Leonardo Sciascia – A cada um o seu (A ciascuno Il suo)

Gosto muito quando um escritor teórico, sério e cuja literatura é focada em outro assunto se aventura a fazer algo tão literariamente efêmero quanto um romance policial. Opa, peralá camarada! Romances policiais não são efêmeros (pelo menos não o suficiente), mas digamos que são discriminados assim como um gênero menor. Digamos que o romance policial, se fosse uma mulher em um concurso de misses, seria uma loirassa turbinada. Pode agradar aos olhos do público, mas dificilmente agradaria os olhos dos jurados. Enquanto aqueles a elegessem paradigma de beleza (talvez porque a sensualidade para as massas seja traduzida em volume), estes a achariam clichê e visualmente monótono. Isso não significa porém, que a loirassa turbinada e o romance policial não tenham seu valor e seu lugar (provavelmente junto ao povão). Jorge Coli costumava recomendar a seus alunos que lessem romances policiais, imagino com o objetivo de apurar a lógica e a visão para os detalhes. Eu, que durante o ano de 2004 fui seu aluno duas vezes (mesmo que por um curto espaço de tempo), acatei a recomendação.

O policial do italiano Leonardo Sciascia que trataremos, entretanto, é um livro que, dentro de sua categoria, poderíamos classificar como atípico. A primeira irregularidade não é bem uma irregularidade desde que Agatha Christie a consagrou: o investigador não é um policial ou um detetive, mas uma pessoa comum — no caso, um professor. A segunda fica por conta da linguagem: uma vida dedicada a ensaios políticos e livros satíricos (também sobre a política), refinaram sua escrita ao nível do formalismo peculiar de alguns italianos, como Pirandello em Seis personagens a procura de autor ou Ítalo Calvino em livros como Os amores difíceis e Se um viajante numa noite de inverno. Por isso o amigo Cássio — e faço minhas suas impressões — na ocasião que leu esse livro achou-o chato até sua metade e, uma vez terminada a leitura, uma excelente obra. Alguns são assim mesmo, precisamos terminar a última página para perceber a grandiosidade da bagaça.

Um resuminho: Em uma pequena vila da Sicília, um farmacêutico e um médico são mortos enquanto caçavam. Suspeita-se de infidelidade por parte do farmacêutico (e o médico teria morrido de bucha). A partir daí o professor começa a investigar, com pistas sensacionais e algumas reviravoltas. O que salta aos olhos e a impressão que fica é que Leonardo Sciascia é um excelente escritor.

A história de como esse livro veio parar na minha mão é interessante. Minha mãe uma vez disse-nos que tinha lido um livro em que um farmacêutico morria, e que o livro era muito bom, mas que não lembrava o nome nem o título. No mesmo dia, passeando na livraria, a Carlinha saca um livro da prateleira, lê a orelha e pergunta: “Ei, esse não é o livro do qual sua mãe estava falando?” E era. Achei legal, mas li-o na época em que estava fazendo um pequeno estágio na Gazeta do Povo, descobrindo que de ilustrador eu não tenho nada, então li meio na pressa e ele passou meio batido por mim. Até que ontem a supracitada Carlinha terminou de lê-lo e resolvemos conversar sobre ele. E veio-me a ideia de escrever sobre ele aqui, já que agora ele está sendo vendido ao preço módico de 9,90 nas Livrarias Curitiba.

Sobre a edição: É um dos poucos livros da editora Alfaguara lançados no Brasil com capa revestida de papel couché. Tem uma capa bacana com uma foto de um tal de Antoine Gyori, pegada da Corbis (bendita Corbis, hein?) que por acaso ficou fodassa no livro (no canto da parede tem uma escrita em roxo quase imperceptível, tente ver). No mais, é tudo igual, mas acho que essa escolha da Alfaguara de padronizar os livros em uma mesma diagramação não é tão ruim tendo em vista a excelente qualidade do material. Ah, o livro também foi traduzido pelo genial Nilson Moulin, tradutor de Calvino e outros fodásticos. Nilson, a galera aqui te curte, cumpádi!

Comentário final: 135 páginas pólen soft de gramatura alta. Tem que bater muito pra machucar.

Mario Vargas Llosa – Pantaleão e as Visitadoras (Pantaleón y las visitadoras)

Uma injustiça do cão: Mario Vargas Llosa nunca vai ganhar o Nobel de literatura por causa de sua visão política direitista. Às vezes desconfio seriamente que esse pessoal não sabe dar valor a bons escritores, independente de sua vida política (o mesmo vale pro Cèline, que como disse a Albana, quando exclamei dizendo que ele era fascista, “ele mantém seu fascismo a níveis muito saudáveis”). Porque, convenhamos, Vargas Llosa é, de longe, o melhor escritor de língua espanhola da atualidade (dorme com essa agora, García Marquez). O cara domina com maestria todos os gêneros e estilos da literatura: ensaio, romance, contos, até mesmo o gênero epistolar, pilar do livro Pantaleão e as Visitadoras, publicado em 1974.

Quem já leu alguns livros de troca de cartas (Cartas a Théo, a Caixa Preta, De Profundis, etc), sabe que ficar lendo carta dos outros não é a coisa mais divertida do mundo. Falta o dinamismo da narrativa, o livro pode se arrastar. Agora, quem conceberia um livro que é, em sua quase totalidade, um envio de correspondência — não de cartas normais, mas de ofícios militares — com um humor pastelão e escrachado? Vargas Llosa fez isso. Pantaleão e as Visitadoras é um livro absolutamente hilário que conta a história de Pantaleão Pantoja, um oficial do exército peruano incumbido de uma missão ultra-secreta por sua óbvia delicadeza: organizar um serviço de visitadora (prostitutas) em um posto do exército instalado no meio da selva amazônica. O motivo é palpável. Os soldados da tropa, metidos naquele fim de mundo sem civilização por perto, estavam estuprando as índias e mulheres de pescadores locais. O exército, pra não ficar difamado por seus soldados tarados, coloca Pantoja para levar de barquinho umas três ou quatro prostitutas até o posto.

