Vídeo: Entrevista com Diego Vecchio

Estava na Flip e me foi oferecido uma entrevista com o convidado argentino Diego Vecchio, que publicou o livro “Micróbios” pela Cosacnaify, uma proposta bem interessante e um livro bem resolvido depois de um começo meio decepcionante.

Como expliquei na descrição do vídeo, ia ter legenda, mas acabou que não teve porque não tô mais com tanto tempo livre assim, e essa máquina não para. Mas ele fala direitinho e devagar, não acho que alguém vá ter problema para entender o castelhano do cara.

Clica na imagem aí!

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Philip Roth – Pastoral Americana (American Pastoral)

Pastoral AmericanaFinalmente chegou a hora. Pastoral Americana, de Philip Roth, o livro da categoria 15 do Desafio Livrada! 2015. Esse livro me tomou muito tempo de leitura, não só porque é grandão, mas também porque tive que parar de lê-lo várias vezes para dar conta de outros compromissos literários. Mas não estou aqui para ficar de mimimi, embora essa abertura talvez justifique muito bem a superficialidade dessa resenha (até porque com a Camila escrevendo sobre Philip Roth por aí, a gente até desanima de tentar com mais força).

Bom, fiquei sabendo que muita gente que leu o Pastoral para o Desafio não gostou do livro, achou chato. Devo dizer que 1- até entendo suas razões mas 2- vocês estão equivocados. Pastoral Americana é Philip Roth na sua melhor forma. Denso, crítico, cheio de contexto, cheio de tessituras, cheio do puro suco da voz sem estilo (isso é um elogio, acredite). Esse é o primeiro livro da Trilogia Americana, que tem ainda Casei com um Comunista (que ainda não li) e A Marca Humana. A trilogia serve pra acabar com a vida perfeitinha dos estadunidenses, então pode não significar muito pra gente que cresceu odiando os Estados Unidos, a Disney e seus patetas, mas lembre-se de que esse é um povo que abana bandeirinha pra assassinato de terrorista e que qualquer crítica interna já é motivo pra banir do coletivo fem… do Facebook.

O livro gira em torno da vida do “Sueco” Levov, um judeu prodígio de uma pequena comunidade judaica em Nova Jersey. O fascínio que o talento para o esportes de Levov desperta na comunidade chega até o narrador, ele, o mito, Nathan Zuckerman, que já fica todo feliz de ser colega do irmão menor do Sueco, Jerry. Quando Zuckerman encontra Jerry num desses encontros de trocentos anos da turma de mil novecentos e guaraná de rolha, descobre que o Sueco, com quem tinha se encontrado alguns dias antes com o pedido de que escrevesse sobre a vida de seu pai e de sua fábrica de luvas, morre de um câncer terminal que lhe escondeu durante o encontro, e que sua filha, Merry, era uma terrorista acusada de botar uma bomba numa agência-de-correio-barra-mercadinho e de matar um médico como resultado. Isso abala muito o narrador e escritor de sucesso, que tinha a vida do Sueco como o ideal máximo da vida americana assimilada pela cultura judaica. Os judeus, que sempre se sentiam pouco à vontade na América, tinham em Levov uma inspiração, Zuckerman dá a entender. Descobrir que a vida dele não era essa pastoral americana toda faz o escritor mergulhar em suposições de como deve ter sido esses perrengues da vida do Sueco, esse que na verdade agora lhe parecia um covardão para quem nada importava mais do que a vida certinha.
Philip RothE é aí que a história começa. Da cabeça de um escritor que imagina uma vida adulta para um ídolo de infância. A coisa tem um fundo incestuoso, uma fuga da realidade, diálogos imaginários (ainda mais imaginários) com Angela Davis (aquela, dos Panteras Negras) e com Audrey Hepburn, chantagem pesada com uma suposta amiga de Merry e ainda um caso que sua esposa Dawn, começa a manter com um grã-fino. Enfim, a vida do cara vira uma maluquice que só, e nesse processo, ele começa a desconstruir a vidinha americana e contextualizar aquilo. Sim, amigos, pois a coisa toda se passa durante a guerra do Vietnã, esse monolito na história dos Estados Unidos. Merry se revolta com a guerra, com o presidente, com a autoimolação dos monges em protesto e resolve trazer a guerra e o caos para dentro do país. Pior, para dentro do pacato vilarejo de Old Rimrock, lar do Sueco e de sua família, onde coloca a tal bomba. Os protestos e a questão racial também entram em pauta, já que os trabalhadores negros da fábrica de luvas do pai do Sueco aparentemente são uns mal agradecidos pelo acolhimento, dada a incontestável incompetência da mão-de-obra com a palma branca, segundo o próprio Levov. Entram aí Angela Davis e os Panteras Negras, e os Weathermen também, afinal.

