque ninguém é de ferro. E como é de minha política pessoal não contar nada para o leitor além da metade do romance sem colocar um adesivão de Spoiler Alert em cima da postagem, vamos ater-nos ao que temos, sim? Bom, em primeiro lugar, temos aí a viagem do livro e a viagem física retratada no livro, a viagem dentro da sua viagem (yo, dawg…), e a mala e o livro perpassam o romance dando a impressão da perenidade das coisas: os bens imateriais e seus falsos misticismos, vai saber…

Sobre o estilo, porém, tenho que fazer uma ressalva. O Peixoto escreve muitíssimo bem. Você passa pelas linhas e, embora ache tudo estranho como um brasileiro que não reconhece o próprio idioma bem usado, concorda que está tudo em seu devido lugar e que não há muita gordura no texto além do que a estrutura prevê. A estrutura, porém, é um problema, porque você passa as boas 80 primeiras páginas meio que se inteirando das coisas e isso deixa a leitura meio nauseabunda. Agora, obviamente isso não é um defeito a ser atribuído ao escritor, mas a mim mesmo, leitor deficiente criado na base de Mauricio de Sousa. Fato é que a coisa se pareceu arrastada e truncada para mim, mas tenho certeza que qualquer tuga da gema pega isso e lê com mais facilidade do que legenda de filme de besteirol americano. E aí que eu terminei e fiquei sem saber o que há na maravilhosa literatura de José Luís Peixoto que ganha o mundo enquanto você fica aí em casa só no Facebook, seu virjão. E aí me senti mal e um pouco envergonhado, mas mesmo assim vim fazer aqui meu mea culpa para vocês porque se existe uma qualidade que faz um bom crítico é a cara de pau, e cá estou eu com a cara de pau de escrever um post nesse respeitado e mundialmente famoso recanto beletrista da web para dizer: Não entendi, mas pelo menos sou homem o bastante pra não ir requentar críticas alheias sobre o livro. De modos que se alguém tiver lido o livro e quiser compartilhar seus insights, sinta-se livre para fazê-lo na caixa de comentários.

A capa que a editora Companhia das Letras fez pra esse livro, tenho certeza, garantiu cerca de 40% das vendagens, e o resto veio de sua visita ao circo da putrefação cadavérica da massa cefálica que é a Festa Literária Internacional de Paraty. A gramatura e a fonte Sabon em tamanho grande aumenta a lombada e deixa tudo mais atraente porque onde já se viu português escrevendo livro fininho? Deem-nos mais Equadores, mais Livros do Desassossego, mais Evangelhos Segundo Jesus Cristo, mais Lusíadas que seja, ora bolas! Queremos machucar os outros com Livradas! vindas de além-mar e não temos medo de aumentar o tamanho da fonte para isso. E eu sinceramente espero que essa estirpe de escritor tatuado e cheio de piercings abra uma brecha para que nós, profissionais do ramo tatuados e cheios de piercings, ganhemos algum respeito apesar de nossa aparência assustadora. Por isso coloquei essa foto de gatênho do cara aí.

Enfim, galera, vou ficar por aqui porque não estou sendo muito útil. Façam suas apostas e suas interpretações sobre o livro Livro no Livrada!

Comentário Final: 283 páginas em papel pólen de alta gramatura. Uma porrada no homem do saco de mil filhos!

Nelson Rego – Daimon Junto à Porta

Bom dia, baixinhos e baixinhas! Enquanto vocês leem este post, eu estarei dando um duro danado num hotel cinco estrelas à beira-mar de copacabana, então aproveitem o dia se puderem porque hoje é dia de Livrada, bebê! E novidades! Agora, a Companhia da Letras é parceira desse blog supimpa, então esperem alguns lançamentos deles por aqui também.