Mas o protagonista é um militar altamente disciplinado. Começa a estudar o tempo de cada “serviço” e vendo que a quantidade de mulheres não é suficiente, logo começa a armar um esquema gigantesco de prostituição, com direito a uniforme, hino e bandeirinhas. Não demora muito a arrumar inimigos e problemas matrimoniais. Contar mais do que isso seria tirar boa parte da diversão desse livro.

A intenção de Vargas Llosa em Pantaleão é, mais uma vez, explorar as falhas e fraquezas das forças armadas. Firmou-se no mundo literário com seu romance A Cidade e os Cachorros, sobre a vida de estudantes do colégio militar, e muitos apontam A Festa do Bode, livro que narra ficcionalmente a vida de Rafael Trujillo, o temível ditador da República Dominicana. Mario, ele próprio, foi um cachorro, um aluno do colégio militar, e conheceu um serviço real de visitadoras quando visitou a selva amazônica em 1958, então escreve com conhecimento de causa cada um desses assuntos.

Falar de um projeto gráfico da editora Alfaguara é falar de todos. Os livros são padronizados numa mesma diagramação, mudando apenas a capa, ou, eventualmente o tamanho da fonte (aliás, alguém sabe a fonte que a Alfaguara usa?). Entretanto, a coleção de livros do Vargas Llosa está fenomenal. É foto da Getty Images? É, mas porra, são fotos muito bem escolhidas. Dos livros já lançados pela editora, me faltam a Guerra no Fim do Mundo e a Casa Verde. Meu aniversário tá longe, alguém aí não quer me dar?

Duas curiosidades: 1ª: Esta edição do livro foi traduzida a quatro mãos, por Paulina Wacht e Ari Roitman (ficou muito boa, por sinal). Inusitado, hein? 2ª O próprio Vargas Llosa co-dirigiu a versão cinematográfica do livro com José María Gutiérrez. Mas o filme não é nem de longe tão bom quanto o livro. Recomendado até os ossos.

Comentário Final: 246 páginas pólen soft de alta gramatura. Se pegar uns cinco desses e juntar em alguém, rola um sanguinho.

Pedro Juan Gutierrez – Trilogia Suja de Havana (Trilogia sucia de la Habana)

Estenda sua mão, dê um pescotapa e diga “se liga, mané”  em quem disser que Pedro Juan Gutiérrez escreve de um jeito bem parecido ao de Charles Bukowski. Essa afirmação é de uma imbecilidade que deveríamos ignorar, mas, ao invés disso, vamos explicar direitinho, para encerrar qualquer discussão.

Embora o Realismo Sujo (gênero de Gutiérrez) tenha alguns elementos físicos da literatura beatnik (de Bukowski), a forma como esses elementos são tratados é bem diferente. A principal diferença é que no Realismo, os espaços urbanos não são concebidos para serem o que são, e o personagem realista transite por esse espaço como um estranho, ao passo que os beats (bear, beats, battlestar gallactica) são incorporados ao lugar e sua destruição (boemias, sarjetas, bàs-fonds, etc). É uma explicaçãozinha meio rápida e vazia, mas se você quer aprender alguma coisa a fundo, sugiro não tentar fazê-lo em blogs.

Dizem que o cubano Pedro Juan resolveu escrever esse livro depois de ver uma criança fuçando o lixo em busca de comida, em plena Havana. É uma imagem poética para uma realidade ainda mais dura. Cuba passava por uma grande crise na década de 90, nos anos que se seguiram ao fim da União Soviética, a única amiguinha daquela ilhota em mais de cinquenta anos. Não havia comida, dinheiro, remédios, energia, nada. A maioria dos veículos de comunicação havia sido fechada por intervenção do governo. Para piorar, a vida do autor ia de mal a pior. Tinha três filhos para sustentar (sendo um bastardo), ganhava três dólares por mês e sua mulher estava a ponto de deixá-lo quando descobriu que ele tinha pelo menos umas seis amantes. Ficou completamente abandonado. E então escreveu essa coletânea de contos duros, crueis e desencantados com a realidade do país.

Tem de tudo na Trilogia Suja. Estupro, tráfico de órgãos, de drogas, de comida, tráfico de tudo na verdade, assaltos, assassinatos, e muito sexo, sempre. A literatura de Pedro Juan recende a cecê de longe. Difícil ler este livro e não se sentir incomodado pelas situações ali descritas, em uma mistura de ficção e realidade.

Hoje em dia, a edição que se encontra é a da Alfaguara (por isso mesmo vou colocar a tag na editora), mas eu li a publicação da Companhia das Letras. Um livro menor em tamanho, com uma fotografia sensacional na capa. Em tons pastéis, o fotógrafo captou muito bem a essência da literatura e da  Cuba de Gutiérrez (aliás, as fotos dos outros livros do autor também são sensacionais). A edição da Alfaguara tem um acabamento característico da editora, que é de excelente qualidade. A capa porém, preferiu privilegiar essa pluralidade (cheio de palavra com pê, hein?) de elementos da cultura latino-americana, colorida e um pouco sombria no conjunto. É bem da cultura cubana, mas pouco tem a ver com a escrita do autor.

Fui apresentado à sua literatura pela amada Carla Cursino, e hoje digo a todos: Leiam Pedro Juan Gutiérrez e sua Trilogia Suja.

Comentário Final: 382 páginas pólen soft molengas. Se quiser fazer estrago mesmo, melhor bater com a edição da Alfaguara.