Italo Calvino – O Barão nas Árvores (Il Barone Rampante)

Il Barone RampanteE aí, meus amigos, como vão vocês? Sei que hoje é domingo, mas, nesses dias, todos os dias estão sendo domingo pra mim. Estou aqui desfrutando de sombra e água fresca numa praia paradisíaca mas não esqueci de vir aqui. Vê se pode. Bom, hoje também é o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1, um dos esportes mais chatos que já inventaram na história da humanidade. Por isso queria mandar um oi muito especial para quem se descambou pra Sumpaulo, pagou quatrocentos reais pra ficar surdo e ficar virando a cabeça de um lado pro outro, enfim, saiu da zona de conforto totalmente justificável e vantajosa da poltrona de sua casa pra ver garotos ricos gastando gasolina em plena guerra do petróleo.

No último post, sobre o Dia da Coruja, nosso amigo Lucas comentou (aliás, os comentários estão rareando. Seria hora de uma nova promoção?) que não conhecemos os escritores italianos como deveríamos. Por isso resolvi falar aqui do Italo Calvino (de novo! e, por favor, vamos tratar de esquecer que ele nasceu em Cuba, ok?), porque se não somos lá muito íntimo dessa turma que curte um rondelli e uma mina gordinha, podemos bater no peito e dizer com orgulho que O Barão nas Árvores é figurinha carimbada na estante da galera. Isso porque tá pra nascer quem não goste desse livro emocionante, maravilhoso, estrogonoficamente sensível e inoxidável, segundo volume da trilogia Os Nossos Antepassados, que ainda contam com O Cavaleiro Inexistente (já resenhado aqui) e O Visconde Partido ao Meio (quem sabe um dia). Fala sério, vocês aí que não curtem unanimidades, não é por nada não, mas esse aqui é o novo Pequeno Príncipe, e eu sonho com os dias em que as belíssimas candidatas a miss universo citarão essa obra ao invés da outra, do Saint-Exupéry.

Pra quem não sabe, vou contar um pouco da historinha. Mas depois, vergonha na cara e dinheiro na mão, vá gastar um pouco do dinheiro que você despenderia com goró e compre um novo clássico. Bom, o barão nas árvores a que o título se refere é o protagonista do livro. E você achando que era uma referência abstrata a algo que não existe, do tipo “A Bruxa de Blair 2 – O Livro das Sombras”, no qual você descobre todo desapontado após duas horas, que não tem bruxa nem livro nenhum no filme. Trata-se do barão Cosme Chuvasco de Rondó, que, em um belo dia, resolve dar um piti infectado na mesa do jantar e renegar a grana do papai, o barão de Rondó. Daí, resolve subir numa árvore e passar o resto de sua vida empoleirado, acho que para não botar os pés nas terras do pai e nas terras de mais ninguém, mas vai saber. E resolve viver uma vida contributiva, inventando coisas que melhorem o seu conforto nas copas, coletando e compilando conhecimento e filosofia. Arruma até mesmo uma esposa e um cachorrinho, que se chama Ótimo Máximo e que, dentro da minha concepção, é um nome bem aceitável para um canídeo.

Acho que o Calvino quis mostrar com esse livro é como a vida pode ser vivida do jeito que se desejar, e que, independente da vida que levamos hoje e do ambiente em que nascemos, é sempre possível dar um salto para a originalidade e para a auto-realização, mesmo que isso signifique ser confundido com um muriqui de vez em quando. A história é narrada a partir do caçula do barão, que tem um olhar muito apaixonado e, ao mesmo tempo, distante e amargurado por não poder estar próximo do irmãozão. Isso aí foi a maior malandragem do autor, porque aí é facinho se emocionar junto com a narrativa.

O Barão nas Árvores mescla direitinho as duas facetas do autor: a fantástica, fantasiosa e emocionante, que é muito legal, e a realista, que é chatona (sério, não gosto dos livros da primeira fase dele). E, curiosamente, o lado fantástico arrastou suas razões para o livro. São totalmente imaginativas, porém plausíveis, as maneiras que ele inventa para fazer com que seu protagonista viva em cima das árvores. Engenhoso sim, mirabolante não. Pensem nisso.

De todos os livros da coleção do Italo Calvino lançado pela Companhia das Letras, esse é um dos mais bonitos, na minha humilde opinião. Embora seja “azul incomodante número 3”, tom do qual a Carlinha não gosta, mas ficou muito bonito, mais do que o “azul incomodante número 5” do Assunto Encerrado, coletânea de ensaios dele lançada ano passado. No resto, é igualzinho a todos os outros livros da coleção, com tradução do Nilson Moulin. Aliás, fiz uma constatação: já li todos (ou quase todos) os livros do Calvino traduzidos pelo Moulin. Todos os outros que eu ainda não li estão traduzidos por outras pessoas. Uma dessas coincidências.

Ah sim: O Cordel do Fogo Encantado fez uma música em homenagem a esse livro, prova que ele vai é o novo Pequeno Príncipe, falei?

Comentário final: 256 páginas em papel pólen. Perfeito pra derrubar muriqui dos galhos da sua amendoeira. (brincadeira, hein, Ibama?)

 

William Kennedy – Ironweed

Hoje eu to sem saco pra enrolar vocês por três parágrafos. A verdade é que toda vez que eu vou falar desse livro meu senso de humor se escoa pelo ralo como resto de miojo que fica na panela. Vamos direto ao ponto, então.