Falando em parceria, o post de hoje é um livro de outra parceira do blog, a editora Dublinense, que nos enviou (“nos”, como se fôssemos uma empresa sinistra. Mal sabem vocês que esse trabalho todo é feito por míseros oito macacos acorrentados a máquinas de escrever) o livro de contos Daimon Junto à Porta, do Nelson Rego, um autor semi-estreante e que merece o tratamento de gente grande da imprensa especializada que só um veículo imparcial e independente como o Livrada pode proporcionar. Então se segura e vem com a gente (“a gente” de novo… vão pensar que eu sou esquizofrênico agora).

Daimon Junto à Porta é um livro curtinho, com contos curtos, que, no meu entendimento, tem como eixo unitário os sacrifícios e os absurdos cometidos e propostos em nome de uma suposta arte que, obviamente, está acima de nós humanos. É assim que começa o primeiro conto, Platero e o Mar, que narra a história de duas mulheres e um homem que posam em cenas de sexo explícito para uma artista desenhá-los no melhor estilo Schiele de pau duro. Coisa que a mulher poderia fazer simplesmente indo num inferninho qualquer na perifa a um preço módico de 30 reais. Mas não,  a moça quer um showzinho particular, ê povo estuporado. A grande sacada do livro foi retomar essa história no último conto, intitulado Um Pedacinho do Tempo Diante dos Olhos. Eu sei, parece título de power point cristão, mas acho que essa foi a solução do autor para um título que desse um sentido de grandiosidade e superioridade da vida sobre as histórias.

Aliás, a minha principal crítica ao livro é essa: os títulos. Daimon Junto à Porta, Platero e o Mar, Nihil, Um Pedacinho do Tempo Diante dos Olhos… bah, tchê, quanta afetação. Essa parada de jogar palavra em latim no meio das coisas já foi legal na época em que não tinha Wikipedia, hoje parece arroto de erudição mal digerida, vai por mim. A sorte do Sr. Rego é que ele não se propõe tão sabidão assim no miolo dos seus contos, pelo menos na maioria das vezes. Pelo contrário, consegue criar umas historinhas curtas e cativantes com pouca coisa: um diálogo entre dois imigrantes nos Estados Unidos, uma menina que vai buscar um balde d’água pra avó, um médium que é explorado pelo pai da narradora, esse tipo de coisa que deixa passar uma sagacidade em não viajar muito na maionese e não ficar de pompas literárias (até tem umas construções bem óbvias e corriqueiras, dessas meio genéricas que você aprendeu na aula de redação do colégio e escreve no piloto automático).

A coisa do tamanho do livro é outra bola dentro do autor. Provavelmente consciente de sua própria falta de fôlego para escrever algo maior, ele usa o tamanho do livro a seu favor, criando histórias que você já sabe de antemão que são curtas e despertando o interesse do leitor em poucas linhas. Por mais que seja aquele estilo de solução a lá Flaubert, com o crescimento do interesse no passar das páginas, é assim que o mundo gira e é assim que você faz com que a crítica fale algo do tipo “é um autor que sabe contar uma história”. E no final, o livro é bom porque o autor consegue dizer a que veio em poucas páginas, e se isso era uma espécie de teste para ver se rolava escrever um romance, vá fundo, filho! Só não escreva mais umas paradas do tipo “sorrisos, quase risadinhas” e outras breguices do tipo, porque tirando isso, tá no ponto!

Por último, para quem gosta de literatura erótica, é preciso dizer: criar uma boa cena sensual ou erótica em um livro é um trabalho que poucos conseguem fazer com maestria e esse gajo, sei não, me parece que tem o talento, embora tenha explorado pouco esse lado.

Esse projeto gráfico da Dublinense é o sonho de qualquer escritor iniciante. Um capricho no livro que pouco se vê hoje em dia. Papel pólen, fonte Arno Pro, paginação central coberta em fundo preto, capítulos bem divididos que começam sempre em página ímpar, “desperdiçando” papel para dar mais respiro pros contos, títulos separados em uma única página preta que vai ficando menos preta a cada novo conto (ou pode ser só tinta fraca da gráfica, não sei), e uma capa majestosa que divide fotografia e design de maneira justa, embora margem em capa de livro não seja uma das minhas coisas favoritas, pelo contrário. No geral, um bom livro pra quem quer pegar um pouco do flow dos nossos contistas.