Para entender Pastoral Americana, é preciso entender o que o escritor está colocando em jogo. O desencanto com o american way of life, que para você pode ser só mais uma mentira, mas que para os habitantes do país era um ideal a ser alcançado e para os imigrantes judeus, uma porrada de promessa. Uma promessa assim como o Sueco. A vida do Sueco conforme imaginada por Zuckerman é o desmantelamento dessa sociedade utópica, mas o fato dela ter sido quase toda imaginada pelo narrador faz com que o peso seja só simbólico, projetada em vidas que ele considerava adequadas e habilitadas para esse ideal. O fato de ninguém conseguir entender de fato o que se passa no coração de outra pessoa, a tecla martelada no romance, é também o que se pretende aceitar ao aceitar o fracasso do país em manter todo o caos para longe de suas fronteiras. Levov é um mistério para Zuckerman, e é dessa relação, mais os sentimentos do escritor com o momento histórico dos Estados Unidos que nasce sua história. E aí está a genialidade de Pastoral Americana. Se Zuckerman não tivesse inventado os detalhes da vida e do pensamento do Sueco, a história seria meramente metafórica e fabulária dentro do espectro do romance de Roth, mas ao invés disso, Zuckerman faz o oposto: se utiliza de uma vida destruída e de um país claramente zoado para compor uma metáfora dentro do espectro do romance de Zuckerman. Distanciar os acontecimentos do leitor que está lendo Pastoral Americana potencializa o drama americano para além do que poderia ser uma cagação panfletária qualquer e o transforma em uma sinédoque da realidade de todos daquela época, inclusive do então jovem e promissor autor Philip Roth.

Esse livro foi publicado pela Companhia das Letras, e é um dos vários que eu tenho (quem quiser me dar algum de presente, anota aí os que faltam lançados pela editora: Casei com um Comunista, O Teatro de Sabbath, Fantasma Sai de Cena, Adeus Columbus e Operação Shylock), e um dos melhores que eu li. A fonte é pequenininha e meio apagada (pelo menos no meu exemplar) e a página é aquele papel pólen gostoso. Tem a versão de bolso também, mas a minha é aquela old school. A capa não segue o projeto gráfico que depois se criou para dar identidade aos livros do autor, mas pra mim, tudo bem J

Comentário final: 480 páginas. Acorda sangue bão, aqui é Capão Redondo, tru, não Pokémon.

Michel Houellebecq – Submissão (Submission)

Capa Submissao_Alfaguara para novo padrao.inddVoltamos à carga com os textos no blog, e logo com Michel Houellebecq, nosso francês tristonho favorito, que já resenhamos por aqui quando falamos de Extensão do Domínio da Luta, Partículas Elementares e Plataforma. Gosto muito do Houellebecq, porque ele te joga pra baixo e você se deprime mas dá umas risadas pelo menos, e ele deriva de uma linha boa de escritores engraçadinhos porém pertinentes que você deve ler em determinadas épocas da sua vida, tipo Chuck Palahniuk, antes dos 18 anos, Will Self, dos 18 aos 25, e Michel Houellebecq, dos 25 em diante. Fato é que o sujeito vende milhares de livros na França por esmiuçar de maneira muito lúdica e muito agradável (ainda que bem triste) questões da existência humana que vem atormentando os franceses desde, principalmente, o século 20. E ele parece ser um cara que tá sempre ligado nas contemporaneidades, então mal não faz.

Submissão é o livro da vez e nele, Houellebecq aborda questões polêmicas em vigor na França de uma maneira um tanto bunda-mole para os próprios padrões: a ascensão islâmica na Europa e principalmente na França, com os imigrantes do norte da África tomando corpo nas perifas dos grandes centros e os ataques aos jornais engraçadalhos que ou as pessoas são ou as pessoas não são. O protagonista é François, mas pode ser o mesmo de sempre: um cara tristonho, meio cínico, meio tarado, politicamente incorreto, que não liga pra muita coisa exceto pra bebida boa, enfim, quem já leu alguma coisa do Houellebecq sabe de quem eu tô falando. O que muda é o emprego: dessa vez, assim como em Partículas Elementares, é um professor de letras especializado no Huysmans, aquele satanista que se converteu ao catolicismo e que escreveu uma meia dúzia de romances franceses que muito pouca gente além dos próprios franceses leem (com exceção de Às Avessas, um clássico universal).