Ironweed é um livro que compõe o tal “Ciclo de Albany”, do escritor estadunidense William Kennedy. O “Ciclo” é uma série de sete livros até o momento (atualmente o escritor está finalizando o oitavo) sobre a cidade de Albany (e você achando que fosse sobre aquele sabonete com cheiro esquisito), capital do estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Já viu estado em que a capital é menor do que outra cidade de seu interior? Pois é, só Santa Catarina e Nova Iorque mesmo. As histórias dos livros têm Albany como pano de fundo para diversas histórias, mas eu não sei dizer quais são porque até agora a Cosacnaify só lançou dois títulos: O grande jogo de Billy Phelan e Ironweed. No primeiro, um rapaz meio viciado na jogatina que se recusa a ser X-9 mas ninguém acredita e começam a lhe fechar as portas.

Já em Ironweed, o protagonista é Francis Phelan, pai de Billy. Francis é um ex-jogador de beisebol que já não era lá essas coisas. Alcoólatra, pobre, devendo as calças pra venda e corno manso que só ele, volta à cidadela onde cresceu e fez fama pra confrontar seus fantasmas. E quando digo “fantasmas” não estou falando em sentido metafórico. Ele realmente fala com os mortos da lembrança dele, pessoas que tiveram seu fim de alguma forma relacionado à sua experiência. Isso aí de falar com fantasminha irritou muita gente que eu sei, mas falemos disso depois.

Francis tem uma mulher chamada Helen Archer, uma ex-cantora que, agora decadente, vive de favor dos outros. E também um amigo chamado Rudy, que além de ser pobre e dever as calças pra vendinha, tem câncer e vai morrer. É, amigo, como diz o Marcelo D2, “tá ruim pra todo mundo, o jogo é assim”. Os três vivem fazendo uns bicos na época da Grande Depressão (não, não é o show do Los Hermanos, é a consequência da crise da bolsa de 1929), matando um leão por dia em uma época em que o Ibama não pegava no nosso pé por isso. Então, passando pela humilhação, pela a bebedeira, pelo desbarrancadeiro, pela grana curta e pelos ectoplasmas inconvenientes, Ironweed é o clássico romance de bebum que Charles Bukowski explorou ad nausea, e por isso tem tudo para fazer o maior sucesso entre aquela raça de pessoa com o prazo da adolescência vencida que se passa nos bailinhos e curte óculos de sol maior que a própria cara.

Encanei com uma coisa nesse livro, que foi a linguagem. Mesclando vários estilos, o livro foi comparado ao Retrato do Artista Quando Jovem, do Joyce, mas eu, na humilda, acho que é inconsistência de quem não se planejou nesse sentido. Vamos combinar que se você é foi um cara com metade da sagração bovina de um Joyce o seu direito de pirar o cabeção nas suas escrivinhaduras não está exatamente legitimado. Mas calma, todas as oscilações de estilo ao longo do livro não são capaz de provocar a mesma fúria que causa um único parágrafo do Lobo Antunes, aquele xarope.

Ah sim, Ironweed foi adaptado para o cinema por Hector Babenco, aquele diretor que parece famoso, mas que na verdade nunca fez nada que você tenha visto, a não ser Carandiru. O filme tem estrelas do naipe de Jack Nicholson no papel de Francis, Meryl Streep no papel de Helen e Tom Waits no papel de Rudy. É praticamente um NBA de atores no mesmo filme. Eu comecei a ver, mas não terminei porque comecei a babar na gola da camisa. Ô filmim chato do caraça. Sempre dizem que o livro é melhor do que o filme, e até dá pra entrar numa discussão sobre o assunto em alguns casos, mas nesse não. Comparado com o filme do Babenco, o livro Ironweed é um porrilhão de vezes melhor. Quem viu, tá ligado.

Preciso mesmo falar do projeto gráfico? É da Cosacnaify, gente, não tem o que discutir. Tem até um alto-relevo na capa, foto sensacional, fonte ótima, papel ótimo, tudo nos trinques. Os livros do “Ciclo de Albany” seguem o mesmo projeto, e, putz, vou parar de falar pra não ficar babando ovo.

E aí vocês me perguntam: “Mas Yuri, e aquela crítica séria, engravatada, sóbria, que não enrola a gente e — essa sim — parece inteligente?” Meus caros, já sabem, é lá na revista Paradoxo. Nessa semana, o livro de Haruki Murakami que pôs todo mundo pra correr. Passa lá!

Comentário final: 272 páginas em capa dura. Quebra os óculos de sol maiores que a cara e revela o que tem por baixo deles: horror! Horror!

Italo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno (Se una notte d’inverno un viaggiatore)

Se una notte d'inverno un viaggiatoreDia 15 de outubro seria o aniversário de Italo Calvino, o rapazote das ideias mei malucas faria 87 anos hoje. Pelo menos eu acho que é isso, ele nasceu em 1923, não sei fazer as contas direito. Se soubesse, afinal, estaria enchendo o rabo de grana na engenharia. Então achei que seria uma boa homenageá-lo falando aqui do primeiro livro que eu li dele.

Se um viajante numa noite de inverno é um livro publicado em 1979, mas quando ele saiu nem me liguei muito porque a minha vida era um saco. Somente anos depois, em 2007, resolvi lê-lo, por indicação da Manu Salazar, que insistia que eu iria gostar da literatura do autor. Aí um dia ganhei ele do meu pai. Dois autores que nunca tinha lido: Italo Calvino e James Joyce, peguei um exemplar de cada autor e pedi para que meu pai, que não é nada chegado em livros, escolhesse. Ele escolheu o do Calvino, ainda bem, imagino eu.

Li o livro quando estava mudando de casa. Nunca vou me esquecer de um dia em que estava lendo ele no meu apartamento novo, que ainda estava em reformas. Uma tarde de frio e uma chuva desgraçada, eu deitado em uma esteira improvisada de papelão sobre o chão repleto de pó de cimento. À noite tinha ópera ainda, estava começando o namoro e a Carlinha, que estava deslumbrante, teve como acompanhante o sujeito mais mal vestido de todo Teatro Guaíra. Assisti ao Rigoletto tossindo pó de obra e fedendo como um cavalo suado. Anotem aí: coisas a não se fazer nos primeiros encontros.