Comentário final: 121 páginas em papel pólen. Pode matar alguém nas mãos de um Ginosaji.

Kenzaburo Oe – Jovens de Um Novo Tempo, Despertai! (Atarashii Ito Yo Mezameyo)

atarashii ito yo mezameyoE aí, povão. Todo mundo aos poucos caindo na real? É, o ano começou, e já tem chuva destruindo o Rio de Janeiro, navio capotando, celebridade instantânea filha de colunista social, estupro em reality show, passagem de ônibus subindo… Como diz o Mano Brown, êta mundo bom de acabar! Mas tudo bem, vamos falar de talvez uma das únicas coisas boas que restaram no mundo: literatura! E hoje, de um prêmio Nobel inédito por aqui. Kenzaburo Oe! Oe! Oe! Oe! Oe! Pumba pumba pumba hey, pumba pumba pumba hey…. Aaaah, que saudade da banheira do Gugu.

Deixando nossas lembranças púberes para lá, é preciso ressaltar que o livro mais representativo da carreira do escritor japonês é o Uma Questão Pessoal, que inspirou o Filho Eterno do Tezza, mas sobre o qual não vamos falar. E por que não vamos falar? Bem, essa é uma questão pessoal HAHAHAHAH duas piadas infames em dois parágrafos, é um novo recorde na crítica literária nacional. Yuri Raposão, é do Brasiu-ziu-ziu-ziu! Mas sério, a questão pessoal no caso é que eu não li o dito livro, então vamos comentar esse, que foge muito pouco ao tema do principal e de repente ficou mais fácil de achar nas livrarias por causa dessa edição comemorativa de 25 anos da Companhia das Letras. Ah, hoje não vamos falar do projeto gráfico do livro por uma boa razão: estou na praia a quase mil quilômetros de distância do meu exemplar, então não rola.

Bem, antes de mais nada, que irado esse título, hein? Jovens de um Novo Tempo, Despertai! Sei que pra você isso deve soar muito bomo bordão de grupo jovem evangélico, mas vamos combinar que qualquer título que use a segunda pessoa do plural ganha +100 pontos em imponência e ar épico. Olhai os Lírios do Campo, Jovens de um Novo Tempo, Despertai!, e por aí vai. Jovens escritores, considerai usar o imperativo do tempo vós para criar títulos portentosos.

Nesse livro de título poderoso, entretanto, o escritor realmente fica em cima do muro entre escrever um romance, um livro de contos e um ensaio. Por que veja, ele tem uma história unificada, mas é dividido em contos que se esparsam cronologicamente entre si, e em cada um deles, Oe comenta algum aspecto da poesia de um de seus poetas favoritos. Blake! Que me lembra Bloke, que me lembra que a mulher de Traídos pelo Desejo é um cara, e agora já me deu um calafrio na espinha. Brrrrr, não me perguntem como eu faço esse tipo de associação. E em meio a isso, volta ao tema de Uma Questão Pessoal: sua relação com seu filho autista, Hikari Oe, que mesmo com “metal retardaaaaation” (adoro Borat), é um dos mais proeminentes compositores do Japão (como se o país não fosse quase que tomado completamente por artistas proeminentes), reforçando aquela tioria de que não importa o quão bom você seja em algo, tem algum moleque asiático que é dez vezes melhor do que você.

Os fatos são os mais corriqueiros possíveis: uma merda que a criança fez em casa enquanto o autor viajava, um encontro no clube com uma turma esquisita de natação, o debate de uma estudante americana sobre a vida e obra dele próprio e do escritor Yukio Mishima, tratado no livro apenas por Sr. M., príncipe neeeeeeegro dos sortilégios. Aliás, Mishima é outra constante no livro. Fisioculturista, gay, suicida e escritor, a personalidade e a obra do cara dão pano pra manga de mais de mil dissertações — e acredite, o pessoal já deve ter escrito tudo isso sobre ele. Para quem ler o livro e não souber quem é o Sr. M, o amigo do Livrada! aqui te ajuda!