O escritor situa o personagem em ação pela primeira vez contemplando as alunas muçulmanas e chinesas da faculdade, que chegam quietas e saem caladas. Essa posição subalterna dos islâmicos vai começar a ser alterada drasticamente na trama com a crescente (hã, hã, sacou? Islã, crescente, rá!) expressividade da Fraternidade Muçulmana, o partido teocrático que, em seu braço francês, finalmente consegue, lá pelas tantas do romance, colocar um presidente towelhead. E a partir daí, amigo, as coisas vão ficando estranhas, meio escalafobéticas, começa a aparecer neguinho morto aqui e ali e, mais rápido do que se possa perceber, mudanças bruscas começam a afetar sua vida. E aí ele vê que, diante do quadro geral, até que a coisa não é tão ruim assim. Ops, isso era spoiler, podia contar? Já sabe, né?

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Michel Houellebecq: ô coisinha tão bonitinha do pai

Bom, mencionei esse pequeno spoiler aqui já que uma das questões sociais de Submissão é esse conforto que tradições religiosas como as do islamismo podem trazer a velhos machistas como o nosso protagonista, às voltas com um mundo em que já não se pode viver por pura inapetência. O livro já começa com François falando que, ao entregar seu doutorado em Huysmans, terminou a etapa mais importante de sua vida. Dali pra frente, a falta de roteiro e a inadequação para relacionamentos, amizade e qualquer coisa que não seja comer, beber e dar umas bimbadas ocasionais traz uma melancolia e um desprendimento da vida significativos para o protagonista. Fora isso, e de uma maneira geral, a facilidade com que o país abraça essas mudanças é uma forma do escritor dizer “vocês acham que não, mas bem que vocês gostariam de um pouco de ordem nessa bagaça”, e reside aí a polêmica mencionada no chamariz “O livro mais polêmico do ano”, que, aliás, é péssimo. É talvez a primeira vez na bibliografia do Houellebecq em que a situação converge a favor do personagem, mesmo que ele não se dê conta disso em um primeiro momento. Porque antes era legal ser descolado da sociedade careta, hoje o legal é ser careta na sociedade descolada, né não, véio? Então é isso o que ele traz de novo. Agora, de velho, é o mais do mesmo. A tristeza, a inadequação para a vida, a falta de tino pra tudo, as filosofias baratas que não se sustentam nem por um minuto e todas essas coisas gostosas que a gente gosta de ler pra se sentir melhor com a nossa própria vida. Recomendo, viu?

Esse livro foi o primeiro dele que saiu pela Alfaguara. Os dois primeiros saíram pela editora Sulina e os três últimos, pela Record. O projeto gráfico ficou bem bonito, com pantone especial para o dourado da capa em preto fosco, mas por dentro, é um livro da Alfaguara, tudo meio padronizado até onde eu sei.

Comentário final: Allah wakbaaaar! LALALALALALALALALA

John Williams – Stoner

Capa_Stoner_Rádio_LondresEita que o vídeo da Flip tá demorando mais pra ser editado do que eu gostaria, ou eu estou menos tempo do que eu gostaria, ou eu só acho que estou tendo menos tempo do que gostaria, o que importa é que não importa, hoje é segunda e vocês merecem uma resenha nova na falta de um vídeo bobo que levamos muito a sério pra fazer e que deve sair muito em breve.

Bom, estamos aí essa semana com o Stoner, esse que é aparentemente um clássico moderno esquecido – o que, aliás, parece muito estranho em se tratando de tão pouco tempo para esquecer um livro, será que isso vai acontece com a Profecia Celestina daqui a uns dez anos? Stoner foi publicado na década de 60 nos Estados Unidos e, de acordo com o texto didático escrito para fazer você entender por que esse e por que agora, ele foi republicado em 2003 pelo New York Review of Books e considerado um sucesso editorial e entrou na lista dos mais vendidos em alguns países da Europa, o que não é lá muito animador pra quem, como eu, costuma ler a lista dos mais vendidos dos lugares (agora a maioria é livro de colorir, sabiam?). Também não anima muito o fato da contracapa ter comentários elogiosos de escritores medíocres como Bret Easton Ellis (que acha que ainda estamos nos anos 80) e de Tom Hanks que, é bom que se lembre, achou que Forrest Gump foi uma boa. E a cereja do bolo é o primeiro parágrafo da história, que basicamente resume a coisa toda ao dizer:

“William Stoner entrou na Universidade do Missouri como calouro no ano de 1910 com a idade de 19 anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, recebeu o diploma de doutorado e assumiu um cargo na mesma universidade, onde lecionou até a sua morte, em 1956. Nunca subiu na carreira acima da posição de professor assistente, e poucos estudantes se lembravam dele com alguma nitidez após terem cursado suas disciplinas. Quando morreu, seus colegas doaram à biblioteca da universidade um manuscrito medieval em sua memória. Esse manuscrito ainda pode ser encontrado no ‘Acervo de Livros Raros’, com a seguinte inscrição: ‘Doado à Biblioteca da Universidade do Missouri. Em memória de William Stoner, departamento de Inglês, por seus colegas’”.