Bom, Se um viajante… é um livro metalinguístico, pra dizer o mínimo. Trata de um sujeito que vai na livraria comprar justamente o Se um viajante numa noite de inverno, do Calvino, e começa a ler, achando super legal, até que descobre que seu exemplar veio com um defeito da gráfica: após a página 32 o livro volta ao começo, um erro na montagem das brochuras. Se vocês não sabem, cada gominho de páginas de um livro com esse tipo de encadernação tem 32 páginas, então o exemplar do protagonista estava repleto dos mesmos gomos. Então ele volta à livraria para trocar. E eis que o vendedor dá uma olhada no livro e afirma que aquela história não é do Italo Calvino, e sim de um outro autor, romeno se não me engano. Como o sujeito já estava totalmente envolvido no enredo, solicita um exemplar do livro desse segundo autor. Quando começa a lê-lo, tchanam! É outra história. Assim, entremeado de fragmentos de livros que sim, parecem todos excelentes, o protagonista se esforça para conseguir ler pelo menos um livro inteiro, enquanto, de quebra, tenta faturar uma mocinha. Sério, tem como não gostar de um mote desses?

Extremamente complexo, Se um viajante em uma noite de inverno, além de explorar diversos gêneros de literatura (todos demonstrados em um organograma no apêndice, em resposta a um crítico italiano), comenta, en passant, as nuances que envolvem a leitura e que estão intrinsecamente conectadas à escrita. O fato de 32 páginas serem suficientes para envolver alguém em uma leitura, por exemplo. Convenhamos que, hoje em dia, livro que não esteja engrenado até a página 30 tá no sal. Neguinho coloca de lado e vai jogar videogame mesmo, sem dó nem piedade. Até a época em que Calvino escreveu esse livro, porém, não era raro o livro engatar lá pelo terceiro ou quarto capítulo. Talvez seja uma alma de contista que se encerre nos romancistas de hoje em dia, quem sabe?

Ah sim, deixei o melhor pro final: a narrativa do livro não é em primeira ou terceira pessoa. É — se é que isso existe — em segunda pessoa! Isso mesmo, o narrador fala diretamente com o protagonista, que é você mesmo, que lê o livro. Isso sim é entretenimento, hein? Se liga no começo:

“Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo à sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros ‘Não, não quero ver televisão!’. Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’. Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: ‘Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!’. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.”

Fala sério, maneríssimo, né não? Acho que esse começo fala do livro por si só.

Bom, o projeto gráfico da Companhia das Letras é lindíssimo, mas causou confusão pro meu pai “Que são esses retângulos aqui na capa? Que tem a ver isso com o livro?”, ele perguntou. A coleção do Calvino é uma das poucas da editora com fonte Garamond, mas vale a pena, dá um toque de finesse pro alfarrábio. A tradução é de ninguém menos que Nilson Moulin, que traduziu do italiano também o A Cada um o Seu, do Leonardo Sciascia, que eu já comentei neste blog. Sem o Nilson, tava todo mundo ferrado, minha gente, deus abençoe os bons tradutores. No mais, papel pólen e uma capa verde musgo, talvez a minha cor favorita (deu pra perceber nesse blog ou não?).

Comentário final: 275 páginas em pólen soft. Pimba em quem tá com a televisão ligada!

 

Enrique Vila-Matas – Suicídios Exemplares (Suicidios ejemplares)

Suicídios exemplaresEis que, no fim do mês passado, bem naquele período de apertar o cinto, quando sobra mês pro salário, a Cosacnaify, editora que adoro e admiro, resolveu fazer uma vileza com todos nós: colocou em sua loja virtual uma promoção de 24 horas com livros caríssimos pela metade do preço. Era Moby Dick saindo a 55 reais, trilogia do Górki a um galo, ensaio do Levi-Strauss saindo mais barato que cd do Calipso. Enfim, bate aquela sensação de que o mundo inteiro está se divertindo e você aí, na pior. Eis que minha mãe surge para livrar-me da dor de ver e não ter e disse “escolhe dois aí de presente de dia do amigo”! Gente, que mãe legal! Sem pestanejar, escolhi dois livros do espanhol Enrique Vila-Matas. Li um deles e agora estou aqui para comentar com vocês, queridos leitores, a genialidade desse rapazote no livro Suicidios Exemplares.

Deus sabe que não gosto de livro de contos. Dos contos sim, gosto muito, e leio com prazer. Mas livros de contos — vai vendo — são cansativos a dar com pau: o desgaste de entrar no clima de uma história para logo sair dela é um ônus do costume de ler romances. Quando eu lia só contos, achava tranquilo. Mas aí é que tá, camaradinhas: não experimentei esse cansaço nos contos do barcelonês. Talvez, por todos eles serem permeados pelo mesmo tema: o suicídio.

A ideia de um suicídio exemplar é doidona, tá ligado. Aliás, suicídio é um conceito com muitas limitações de caracterização: não pode ser ideal, não pode ser exemplar, e por aí vai. Mas o que Vila-Matas fez, de maneira diabólica (e Vila-Matas ao contrário é Satam Alive, né?) foi explorar o tema e quase esgotá-lo em narrativas eletrizantes. Nelas, o suicídio não só o desfecho lógico como também a justificativa para a própria literatura. Já diziam esses sujeitos emos tipo Cioran, que o suicídio é um ato de afirmação. A morte é a verdade do amor e o amor é a verdade da morte, diz o espanhol lá em dado momento. E a afirmação de Vila-Matas na literatura é justamente a do sumiço, é ou não é? De Bartleby e Companhia, que trata do ofício de desistir de escrever, passando por Doutor Pasavento, que aborda o desejo de desaparecer, o suicídio também pode ser essa saída à francesa, quando não é aquele escarcéu de pobre de “aaaaaargh, eu vô pulááááá”. Talvez seja esse o exemplo dos suicídios do livro afinal: não incomodam ninguém, e são sabidos apenas dias depois.