Acho que Jovens de um Novo Tempo, Despertai, é um tanto inconstante por não saber equilibrar a dinâmica do romance e a profundidade do ensaio, optando ora por um, ora pelo outro. Mas convenhamos, como é que o cara ia fazer isso de uma forma melhor? Acredite, se um japonês não conseguiu fazer direito, é porque a bagaça é impossível, desistam enquanto é tempo! Mas espere, isso não quer dizer que o livro é chato nem desinteressante, muito pelo contrário. Mas para entrar no espírito da leitura, tem que estar disposto a mudar sua leitura de romance para conto e de conto para ensaio com a mesma vontade de Oe em alternar os gêneros, caso contrário sua leitura vai ser uma eterna espera pelo seu formato favorito voltar à tona. Vada bordo, cazzo!

Meu maior problema com esse livro foi, realmente uma questão pessoa, e agora não é piada, é que eu realmente me interesso muito pouco pela poesia do Blake, então boa parte do livro não me interessa, então boa parte do livro ficou chata pra mim. Mas para quem gosta de conflitos familiares, ensaios literários sobre mais de um autor até, relatos pessoais de um cara experiente e cheio de causos para contar, Jovens de Um Novo Tempo, Despertai! é o livro certo para você.

E antes que eu me esqueça. Siga a página do Livrada! no Facebook, assine o RSS, siga-me no @bloglivrada, anuncie neste espaço, venda-me sua alma, vote em mim para presidente da associação beneficente, diga sim ao PL 29, apóie sua cena underground local, enfim, faça o que eu digo. E tenha uma boa semana!

Eliane Brum – Uma Duas

Se eu fosse o Pedro Bial, chegaria nesse blog gritando ROMANCE! agora (tá, clique aqui para entender minhas piadas). Isso porque, apesar da autora em questão ser uma jornalista conhecida por suas matérias jornalísticas e seus livros jornalísticos, o livro em questão é nada mais nada menos que a estreia de Eliane Brum no campo minado da ficção. Sem mais delogas, vamos a ele. E hoje vou fazer uma resenha séria.

Uma Duas é um livro que me lembrou em muito o romance A Pianista, da Elfriede Jelinek (que foi transformado no filme A Professora de Piano, pelas mãos de nada menos que meu diretor favorito: Michael Haneke, o Tony Montana do cinema!), por tratar de uma relação doentia. E quando eu digo doentia, não quero dizer no nível Napoleon Dynamite, não quero dizer no nível King Pin – Esses Loucos Reis do Boliche, e também não quero dizer no nível irmão-que-transa-com-a-irmã-no-guerra-dos-tronos. Peraí, mas agora chegou perto! Trata da história de uma filha e uma mãe que, coitadinhas, se pudessem se matavam como um hamster mata o outro dentro de uma mesma gaiola. A mãe é pouco mais que uma cadela passivo-agressiva: despirocada desde antes de ser abandonada pelo maridão, mantém a cria na rédea curta com aquele lance de culpa de mãe judia, embora a religião aqui não seja determinada. O que é uma burrice, porque todo mundo sabe que jogar as ameaças na mão de Deus é considerado normal aos olhos do juizado, mas experimente falar que quem vai dar o castigo é você pra ver se não te enquadram no abuso infantil…

De qualquer forma, a mãe é uma daquelas que gosta de pegar, de dormir junto, de fazer carinho… êpa! Claro que a filha já não cresce certinha das ideias. Incapaz de lidar com pessoas normais, afasta todo mundo dela e inclusive larga seu emprego. Agora, o mais perturbador da história é que a protagonista guarda terríveis semelhanças com a vida da Eliane Brum: também é jornalista, também largou o lance que ela tinha na Época, etc. etc.