Como bem apontou o posfaciador desse livro, o escritor americano Peter Cameron (e foi só isso de bom que ele teve pra apontar em sete páginas de pura especulação literária sobre coisas que CLARAMENTE não estão no texto), para que continuar a leitura de um livro que já está todo resumido ali, né mesmo, geração spoiler? E talvez esteja aí a beleza da coisa e a lição pra vocês que gostam dessa vibe de ler 43 livros sobre uma escola de vampiras do bem que precisam de namorados e ficam muito enfezados se alguém te conta que a Zoey virou a líder das Filhas das Trevas — o que, aliás é algo que seu tio vida loka que teve a vida marcada pelo filme Easy Rider já tentava lhe dizer: o que importa não é o destino, mas o caminho. Ou não exatamente isso, mas vamos devagar.

EscritorDe fato, William Stoner, o personagem principal desse livro (e eu achando que era sobre drogados roqueiros que ouvem Stoner Rock) não é quase nem protagonista da própria vida, de tão prosaico. Não é um bom professor, não tem uma personalidade forte, não fez absolutamente nada de memorável nem algo que merecesse figurar em um livro como nós o conhecemos. Digo como o conhecemos porque a televisão, assim como a literatura, já teve uma certa ânsia por protagonistas, até que começou a apostar suas fichas em personagens reais, limitados, patéticos, falhos e coadjuvantes. E as pessoas que estavam assistindo essas coisas realmente gostaram porque, geralmente, eram programas engraçados, mas também sensíveis no trato a reles mortais. E aí a gente vê que o mistério não tem mistério, o cara salva no texto – e nem é um texto rebuscado, é só um texto realmente sensível.

Stoner é um personagem um tanto inoperante, na verdade. Leva várias porradas da vida e não faz quase nada a respeito. Tem um professor rival, um aluno metido a besta, uma mulher que não gosta dele, uma filha distante, amigos mortos e a coisa toda para deixar o romance enevoado com uma melancolia infinita, e ainda assim não deixamos de nutrir uma certa ternura por ele. Sim, Stoner é um desses romances em que, não tendo muito a se agarrar textualmente – floreios ou grandes digressões – o leitor acaba se aproximando demais dos personagens, que são tão misteriosos quanto parecem. Há coisas sobre a vida de Edith, mulher de Stoner, que nunca saberemos, nem a relação do professor Lomax com seu aluno aleijado Charles Walker, e essas coisas reforçam a tangibilidade do personagem principal, inserido em um mundo aberto em que coisas acontecem de maneira não relacionada a sua vida com começo, meio e fim.

E no fim, é isso: a sensibilidade. Ela é que está salvando tudo quanto é produto que você possa inventar no mundo de hoje porque há uma impressão geral de que as pessoas se acostumaram com os absurdos da vida e ficaram insensíveis a certas coisas. Recuperar essa sensibilidade em uma obra escrita como essa não só faz com que o mundo fique um pouco mais sensível como também faz com que você se sinta bem por conseguir sentir empatia por uma história tão sutil.

Esse livro foi lançado pela editora Rádio Londres, uma das mais novas parceiras do Livrada! Eles são uma editora nova e me procuraram pelas redes sociais e me mandaram esse livro. Por causa do nome, eu achei que fosse uma editora que só lançasse livro de hipster londrino, mas que bom que não é assim. Não li nenhum outro romance publicado pela editora ainda, mas parece que eles estão com um acervo bom de títulos não-babacas – o que já é uma grande coisa em se tratando das grandes casas editoriais de hoje em dia. O projeto gráfico desse livro é primoroso e respeita tudo o que há para se respeitar em um projeto gráfico que se preze. Papel pólen, uma fonte boa (chamada Calluna, que eu não conheço, mas tá beleza também), uma capa bem bonita que parece que compartilha a foto da edição original, ou de alguma edição gringa pelo menos, e uma certa identidade visual com a colocação do título e do autor numa bolinha colorida, atrás do nome da editora (o que reforça que a coisa parece tudo menos o nome da editora. Parece tipo uma coleção ou algo assim). Enfim, um livro bonito também.

Ps: parece que muita gente comentou que a primeira edição de Stoner tinha muito errinho no texto, e que a tradução dava umas trombadas com a realidade da língua em algumas horas, mas eu recebi aqui a segunda edição e, fora uma coisa ou outra muito rara, tá tudo bem.