Enrique Vila-MatasEntre os contos, dois são excepcionais: “As noites da íris negra”, um conto que desafia sua capacidade de largar a leitura no meio da história. Fala do mistério que envolve a morte do pai de uma gatinha que o narrador tava a fim de carcar, e falar mais do que isso é um crime ao conto. E “Pedem que eu diga quem eu sou”, onde o autor vira personagem e trava um diálogo sensacional com um pintor metido a sabichão, considerado o último dos realistas por pintar placidamente um povo “verdadeiramente diabólico”. Esses dois contos — trocadilho prego — dão conta de exemplificar o poder da narrativa de Vila-Matas, seja qual for o aspecto principal da narração, o diálogo ou a descrição. Em descrição, aliás, o penúltimo conto, “O colecionador de tempestades” descreve um ambiente tão sombrio quanto engraçado, e fecha o livro com uma ideia: todo suicídio acaba sendo um espetáculo. Digo penúltimo porque o último mesmo é um trecho de uma carta do gordinho Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa antes de seu suicídio, lhe informando da chegada da estricnina. O título, que abre o excerto da carta, “Mas não façamos literatura”, é um capítulo a parte, uma resenha a parte, que nem eu nem você iremos fazer.

Acho que comentar o projeto gráfico da Cosacnaify é dispensável, né? Os livros são todos sensacionais. Essa coleção do Vila-Matas principalmente. Com essas fotos da Corbis e essa preparação da capa, a gente tem a certeza de que fez um negócio da China por comprar o livro pela metade do preço. Aliás, sugiro entrar ali no blog da editora para ver as capas alternativas a esse livro. Acham que ficaria melhor? Eu, particularmente, não acho. Essa foto matou a pau.

Ô velho, esse cara é a cara do Ney Latorraca ou não é?

Comentário final: 205 páginas em papel pólen soft. Pouca coisa, seu fresco! Toma mais!

Lourenço Mutarelli – O Cheiro do Ralo

O Cheiro do RaloE aí galera, belezinha? Estamos chegando ao final de mais um mês, daqui a pouco o Livrada! completa quatro meses, como o tempo se arrasta…

Gente, vamos ajudar a divulgar o blog. Linkem, mostre para a sua avó, sugiram como pauta para os seus veículos de comunicação, comentem com os amigos na rodinha do café, pixem a URL nos muros da cidade (mentira, não façam isso que é contra a lei!), enfim, vamos expandir essa pequena comunidade de leitores, hã, que tal? Assim todo mundo se anima a inventar coisas novas…

O post de domingo é aquele post garoto, aquele post malandro, oportunista que só ele, pegando carona no hype da galera, surfando no tsunami da modinha. Eis que, sexta feira, Lourenço Mutarelli, autor de hoje, esteve na Itiban para bater um papo com seus fãs e leitores em geral. E pensei: “Ora, por que não fazer um post sobre o gajo?” E, para escolher a obra a ser tratada aqui primeiro (pois tenho essa ambição louca de resenhar todos os livros que já li), resolvi escolher O Cheiro do Ralo, não só porque foi o primeiro livro dele que eu li, segundo porque o filme, baseado na obra, tem aquele significado especial pra mim e quem sabe tá ligado.

Lourenço Mutarelli disse lá na Itiban que a ideia para o livro veio de um pensamento trivial, que é o seguinte: seu ateliê de literatura e desenho fica no quartinho da empregada, que tem um banheirinho (é chique pacaceta isso: a única suíte do apartamento quase sempre é da empregada) do qual saía um cheiro horroroso. E ele pensou que, um dia, esse cheiro ia acabar queimando os miolos dele. A partir daí, compôs uma maravilhosa história sobre a loucura e as possessões, protagonizada por um personagem que ele diz ser o oposto dele em termos comerciais. Mutarelli afirmou sempre ser muito mal tratado pelo comércio por sua mal-trajância (aí, galera do dicionário, chega mais) e resolveu que seu herói cuzão seria alguém que sempre levasse vantagem nas negociações, sempre lucrasse. Daí nasceu Lourenço, dono de uma lojinha de objetos usados que é atormentado pelo cheiro do ralo do banheiro. Impetuoso e cruel com seus clientes, só possui duas fraquezas: o cheiro do ralo, que não quer que ninguém pense que é dele, e a bunda de uma garçonete de um botecão.

Lourenço MutarelliA história é um pouco indescritível por ser formada de vários acontecimentos sem muita conexão entre si. Basicamente é o retrato das obsessões do personagem em busca da famigerada bunda. Diria que o filme é recomendável para conhecer o universo de Mutarelli, não fosse o livro ser tão mais esclarecedor nesse sentido. Primeiro que muitas das histórias escritas não foram transpostas para a tela (entre elas, a do sujeito que gostava de rasgar dinheiro, um dos pontos altos da trama), segundo porque o estilo do autor, extremamente econômico nas palavras, dá a história um pouco do distanciamento necessário para a noção do desconhecido, mesmo que se trate de uma narrativa interior, com fluxos de pensamentos e tudo mais (herança beatnik, né? Ele deve ser o único cara da face da terra que fez algo de bom com essa influência beat). Mas sim, assistam o filme também, afinal, tem o Selton Mello, esse sujeito engraçado que só faz papel de si mesmo e transformou uma história extremamente down em algo, no mínimo, tragicômico.