E aí a cagada tá feita, mano! Alternando entre a voz da mãe, a voz da filha, e a voz de uma narradora “imparcial”, Eliane te leva pra dar um rolé no inferno com ela e com a patota que ela criou. É curioso a gente pensar que uma repórter como ela, que lida com tanta desgraça nas histórias que conta, queira tratar de um outro tipo de desgraceira que é a desgraceira psicológica… Bem, como diz o Bispo, eu sou um artista, esse é meu lixo. Vamo que vamo.

Algumas considerações, mas antes, uma ressalva: para um livro de estreia, Uma Duas é um livraço! Mas vocês me conhecem, o papai aqui é chato. Eu sou o equivalente àquele feioso do Ídolos que usa boné e óculos e desconta as frustrações da vida no trabalho dos outros. O que eu queria dizer na verdade é que a autora carrega pra dentro da ficção alguns vícios da escrita jornalística, e acho que o principal é direcionar o olhar do leitor para o horror de uma maneira muito explícita, ainda que não pareça quando as orações são maquiadas com o pankake do eufemismo. Claro, isso serve na reportagem: você precisa sacudir o sujeito que coloca o monóculo para ler sua matéria. Mas na literatura, eu acho mais interessante o que não é dito e o que é sutil. Algumas passagens podem ser carregadas de efeitos lingüísticos que alimentam a alma barroca mas fazem pouco pela alma de quem lê. E nessas apanhou também o Sr. Saramago.

Há também a questão da voz. Não fosse a fonte do livro, que muda três vezes para alternar entre as três vozes, ficaria difícil diferenciar uma da outra. Talvez isso sirva ao propósito de que mãe e filha são mais parecidas do que se supõe, mas a julgar pelo zelo da edição em separa na tipografia, diria que não. O atenuante da situação é que a(s) voz(es) que ela cria são bem interessantes, e dizem muito sobre a intenção da autora e conduz o leitor para dentro da miséria mental dos personagens sem necessariamente entender tudo, mas também sem deixar aquela vaga impressão de que ninguém – nem a escritora – sabia o que estava fazendo. Não se enganem, meus filhos: a relação conflituosa e doentia entre mãe e filha pode ser corriqueira na literatura e no cinema, mas o que temos aqui foi criado a partir do zero, algo bem original, principalmente para os padrões da nossa literatura nacional.

O projeto gráfico da editora Leya é uma beleza, mas uma beleza do tipo Hillary Swank: dada a divergências. Tipografia laranja e aquele papel leve de jornal com que imprimem os livros americanos… vá lá. Eu gostei, e vocês?

Desculpem por essa péssima resenha de hoje. Não ando inspirado nem motivado. Quem sabe melhora.

Lourenço Mutarelli – A Arte de Produzir Efeito Sem Causa

Tô me sentindo uma daquelas gatinhas de Hollywood que se envolvem com drogas e tempos depois saem da rehab com um aspecto cadavérico, peito caído e muita entrevista pra dar na Oprah. Tô melhorando, galera. Olha só, minha última postagem foi há duas semanas e já respondi todos os comentários pendentes de antes. Tô me regenerando, Risoflora! Não vou dar mais bobeira dentro de um caritó, agora é só pimba na gorduchinha e vamo que vamo que o som não pode parar.

Vamos combinar que uma postagem a cada quinze dias tá valendo, ok?

O livro de hoje vem para reafirmar uma tecla que venho batendo há algum tempo: Lourenço Mutarelli é uma das vozes mais originais e instigantes da literatura brasileira em muito tempo. Mas ô escritorzinho subestimado, meu Deus. Abram os olhos pra esse cara de uma vez por todas que ele merece ser lido não só pela galera nerds que acompanhava os Transubstanciação e Dobro de Cinco da vida. Ele é bom como romancista também, e não tem nada a ver com o que ele fez antes. O bicho é bom e subestimado, é Captain Beefheart da literatura nacional.