Comentário final: 314 páginas em papel pólen. Quebra uma perna com osteoporose (lembra quando os comentários finais eram só sobre o poder destrutivo do livro? Ah, o Livrada! de antigamente…)

Liev Tolstói – Felicidade Conjugal (Semeynoye Schast’ye – Семейное счастье)

Felicidade ConjugalTolstói, senhoras e senhores, esse russo cabra da peste que não nega fogo nunca e que não decepciona nem quando encarna as ideias mais odiosas que uma mente brilhante como a dele pode ter. Vamos mostrar aqui hoje como este Felicidade Conjugal, publicado em 1858, exibe toda a maestria do autor em escancarar paradas tão e atemporais quanto estes tais sentimentos comuns a todos. No caso aqui, o amor. L’amour, aaah, l’amour. Senta aí que lá vem história.

A história é narrada por Mária Aleksândrovna (esses russos e seus acentos impronunciáveis para nós), uma menina novinha do interior. Conhecemos Mária pouco tempo depois dela ficar órfã de pai e mãe, criada por uma irmã e uma governanta. É aí que aparece a figura de Sierguiéi Mikháilitch (posso dizer que to adorando essas transliterações de nomes russos que privilegiam esses “is” que os russos falam muito sutilmente? Porque, olha, tô mesmo), amigo de longa data do pai de Mária incumbido de resolver umas pendências burocráticas em nome da família na ausência de um adulto. É claro que a menina fica toda apaixonadinha pelo sujeito que tem idade pra ser seu pai, e o cara que não é bobo mas tá mais vacinado da vida do que gado pra exportação, cai de amores pela gata também, mas não dá nenhum passo nesse sentido porque sabe que 1- ele é velho e tá precisando de esposa e 2- menina novinha assim se interessa por cara mais velho mas depois de um tempo cansa porque percebe que tem muito pra viver ainda.

Mas eventualmente as partes não se aguentam e partem pro abraço, diante de vários, mas muitos mesmo avisos de Sierguiéi de que a coisa não vai dar certo porque Mária é mocinha do interior e quando conhecer a cidade grande vai querer saber só de badalação e vai esquecer o maridão em casa pra ir festar, e ela jurando que não, que nada a ver, que onde já se viu minha vida, meu tudo, te quero só pra mim, mil e uma noites de amor com você, sou evoluída e não vou pra balada e pois bem. Casam. Termina aí a parte um, sabe por quê? Porque acabou aí o sossego da vida. Logo que a menina casa, o que ela percebe sobre a vida? Que ela quer mesmo é ir pra balada e deixar o maridão em casa pra ir festar. Rá!

TolstoiO desfecho dessa coisa toda é parte da maestria da obra e não me cabe comentar aqui, mas veja só que coisa curiosa. Tolstói no começo de sua carreira já tinha umas ideias meio radicais que se aproximariam muito de outras ideias radicais do final de sua carreira, tipo em Sonata a Kreutzer, de 30 anos depois, a saber: que mulher é um bicho escroto que não sabe o que quer, e que casamento bom de verdade é aquele que não acontece de verdade. Sabe-se que a felicidade conjugal de que fala o título é outra daquela esperada no amor romântico, e cabe ao leitor ir até o final para descobrir do que diabos nós falamos quando falamos de felicidade conjugal.

O que queria falar sobre Felicidade Conjugal é que Tolstói é um cara muito bom em descrever com palavras exatas – mas exatas mesmo, enxugando toda a gordurinha melodramática e deixando só o que é verdadeiro mesmo, e isso dá pra ver no todo – a morte dos sentimentos. Em Sonata a Kreutzer, o marido traído vai narrando a morte da confiança na esposa; em A Morte de Ivan Ilitch, Ivan Ilitch narra a morte de sua esperança em viver e a sua própria morte; e neste Felicidade Conjugal, temos em câmera lenta, muito bem explicadinho para bom e mau entendedor, a morte do amor romântico. Pra mim, esse é o grande mérito dessas novelinhas que ele publica: esmiuçar sentimentos tão complexos que serviram de base para muitas outras novelas, desde as de banquinha de jornal até grandes outras obras, incluindo aqui Anna Kariênina do próprio autor. É tipo um Shakespeare: falar de coisa que todo mundo fala, mas de um jeito que ninguém nunca falou antes. Boa, Tolstói.

Esse é o último Tolstói que vou resenhar da Coleção Leste da Editora 34. Porque não tem mais! Aliás, se essa Coleção Leste tem algum defeito é não ter mais Tolstóizinhos curtos, porque ele escreveu vários desses, mas a editora só publicou três (que foram os três que citei no parágrafo anterior). São excelentes edições comentadas e posfaciadas pelos tradutores, que traduzem direto do russo, e serve bem para conhecer as ideias do sujeito, que é claro que precisam ser conhecidas. A tradução desse é do Boris Schnaiderman, que fez um posfácio que, sei lá, não me acrescentou muita coisa, mas tá valendo, eu suponho. Papel pólen, fonte Sabon, aquela coisa de sempre. (Acho que me apeguei muito a essa Coleção Leste mesmo, quero mais livros dela)

Comentário final: 119 páginas em papel pólen.