Mutarelli escreveu o livro em 2001, durante cinco dias, e publicou pela Devir esse livro. Eu realmente espero que algum dia ele consiga que esse livro seja republicado por outra casa editorial. Vamos combinar que a Devir pode manjar de quadrinhos, mas puta merda, tem muito o que aprender na editoração de literatura. Se eu disser pra vocês que a ficha técnica do livro tá escrita em Comic Sans, vocês vão dizer “esse Yuri diz cada besteira…”. Mas é sério. Pior de tudo é que é sério. E não é tudo. Papel offset horroroso, capa mole sem orelha podrassa e, depois que o filme foi lançado, uma dessas capas de papel que cobrem a capa original pra levar o livro no sucesso da telona, só que é um papel tão vagabundo que ele raspa e perde a impressão, parece aquele papel de bobina de cartão de débito, de tão podre que é. Um desrespeito tamanho com a obra do cara. Se fosse comigo, eu ficaria puto.

Há pontos positivos também. Na quarta capa antiga, uma carta do músico (?) Arnaldo Antunes muito elogiosa, e na quarta capa nova, o depoimento de Selton sobre como ele se tornou o Lourenço na adaptação cinematográfica. O prefácio (econômico que só ele) é assinado por ninguém menos que Valêncio Xavier (hum, preciso falar de algum livro dele por aqui, não acham?) e os capítulos são permeados de ilustrações do próprio autor, uma prática que se mostrou constante em suas publicações literárias futuras. E claro, o principal ponto forte dele é a grande história. Mas, no resto, parece livro pirateado.

A resenha de hoje está curtinha, eu sei. Voltaremos na quarta com mais livros bons.

Comentário final: 142 páginas de offset. A vida é dura.

Herman Melville – Bartleby, o Escrivão (Bartleby, The Scrivener)

Oi Yuri, como você está? Eu estou bem, gentileza sua perguntar. Como foi a banca da monografia? Ótima, amigo, nota dez pra refrescar a cabeça depois de ano e meio de trabalho. E agora, bola pra frente e taca carvão nessa máquina massacrante de literatura que é o Livrada!

Meus amigos, em verdade vos digo: às vezes é um pouco trabalhoso conseguir ter alguma parte da cultura coletiva instalada na sua cachola. Claro que muita gente já ouviu falar de Moby Dick, mas você sabe de verdade quem já leu? Pouquíssimas pessoas. A mesma coisa com Dom Quixote. Se você quiser bater no peito e falar que leu a obra-prima do Cervantes, vá lá, mas prepare-se para centenas de páginas para serem vencidas, caso contrário, a única coisa que você vai saber sobre o engenhoso fidalgo é que ele, durante umas duas páginas, fala de uns tais moinhos de vento. E aí se prepara para os pescotapas e os amigos te zuando de leitor de orelha e afins. Agora, existem livros menores e mais fáceis de serem lidos, entendidos e utilizados em suas conversas de boteco. Pra isso, o papai aqui dá a dica: Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville.

Mais por desencargo de consciência — acredito que a maioria dos meus leitores já deve ter lido esse livro — a história fala de um advogado de Wall Street que contrata um copista pra ajudar nas tarefas, que só aumentam. O sujeitinho é estranho, não conversa, não come e não lê nada. Mas enfim, era o começo daquela falta de interesse na vida alheia que assola a modernidade desde que instituíram a bisbilhotice como coisa típica de gente da roça. Então ele vai deixando passar. Até que um dia, Bartleby se recusa a fazer a tarefa que lhe é conferida. E a partir daí, não faz absolutamente mais nada, sempre respondendo com o seu inigualável bordão: “Acho melhor não”. Tá, não contei absolutamente nada de novo pra vocês, né?

Primeira consideração sobre esse livro: Claro que o personagem de Bartleby é cativante (menos naquela montagem teatral que fizeram da peça. Sem querer ser machista, mas acho que igualdade de sexos não serve na hora de interpretar papéis masculinos), uma análise mais fria (e simplista) da história pode mostrar que o Bartleby é só um obstáculo, uma parede em um beco sem saída na qual o narrador advogado bate constantemente, a cada tentativa de gesto de boa vontade por parte dele. O advogado, esse sim, é o mérito do conto de Melville. Na narração em primeira pessoa, a primeira frase do segundo parágrafo justifica o livro inteiro: a ideia sustentada por ele de que a vida mais confortável é a melhor. E o que é mais confortável do que ignorar a existência de um problema, como ele faz? A construção desse personagem é que é o barato do livro, e vocês hão de concordar que muitos de nós não agiríamos diferente do narrador, em prol da civilidade que neguinho brada aos quatro ventos.

Segunda consideração: Melville antecipou em uns 80 anos o tipo de suicídio social que a gente vê hoje, a vagabundagem por opção. Claro que ninguém nunca ficou sabendo por que Bartleby deixou de viver, e nem era a intenção explicar isso. Sabe, né? Mesma coisa da prevaricação da Capitu, o buraco que o autor deixa pra fazer a obra perdurar em debates bestas de professorinhas de literatura que organizam tribunais na sala, dividindo em acusação e defesa da cigana os mancebos, que, a essa altura, só estão querendo saber mesmo é de ir pra casa fazer negócios escusos. De qualquer jeito, essa vagabundagem por opção, essa decisão por não fazer mais nada é algo que instiga tanto todo mundo como se ninguém nunca tivesse preferido não fazer alguma coisa. De Enrique Villa-Matas, que usou o nome do copista para fazer um livro sobre os escritores que deixaram de escrever (aliás, alguém aí já leu Villa Matas? Qual livro deles recomendam?), a Homer Simpson, que já dizia que se algo é muito difícil então não vale a pena ser feito, todas as vontades passam pelo filtro de nosso juízo, que analisa cada situação e vê se a gente não vai dar com os burros n’água. Viram isso que eu escrevi? Um péssimo jeito de terminar um parágrafo. Anotem e aprendam como não fazer.