A Arte de Produzir Efeito Sem Causa é, se não me engano, o primeiro livro dele lançado pela Companhia das Letras. Acho que quando o cidadão vai pra essa editora, os olhos se voltam mais pra ele, mas peguem o Cheiro do Ralo pra ler e comprovem o que eu digo. Fico feliz que Mutarelli não seja mais tão pop quanto era há uns dois anos atrás, quando escrevia peça de teatro pra Mariana Ximenes e o escambau, daqui a pouco ele tava indo no programa da Hebe dar selinho naquela múmia e pegar a herpes de Amenófis IV. Escritor tem que ser low-profile mesmo, senão essa vida hypada (vem de hype, Juvenal) vira a cabeça do cara. A Globo é uma máquina de fazer Paulos Coelhos. Aí, valter hugo mãe, aproveita o tema e faz mais um livro. (sobre o valter hugo mãe: que nominho, vamos combinar. Não basta o cara chamar valter, o sobrenome dele ainda é mãe!).

Bom, tergiversei como manda o figurino, agora vamos ao que interessa. Esse livro é um dos grandes livros do Mutarelli. Conta a história de Junior, um cara que trabalhava numa revendedora de auto-peças e se divorcia da mulher, que deu em cima  do amiguinho do filho, e resolve ir morar com o pai dele. Lá conhece uma mocinha que eu já esqueci o nome e que tô tão sonolento pra procurar no Google que nem tô arriscando fechar essa janela do Word pra não começar a babar com o queixo no peito nem to dando ponto final olha só to embalando legal essa frase uuu to doidão de sono. Brrr, me dei uns tapas e acordei, voltando ao assunto. Lá ele conhece uma mocinha por quem sente uma leve pontada no zíper da calça, mas é só isso que vou falar sobre o assunto.

O que interessa para a história é esse movimento de voltar a morar com o pai, a simbologia para a derrota da vida sobre o homem, como o próprio Mutarelli me disse em uma simpática entrevista que fiz com ele por telefone. Derrotadão e cansado de apanhar da vida, devendo as cuecas pros outros, Junior começa a receber correspondências estranhas pelo correio, que ele crê que sejam peças de um quebra-cabeça que cabe a ele montar (essa frase me lembrou dessa música, sempre uma boa pedida). Já dizia alguém – Chico Xavier, talvez – que a mente vazia é a Yoguland do diabo. O sujeito começa a pirar nas encomendas e, mais noiado do que o Capitão Ahab visitando o Sea World, afunda no suposto quebra-cabeça enquanto tenta segurar as pontas de sua vida, que já tá mais capenga do que pé-de-meia de grego.

Se tem uma coisa que Mutarelli entende nessa vida de meu Deus é de loucura. O cara é PhD em doidice pela Universidade Pinel Senor Abravanel, ocupante da cadeira número 22 da Academia Brasileira de Loucura (ABL, essa mesma), cujo patrono é Giordano Bruno. Em A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, o autor mostra direitinho o processo de endoidamento da pessoa, e é assustador, é quase como ver um parente-problema (problema na família, quem não tem?) com quem você tem que lidar porque você não tem escolha e porque qualquer família tem uma cota pra maluco (geralmente de dois terços).

Essa edição da Companhia das Letras valorizou o enredo, e não é todo dia que o projeto gráfico de um livro ajuda na experiência imersiva do leitor. Com desenhos (doodles) feitos pelo próprio Mutarelli, o livro tem um formato assim meio de Moleskine falsificado e tem um miolo cheio de rabiscos atribuídos a Junior. Mas entre os escritos também há intervenções do projeto gráfico, que complementa a história com letras escritas à mão (simulando, né, animal, não colocaram ninguém pra trabalhar no ano novo escrevendo letrinhas em 3 mil livros) e outros rabiscos e desenhos que têm como objetivo entender o raciocínio de Junior no mistério. Aliás, não espere muita solução nos livros do autor, é melhor prestar atenção nesses elementos que eu to falando. Tenho essa ideia de que saber o que olhar antes mesmo de começar a ler o livro é importante pra você não sair odiando o autor pelas razões erradas. Fonte janson e papel pólen velho de guerra irmão camarada. Quer mais o quê? Enfeita sua estante e o seu cérebro.