Vídeo: Karen Blixen – A Fazenda Africana (Out of Africa)

Faz tempo que não tem resenha no canal, né? Mas não é por má vontade, pelo contrário. É pra poder diversificar o conteúdo do Youtube. Vai, tá legal pra caramba, tá tendo de tudo e vai continuar tendo. Mas voltando à programação normal, aqui temos um livraço-aço-aço da Karen Blixen sendo comentado. Pra assistir o vídeo, é só clicar na imagem abaixo!

E a propósito, esse livro faz parte do Desafio Livrada 2015! 

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Vídeo: Entrevista com José Luís Peixoto

Não é por nada não, mas esse canal do Youtube tem tudo: tem resenha, tem rolé, tem entrevista e tem vídeo nada a vê. Esse aqui é uma entrevista, e a primeira internacional do canal! José Luís Peixoto recebeu a gente pra dois dedos de prosa antes de sua fala no Litercultura, em Curitiba, no dia 9 de maio, e falou sobre seu primeiro livro, Morreste-me, publicado agora pela editora Dublinense.

Clica na imagem e confira!

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Milton Hatoum – Dois Irmãos (e entrevista com Gabriel Bá e Fábio Moon)

Dois irmãosVamos juntar os dois lados do livrada. Literatura e quadrinhos, texto e vídeo, tiozões e novinhos, carne e unha, alma gêmea, bate coração, a metade da laranja, dois amantes, DOIS IRMÃOS! A obra mais bombada de Milton Hatoum (depois, talvez, de Cinzas do Norte) foi adaptada para a nona arte por dois dos melhores artistas do ramo que temos hoje no Brasil, então vamos falar um pouco do romance, e ao final, deixo aqui o vídeo com a entrevista que fiz com os quadrinistas Gabriel Bá e Fábio Moon.

Dois Irmãos, vamos lá, sem enrolação. O romance é uma dessas sagas familiares que perpassam décadas, uma coisa que com certeza a nossa literatura nacional faz muito bem, e os exemplos afloram e estão aí pra quem quiser ver, não vou ficar citando, só vou dar uma dica. Pois bem, só que essa história fala de imigrantes libaneses em Manaus. Hatoum é descendente de libanês e manauara, então dá pra ver uma coisa: não é vencedor do prêmio Top-of-Mind, mas libanês em Manaus também é Brasil. Parece que tem uma colonização forte por lá. A história gira em torno de dois irmãos gêmeos: Omar e Yaqub, eles são filhos de Zana e de Halim, um comerciante taradão que quer menos bater ponto do que bater no pandeirão da patroa, como qualquer brasileiro sensato. Essa personalidade ambígua de Halim se desdobra em um maniqueísmo claro como Michael Jackson em fim de carreira: Yaqub é só ambição e seriedade, ao passo que Omar é só desejo e prazer. Moleza, né?

DoisIrmaosSó que a coisa não é tão simples assim: embora com personalidades marcantes e relativamente rasas em comparação ao pai, os irmãos transitam na área cinzenta entre o bem e o mal (que existem e você pode escolher). Os dois tretam desde criança e é claro que tudo começa com mulher. Lívia, a vizinha gatinha deles, é aqui meramente objeto de disputa, e não desempenha papel maior do que esse, mas dá o estopim para uma colisão eterna e constante dos gênios dos gêmeos (aliteração é um troço tão feio, mas não digam isso pro Humberto Gessinger). A partir dessa richa, quando Yaqub tasca um beijo no escurinho do cinema caseiro em Lívia e Omar faz um retalho na cara do irmão com um pedaço de garrafa, o destino dos dois se separa violentamente. Isso começa lá antes da Segunda Guerra Mundial e segue até mais ou menos o começo da década de 90. Esse é todo o escopo temporal do romance.

Falemos de alguns aspectos desse livro. O primeiro: a cidade. A Manaus descrita por Milton Hatoum é fantástica. Parece ser uma cidade viva, pulsante, cosmopolita e cheia das possibilidades que, ao longo da história vai se deteriorando na mesma medida em que a família de Halim. A decadência da cidade e a decadência familiar andam juntas de maneira muito sutil, mas deixa claro o elo entre falibilidade pessoal e coletiva. Manaus hoje é um lugar sujo, acabado, negligenciado pelo resto do Brasil como sempre foi e entregue ao Deus-dará, por razões egoístas que se deram conjuntamente com a degradação familiar presenciada nesse livro, mas também por tantas outras famílias reais. Mas por hora, é uma puta cidade que vale a pena ser vivida, e que de fato é vivida por Omar, que fica lá se engraçando com as moças, gastando todo o dinheiro do pai em brega e forró, enquanto Yaqub, depois de um exílio forçado no Líbano por conta da agressão do irmão, volta para se dedicar a ser arquiteto (olha só, como o próprio Milton Hatoum!) e ir morar em São Paulo (olha só de novo!) e etc outros spoilers que não valem a pena aqui ficar citando. Dois Irmãos também é a história de Duas Cidades: a cidade rica e próspera, representada pela escolha de padres salesianos em que os irmãos estudam, e o pardieiro chamado de Galinheiro dos Vândalos, um liceu porcaria onde se formam as más influências que mais tarde contribuiriam para a degradação urbana. De modo que Manaus, assim como Halim, representam os dois lados dos dois irmãos. A seriedade, a oportunidade e a ambição, e também a preguiça, a violência e a devassidão. Bom, bom.