E chega de papo, vamos falar desse projeto gráfico da Cosacnaify. Já me dei conta que a editora está mesmo no ramo da arte, e juntar a arte de fazer um livro com a arte da literatura. Essa edição maravilhosa vem toda costurada artesanalmente, e, para começar a ler o livro, você precisa descosturar a capa e abrir (de preferência com um estilete ou um abridor de correspondências; eu usei minha inseparável balisong) cada par de páginas. Para isso, eles fornecem um marcador transparente, que não é exatamente a ferramenta ideal, mas é bonito e serve como um marcador mesmo, para a VIDA. Só fiquei um pouco triste porque a capa é de couro verde, e, devido às condições insalubres do meu apartamento, ela acabou mofando e desbotando em algumas partes. Mas tudo bem. Ah, comprei esse livro por R$1,50 porque a Saraiva tava fazendo uma promoção com ele a R$16,50, valor do qual abati quinze reais com meu cartão fidelidade (cartão fidelidade, aliás, é um conceito muito agressivo. Pensar que alguém é fiel a uma loja é rebaixar a dignidade humana a uma subserviência comerciária. Desprezível *ptuu* cospe no chão). Tudo isso para você ser ainda mais ativo ao ler o livro e, ao contrário de Bartleby, achar melhor sim, abrir cada página do livro pra saber o que acontece. O livro vem embalado no plástico que traz o bordão de Bartebly estampado, uma provocação pra você ler o livro. Aliás, “Acho melhor não” é a tradução que melhor cai aos ouvidos, da expressão original “I rather not”. Traduzir ao pé da letra — o “prefiro não” da peça já mencionada e da edição publicada da L&PM realmente não desce redondo. Assim como utilizar a palavra “Escrivão”, ao invés de “Escrituário” das outras edições também ficou melhor, na minha singela opinião. Ah, esqueci de dizer que o posfácio é assinado pelo Modesto Carone, o homem-Kafka, que, obviamente, não deixa de citar o escritor tcheco. Fico imaginando se, ao invés do Caetano, o pessoal do Segundo Caderno entrevistasse o Carone. “E aí, Sr. Carone, o que o senhor acha dos discos lançados apenas na internet?”, “Ah, veja bem, Kafka…” (Brincadeira, hein, Modesto).

Comentário final: 46 páginas offset. Se for bater em alguém com Melville, ainda é melhor usar o Moby Dick.

Leo Frobenius e Douglas C. Fox – A Gênese Africana (African Genesis – Folk Tales and Myths of Africa)

Em época de Copa do Mundo, nada existe e nada funciona de verdade, certo? Errado, campeão. Continuamos com a obstinada missão de comentar e trazer ao conhecimento do público livros da boa literatura, sem necessariamente recair em maneirismos críticos.

Vou ser sincero: Escolhi aleatoriamente um livro na minha estante. Calhou de ser esse. Tem culpa eu se a Copa do Mundo está rolando na África e nós aqui estamos falando de cultura africana? Tenho nada a ver com isso não, hein? Esse blog é isento de dinheiro, bom senso e não mama nas tendências desse mundo fashionista, moro? O livro em questão é A gênese africana – Contos, mitos e lendas da África, escrito por Leo Frobenius (já falo dele) e organizado por Douglas C. Fox (não vou falar nada dele, nunca ouvi falar nesse gajo). O livro busca, como diz o título, realizar um apanhado de lendas e mitos formadores da cultura africana em seu primórdio, ou seja, ver o que esse povo pensava quando não estavam preocupados pensando em comida (ô, maldade!).

Leo Frobenius — agora sim, vamos lá — é uma figuraça, como vocês podem ver nessa foto biíta dele. Antropólogo e etnólogo alemão (por isso, além de encaixar em literatura africana, também vai ganhar a tag de literatura alemã, para estrear a categoria), percorreu, no começo do século XX, as grandes savanas e desertos africanos em expedições dignas de um Indiana Jones comedor de chucrute para resgatar a origem das tradições de alguns dos principais povos de lá, em especial os cabilas, povo que morava onde hoje é a Argélia. Mas além disso, cavucou alguns mitos soniqueses, fulas, mandeses, nupes e hauçás (sim, hauçás, aquele povo zangado da Nigéria). Ah, e rodesianos do sul também, onde hoje é o Zimbábue. Sabe aquele povo que fala estalando os dentes? Pois é. Baseado nisso, fez um dos maiores compêndios sobre mitos africanos já reunidos, que depois deu origem a uma infinidade de livros charlatães que se propuseram a fazer o mesmo com outras civilizações, dignando-se a reescrever as lendas com algumas variações. Duvida que exista gente tão pilantra nesse mundo? Teste rápido para os folcloristas: já ouviram aquela lenda do crânio falante, que faz o guerreiro iludido trazer o rei para vê-lo e, diante da mudeza súbita da caveira, resolve matá-lo? Pois é, amigo, é uma lenda nupe, sim senhor, e você passou a vida achando que era angolana, ibo, até mesmo dos escravos brasileiros que vieram de Angola. Inclusive virou uma novelinha daquele “Casos e Causos” da Revista RPC. Pra quem não sabe o que é Revista RPC, considere-se afortunado.