Comentário final: Semana passada não postei sabe por quê? Estava na junket do Transformers 3, que estreia na semana que vem. Rá, vi o filme antes de todo mundo, e o Michael Bay sentou bem na minha frente. Acho que passei uma gripe pra ele, espirrei bem na nuca do infeliz.

V.S. Naipaul – Uma casa para o sr. Biswas (A House for Mr. Biswas)

A house for mr. biswasNão sei quanto a vocês, mas eu estou levando a sério o desafio literário livrada 2011. Já li o primeiro livro do meu autor escolhido. De fato, acabei de lê-lo agora e já resolvi escrever enquanto a coisa tá fresca na cabeça. Sem mais, vamos a ele.

Vidiadhar Surajprasad Naipaul, esse índio velho com cara de figurante de filme do Giuliano Gema, minha gente, é o autor que eu escolhi para conhecer esse ano. Nasceu de uma família indiana na década de 30 em Trinidad, aquela ilhazinha simpática que fica em cima da Venezuela, do ladinho de Tobago, e, após uma vida estudando entre os ingleses, ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2001, aos quase 70 anos. Povo de Estocolmo, vamos começar a reconhecer o mérito literário das pessoas mais cedo um pouquinho, vamos? O que o idoso vai fazer com o milhão de platas que ele vai colocar no bolso com o prêmio? Gastar tudo com remédio nas farmácias Minerva? Dá o vil metal na mão de um escritor mais garotão, pra ele gastar com Jet-skis, shows particulares do Yo-Yo-Ma, raves em Santorini, enfim, dá dinheiro pro cara viver a vida, né?

Enfim, voltando ao assunto, Naipaul escreveu, em 1961 esse mega romance de formação com traços de pós-colonialismo (é sério gente, existe uma corrente literária com esse nome, não iria enganá-los de graça) chamado Uma casa para o Sr. Biswas (na ficha técnica da Companhia das Letras, colocaram que o título original era “A house to Mr. Biswas, mas não é to, é for, mancada básica do inglês básico). O livro, parte drama, parte comédia, fala da história de Mohun Biswas, o sr. Biswas da história, um cara que cresceu numa família minimamente grande, como costumam ser as famílias hindus a julgar pela família do Apu, que é o único hindu que eu conheço, e ele é só um desenho animado, e, acho que por isso, sonha em ter um cantinho só pra ele. Tido como maldito por um pândita, um sacerdote que vem traçar a personalidade dele, cresce recebendo uma sutil hostilidade de sua família, e casa com uma mocinha chamada Shama, da terrível família dos Tulsi, uma família de comerciantes maior que o Polyphonic Spree inteirinho, cheio de gente autoritária e sem paciência pra nada. Mohun então começa a trabalhar de jornalista e a escrever pequenos contos enquanto tenta conquistar sua própria casa, sendo enganado por tudo e por todos a todo momento.

Contar mais do que isso é spoiler, então vamos às análises. Primeiro, considero que Naipaul escreveu esse livro com uma grande paixão, pois a história de Biswas está muito associada à história de seu pai e, por conseguinte, à sua infância em Trinidad. Assim como Biswas, Naipaul queria ser escritor, e também assim como Biswas, seu pai fora jornalista sem ter muitas leituras, e considerava os escritores os seres mais nobres do mundo. Acho que toda obra escrita com muita paixão por um determinado universo deve pelo menos ser considerada a ser lida com carinho, e ponto final.