M-HatoumOutro aspecto: a narrativa. O livro é narrado em primeira pessoa por Nael, um menino índio com mais ou menos a idade do autor e que mora na casa e é filho de Domingas, a cunhatã que o casal adota em troca de trabalho. Escravidão acabou no Brasil, gente, mas mais ou menos, viu? A gente só demora para sacar quem ele é e qual é o nome dele, mas no geral ele é uma presença constante no romance, e muito do que acontece não é necessariamente presenciado por ele, mas relatado a ele por Halim no fim de sua vida. De modo que é uma narrativa pessoal-impessoal cheia de charme por dizer só o necessário e não muito além disso. Ah, e o narrador é filho de um dos gêmeos, mas não deixa claro qual, e a relação dos irmãos com Domingas é dúbia o bastante para deixar isso no ar, mas fico com a opinião de que ele é filho de Omar porque só isso pra ele e a mãe aguentarem a presença dele por tanto tempo. Ainda assim, as passagens mais emocionalmente marcantes são quase todas relatadas por Halim do que por Nael, à exceção de uma ou outra, o que mostra uma quase imparcialidade do narrador no peso da narrativa no que diz respeito ao seu testemunho. Rebolation é bom, bom, bom.

Por fim, os personagens. Sempre que irmãos gêmeos aparecem na literatura ou no cinema, segue-se, uma regra. Se são coadjuvantes, são idênticos em tudo. Se são protagonistas, são opostos completos. Nenhuma grande criatividade aí, mas o autor conseguiu conferir com muito pouco traços de uma humanidade rara na literatura brasileira contemporânea, marcada notadamente por autômatos da narrativa. Algumas reações dos dois são imprevisíveis, e não há como não se decepcionar com ambos em vários momentos da narrativa. Um trabalho de profundidade que Erico Verissimo conseguiu muito bem em dois volumes de O Retrato, por exemplo, Milton Hatoum conseguiu com pouco menos de 300 páginas, e com duas pessoas. Não tão a fundo assim, mas vá lá, bom pra caramba.

E enfim, o livro é um best-seller até hoje, diz que vai virar mini-série, diz que vai virar filme, mas a verdade concreta é que virou uma HQ nas mãos dos quadrinistas Gabriel Bá e Fábio Moon, os mesmos responsáveis por Daytripper, já resenhado aqui. Segue abaixo a entrevista com os dois, um pouco antes da mediação na Itiban Comic Shop. Não ficou como eu gostaria que ficasse, mas foi falha minha mesmo e o lance é tentar melhorar sempre. CLICA NA IMAGEM!

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Hermann Broch – Esch ou a anarquia (Esch oder die Anarchie)

esch ou a anarquiaRound two na trilogia dos sonâmbulos, mais de um ano depois da publicação do texto sobre o Pasenow ou o romantismo. Até que tá bom, levando em consideração que entre a publicação de um livro e outro, Hermann Broch levou quinze anos. E estou lendo esses livros espaçadamente por um bom motivo: caí de amores pela literatura deste senhor e não quero que acabe logo. Hermann Broch foi a minha grande descoberta, e essa trilogia lançada pela Benvirá tá muito subestimada no que diz respeito à recepção da crítica. Quando pesquisarem no google, a única resenha que encontrarão deste livro em específico será a minha, então EXCLUSIVO! Livrada! conta tudo sobre o segundo livro da trilogia sinistrassa do austríaco mutcho loko. É até um pecado que um livro da magnitude de Os Sonâmbulos caia apenas na minha humilde e pesada mão para comentar, mas vou fazer o possível para fazer algo à altura.

Em primeiro lugar, e não custa reiterar isso, se vocês não conhecem Hermann Broch, tão marcando. O sujeito tem senso de humor e ainda por cima escreve bem pacas. Ele está na divisão dos grandes: Thomas Mann, Robert Musil, Proust e Joyce, de acordo com o grosso da crítica mundial, mas quase ninguém conhece because… NAZISMO. A obra do sujeito foi apagada do mapa durante um período e redescoberta tempos depois. Por quê? JUDEN! NEIN NEIN NEIN! Moleza, explicação pra tudo que aconteceu de ruim na Alemanha naquela época. Bom, vamos ao livro em si.