O grosso do livro, realmente, é o material cabila coletado por Frobenius. Muito legal ver que a ideia que eles tem do gênesis, além de ser muito diferente da Bíblia (mantendo-se alguns aspectos como o do primeiro pai e primeira mãe), não fazem o menor sentido. Anacronicamente, é muita falta de noção desse povo, hein? Mas também, amigo, queria o quê? Poesia homérica nascendo ali no meio do pessoal que vive correndo de leão? Salmo 23 escrito por um negão entre uma matada de mosquito e outra? Você sabe que não rola. Ainda assim, vale a leitura se você conseguir sacar como essa tigrada pensava no começo da raça humana. Vou dizer: não é muito diferente de um sonho ou uma bad trip. E os mitos e fábulas deles são engraçadíssimos porque, além de não fazer o menor sentido, como já disse, também não tem aquela preocupação de moral da história que fez tão famosa a literatura xinfrim européia (européia ainda tem acento? Ajudem aí, linguistas, tô sem a gramática por perto). Pérolas do tipo: A raposa queria comer uma galinha. Aí o leão disse: ‘vai lá e se finge de galinha’. Aí vem um cara e mata o leão. Inevitável aquela cara de “what the fuck?” nessas horas.

E vamos ao projeto gráfico do livro. Olha, pra uma editora mais lado B como essa Landy Editora, esse livro está bem decente. Tem um prefácio do Alberto da Costa e Silva, que eu não conheço e já não gosto (nada pessoal, Sr. Costa e Silva, mas, além do seu sobrenome nada amigável, o senhor é imortal da ABL e, até vocês me chamarem pro grupinho, tô torcendo contra, hein?) Apesar do maldito papel offset, a fonte não é das piores e o cabeço é, pelo menos criativos. Ah, e não faltam ilustrações bonitas e toscas, feitas por uma tal de Kate Marr, funcionária do Forschungsinstitut für Kulturmorphologie in Frankfurt-am-Main (quer saber o que é isso? Faça como eu e comece a frequentar as aulas de alemão). Além disso, alguns retratos desenhados durante as expedições, feitos para você saber que seu senso de beleza e estética está completamente engessado por modelos magrelas, branquelas, que são só titela (pra rimar). Uma capa bacaninha, como vocês podem ver, e folhas de respiro no começo e no final do livro todas pretas e em papel cartão, pra ficar mais tchananã. Ah, e por incrível que pareça, não é difícil achar esse livro. Só não lembro ainda por que foi que eu o li. Tinha uns 16 ou 17 anos na primeira lida. Bom, nem Deus sabe o que passa na cabeça da gente quando a gente é adolescente, né verdade?

Comentário final: 238 páginas compridas em offset. SHHHHPAW!!!

Rosa Montero – História do Rei Transparente (Historia del Rey Transparente)

E começou as postagens do meio da semana. Agora é assim. Tá cansado de ter que esperar o domingão, o único dia que você tem pra passar longe de um livro, ou o único dia que você tem pra LER um livro, pra ler uma resenha ixperta aqui nesse blog horroroso (esteticamente falando)? Tudo bem, agora tem postagem quarta feira também, maluco!

Vixe, demorou pra esse livro ser a bola da vez aqui, hein? Rosa Montero é a minha escritora espanhola favorita (até porque nem sei se eu conheço mais escritores espanhóis — e Cervantes não vale né, porra?), e a Historia do Rei Transparente foi o primeiro livro dela que eu li. E digo mais: li no original, em ER-PA-NIOL. Éééééé cumpádi, tá pensando o quê? Aqui não tem filho de pai assustado não! E que satisfação ler um livro tão bom no original. Dá a sensação de que, se alguma coisa se perdeu na tradução, você não deixou passar.

Bom, esse livro é também, de longe, o maior sucesso editorial da Rosa. Ela tem uma santíssima trindade dos seus livros: pra quem curte uma história mais fantasiosa, a História do Rei Transparente não tem pra ninguém. Pra quem curte algo um pouco mais pé no chão e ainda assim, igualmente boladão, o livro certo é a Filha do Canibal. E, finalmente, pros cabeçudos e pseudo-cabeçudos que curtem um ensaiozinho assim, de leve, mel na chupeta, A Louca da Casa é o que há. Espero falar de todos, mas hoje, nos interessa aqui o primeiro, o fantasioso bolado, LESKE (ih, quem não é do Rio boiou agora).

A História do Rei Transparente é o resultado de uma grande pesquisa da autora sobre o período medieval — as cruzadas, mais especificamente. Se passa na frança rural e conta a história de Leola, uma mocinha roceira daquelas de dênti pôdi que dá na festa junina que, um belo dia, se vê órfã no mundo por causa dos cavaleiros que passaram ali e mataram todo mundo. Como não bastasse, o namoradinho, Jacques, se manda pra lutar pela causa, arrastado contra sua vontade. Sem ter muito o que fazer, ela se veste com a armadura de um homem morto e se passa por homem para sobreviver em um mundo de homens. E não é isso que a mulherada (não todas, só as que tem juízo) anda fazendo nos dias de hoje?

Aventurando-se pelo mundo, ela conhece Dhuoda (gente, desculpa se os nomes são outros na versão traduzida, ok?), uma bruxa que não é bruxa mas sim, antes de tudo, uma mulher de razão e conhecimento, a bruxaria da época (deixa só eles saberem que ser bruxa hoje é ser gordinha de batom preto, cabelo bom e escutar Tristania). Juntas, as duas vão, aos poucos, arrebanhando um exército de desajustados, ou melhor, de desqualificados para a época. Anão, gente com síndrome de down, enfim, tudo com o que o Todd Solondz poderia fazer uma piada só está ali, é a sua trupe.

A História do Rei Transparente é, antes de tudo, um romance sobre a intolerância e sobre a inadequação ao mundo — algo que todos nós (não todos, só os que têm juízo) já experimentamos uma vez ou outra. Sabe aquelas merdas que falam sobre os clássicos da literatura que é um livro que, embora se passe em outra época, é atual e blá blá blá whiskas sachê? Mentira, amigo. Tô lendo Anna Kariênina e nunca aquilo ali vai ser algo atual depois dos anos 60. Tá ali um livro que cheira a museu, rapaziada (tá certo, alguns podem ser de fato atuaizassos, mas a grande maioria vai só na aba dessa mesma justificativa que, acredite, não se encaixa em todos os clássicos). Esse livro sim é atual. Tá certo, foi escrito em 2005, mas é atual na alegoria de algo antigo que se faz atual (Ah, não vem não, que você entendeu). Por isso, é um clássico da literatura. Como que eu sei? Tá com a tag “clássico da literatura”. Tá ali, pode ver, é clássico sim.