Falando um pouco sobre o Sr. Biswas. A trajetória que o protagonista desenvolve ao longo de sua vida pode ser compreensível se levada em consideração o meio em que cresceu. Hostilizado por seus pais, pois o pândita havia dito que seu espirro causava azar, Mohun começou a se rebelar contra tudo aos poucos. O drama de não ser bem quisto e ainda assim ter de conviver com pessoas hostis — família, ainda por cima — é motivo bom pra querer chutar o pau da barraca, a meu ver. Depois, na adolescência, quando é forçado a casar com Shama, e a morar com uma família gigantesca, é mais um motivo para revolta. Uma vida que vai sendo arrastada para as situações, por assim dizer. Toca fundo no nosso senso de liberdade, a mulherada fica doida quando vê uma mulher de burca, é ou não é? O Biswas tem algo nele de bom, de nobre, mas isso não é despertado pelas frustrações perante a vida que lhe corroem com a força e a dor de uma lâmina profunda de agonia (achou bonito? É do Funk Fuckers!). Aí entramos em outra questão importante do livro: a rotina e as responsabilidades que oprimem a criatividade e a vontade do pobre proletário. Mohun não pode escrever e não pode exercitar todo seu fascínio pela cultura e pela literatura porque tem que cuidar do telhado que tá caindo, dos quatro filhos pra criar, da esposa que só reclama, etc. Então, ô-ô-ô-ô mai bróder,  é o rodo cotidiano.

Vidiadhar Surajprasad NaipaulUma última coisa que queria falar sobre o livro é uma passagem que me marcou muito. Vou tentar não contar muito do contexto para não estragar a leitura de quem, porventura se aventurar nesse livro. Bom, acontece que, em dado momento, Biswas consegue comprar uma casa, mas diante de um cenário completamente hostil. E aí ele se depara com uma realidade cruel do estado capitalista: quem tem posse tem medo. Ele começa a se sentir acuado em seu próprio terreno (opa! Mesma música do Funk Fuckers de novo) e experimentar um medo terrível de tudo e de todos, chegando a ter receio de sair lá fora. Aí está um traço do tal pós-colonialismo. O medo de quem tem posse num país completamente desestabilizado, sem seu poder executivo em pleno funcionamento, em épocas de guerra (segunda guerra), depois de colonizadores terem abandonado o país à sorte de suas divergências culturais e étnicas, do tipo “pulei fora, se virem vocês”, é terrível. A todo momento, no livro, vemos leis sendo mal-interpretadas, distorcidas, manipuladas para o interesse de alguém (não que isso não aconteça por aqui, mas no livro a coisa é muito mais visceral), algo muito típico do Estado sem Estado. Isso, aliado ao comportamento dos Tulsi e do próprio Biswas, enfim, os trejeitos da sociedade, me fazem perceber que a cultura de Trinidad e Tobago não é muito diferente da brasileira. Esse romance poderia ter sido “rodado” aqui na nossa terra, afinal. Todo mundo sendo enganado e vivendo na maior pobreza. Serião, fiquei com nojo de algumas paradas da história, como o “sorvete feito em casa”, que é guardado num freezer velho que fica soltando pedacinhos de ferrugem em cima do sorvete. Yuck!

Essa coleção do Naipaul da Companhia das Letras é bem bonita, vai dizer. Esse livro em questão é sinistro, porque são 522 páginas em letra miudinha, pra caber mais. Então é um livro que eu suei pra ler. Dica para vocês, crianças: evitem começar a ler um autor por seu maior livro, mesmo que seja um clássico. A exceção de Crime e Castigo, é claro, e também pro caso de você resolver ler Pamuk — o cara não faz muito livro pequeno, então não tem jeito. Bom, mas eu fui, demorou mas tô aqui falando dele pra vocês. Tradução do Paulo Henriques Britto, papel pólen e fonte Garamond. Tem prefácio do autor e na quarta capa, citações elogiosas de balangudos da literatura como Paul Theroux e Anthony Burgess. Ah, o livro também ganhou o prêmio Grinzane Cavour, da região de mesmo nome da Itália. Um prêmio importante, mas desconhecido, que já premiou e homenageou muita gente boa (inclusive o Cesare Pavese, Carlinha!). Tá demais, né?

E a propósito, como vão as leituras do desafio de vocês? Já leram algum autor a que se propuseram? Não quero controlar, só estou curioso mesmo. Se quiserem, escrevam aí embaixo!

Comentário final: 522 páginas pólen soft. Arranca o braço do James Franco em 127 horas.