No segundo volume da trilogia, o protagonista é August Esch, um empregado de uma empresa em Colônia que é demitido e resolve arrumar um emprego em uma companhia de navegação em Manhein, chefiada por quem, por quem? Bertrand! Sim, amigos, o antagonista de Pasenow é o chefe de Esch neste livro. Esch deixa então seus amigos de Colônia, em particular a viúva Frau Hentjen, e se muda para um quarto na casa do inspetor aduaneiro Balthasar Korn, que divide a casa com sua irmã solteirona Erna. É em Manhein que ele conhece também dois húngaros circenses: Gerneth e Ilona. Também encontra o amigo Martin, preso durante uma greve na empresa em que trabalha, e Lohberg, judeu que topa investir dinheiro quando Esch e Korn resolvem montar um negócio de luta livre feminina. E no meio de tudo isso, o cara quer se mudar pros Estados Unidos, pela sua liberdade de expressão, em resposta à repressão covarde da greve que prendeu Martin.

Hermann Broch

CUMA??

Então vamos à primeira questão: O Esch a gente já conhece, agora que anarquia é esta de que fala o título? Hermann Broch é um cara velho, e o que significa anarquia pra qualquer pessoa velha? Bagunça, obviamente. Broch queria falar aqui, mais uma vez, dos muitos elementos do período transitório para a nova ordem mundial (pós-Grande Guerra) e da falta de hierarquia entre eles. Sim, porque a perda de valores é também a perda do peso exato que cada elemento deve ter na sociedade. Assim, Esch está tentando achar seu norte moral no meio da bagunça: se revolta com a prisão de Martin e despreza Bertrand por ele ser patrão ao mesmo tempo em que intenciona se tornar um empresário ele mesmo. E o trabalho é encarado apenas como uma função social da qual só é possível extrair respeito, e esse respeito apenas para duas funções: colocar um senso de ordem e retidão no mundo a sua volta e tirar uma onda com os antigos empregadores que o rejeitaram. Tem essa mesma relação confusa com as mulheres: tenta corromper Frau Hentjen, que nem bonita nem jovem é, apenas pela atração que sente por sua retidão moral; tenta trazer Ilona para um mundo mais regrado – resgatá-la — depois que ela começa a ter um caso com Balthasar Korn, e rechaça Erna depois de ter um caso furtivo com ela, mas ao mesmo tempo, sente um desejo profundo de arruinar a relação dela com o judeu Lohberg depois que os dois se aproximam. Obviamente que o final disso não é muito bonito pra ninguém, afinal de contas, ninguém escreve um livro pra dizer que os tempos estão mudando, faz um personagem desprezível de protagonista e terminam dizendo que o mundo tá mudando é pra melhor.

Esch, o rapaz que não sabe se casa ou compra uma bicicleta e acaba comprando uma esposa e casando com uma bicicleta, é o símbolo da confusão que o século 20 representava para aqueles loucos germânicos. Seu mundinho se abalando, ele trabalha só pra ganhar dinheiro, sai comendo todo mundo que vê pela frente e tenta ganhar dinheiro da maneira mais improvável possível. Soa familiar? De certa maneira, Broch estava antecipando a vida sem roteiros que vivemos hoje em dia. Alguns lidam melhor com a anarquia do que outros, e agora estamos vivenciando um momento tenebroso de volta às origens e tradições e ao conservadorismo em resposta à “anarquia”, então o sujeito é um profeta da literatura. E ainda faz uns caras engraçados e perdidos pra gente dar risada deles.

Essa edição é igual á anterior, tem tradução e posfácio do Marcelo Backes e capa do Ernst Ludwig Kirchner, que é um expressionista alemão que manjava das xilogravuras também e que era todo errado e cheio de problema e acabou se matando, e é sempre legal ver obras de arte de gente assim.

Se recomendo? Ora, se você ainda não sabe a resposta pra isso, amigo, leia esse texto de novo!

Comentário final: 312 páginas em papel de jornal. Anarchy in the Livrada!

Vídeo: O Demônio do Meio-Dia, de Andrew Solomon

Estamos de volta com mais um vídeo, e dessa vez com um livraço do Solomon. Em O Demônio do Meio-Dia, o autor explora os vários aspectos da depressão, essa doença tão misteriosa e tão presente nessa vida loka. E como as pessoas reclamaram muito da minha barba, dei uma repaginada no visual e fiquei bonitão. Então clica no bonitão aí embaixo.

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