E que personagens memoráveis, amigos. Que narrativa fluída (mesmo em erpaniol), que sagas emocionantes, que história cativante. Fico boladão como a galera não tá tão ligada nesse livro quanto deveria estar. Candidato a ser livro favorito de muita gente. Quero ver engolir o choro lendo esse livro, quero ver! Quem não leu tem que ler e quem já leu tá ligado na missão. Ó, tô recomendando, hein? Não é todo dia que eu recomendo livro aqui, só limito-me a comentá-los, mas tô recomendando esse.

Boa notícia pra quem gosta de erpaniol: Dá pra achar esse livro no original, numa belíssima edição da Alfaguara. Talvez na Fnac. Senão, o jeito é ler a versão em português, da Ediouro, numa edição bonita também, mas não tão bonita quanto essa da Alfaguara. Por isso, as duas editoras levam as tags de hoje. No começo do livro ainda tem, como é peculiar dos livros medievais, um mapinha, inclusive com a suposta indicação da ilha de Avalon. Isso, aquela mesma que aparece na revista dos famosos… Animal!

Ah, e o que é a História do Rei Transparente? Por que esse livro tem esse título? Eu é que não vou contar, tenho amor à vida.

Comentário final: 574 páginas pólen soft. Sabe aquela cena do extintor de incêndio em Irreversível? Dá pra trocar o extintor por esse livro.

Mia Couto – Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

Mia Couto, caralho! Tava demorando para esse mestre aparecer por aqui. E justamente com qual livro senão o meu favorito em língua portuguesa (depois do Grande Sertão, lógico): Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.

Conheci o autor através do amigo Cássio (compadre meu Quelemém), que emprestou O outro pé da Sereia para a Carlinha, que sempre foi muito mais destemida para literatura do que eu (do tipo “Ah, acho que vou começar a ler Górki”), e ganhei o livro de Natal do pai numa festinha na Fnac. Vou falar que fiquei com um pé atrás com esse título, que soa como a) livro de poesia (ugh!) b) livro psicografado pelo espírito Lucius (ou coisa que o valha) c) livro arrogante com nome arrogante, do tipo “O Pêndulo de Foucault” d) livro de escritor que publica livro independente e vende na feirinha (“ganha um cd com mantras para ouvir enquanto lê, bicho!”). Claro que o livro no fim das contas não era nada parecido com o que eu achava e isso me ensinou a não ter preconceito com título de livro (mais ou menos, ainda não tive coragem de ler O Segundo Sexo).

Um rio chamado tempo conta a estória de Marianinho e sua família, e parte da ocasião da morte de seu avô Dito Mariano em Luar-do-Chão, uma daquelas aldeias onde a única opção de lazer deve ser o barranqueio. Voltando à aldeia, o neto reencontra a família de tipos engraçados e nomes mais engraçados ainda: os tios Abstinêncio, Admirança e Ultímio, a avó Dulcineusa, sem falar no seu pai, Fulano Malta. No meio do velório e de tanta coisa esquisita tida como tradição local, como tirar os telhados da sala para o velório, Marianinho começa a receber cartas do avô morto. Aí entra um viés policial que, até pouco tempo atrás (antes de Antes de nascer o mundo, seu último livro), era uma característica corrente de sua obra. O mistério a ser resolvido, esse, muito mais num lance Miss Marple, faz de uma ocasião chata pra caralho (afinal, velório só era legal pro Nelson Rodrigues) no cu do mundo um thriller de suspense familiar eletrizante (maldita Sessão da Tarde e os vícios que ela deixou na nossa escrita).

Vi uma entrevista com o Mia Couto uma vez na televisão junto com o José Eduardo Agualusa, onde ele falava que a molecada de hoje quer muito escrever mas quer fazer literatura só de palavras bonitas. Ele nos lembrava da importância de se ter uma história para contar. E o Mia Couto tem história pra contar sim, hein? (Menos naquele Venenos de Deus, Remédios do Diabo) A história não te larga e você, por sua vez, não larga a história. Eu li esse livro em dois dias e fiquei amarradão.

Mas, além da boa história para contar, Mia Couto também SABE escrever (com tudo maiúsculo). Sério, rapeize, esse moçambicano é a melhor coisa da língua portuguesa desde Guimarães Rosa. E não é só a prosa fluida e a musicalidade de seus parágrafos, é tudo: seu estilo híbrido, seus neologismos que brotam da terra e suas pequenas filosofias que são despejadas de torneirinha no livro (se bem que às vezes ele não sabe a hora de fechá-la um pouco). Eu geralmente me limito a resenhar os livros, mas dessa vez vou abrir uma exceção e dizer que se você gosta de boa literatura e de linguagens diferentes, você precisa ler Mia Couto. Se você for cagalhão como eu fui quando peguei esse livro pra ler, sugiro uma coisa: Vá numa livraria, pegue esse livro para folhear e leia as frases que abrem os capítulos, de autoria do autor: “O mundo já não era um lugar de viver. Agora, já nem de morrer é”, “A mãe é eterna, o pai é imortal”, “Se eu não creio em Deus? Lá crer, creio. Mas acreditar, eu acredito é no diabo”, etc, etc. Amigo, só um retardado mental não percebe a preciosidade que existe por trás da escolha de palavras para compor esses ditos e filosofiazinhas.

E o projeto gráfico da Companhia das letras hein? Sen-sa-c-i-on-al (porra, preciso reaprender a separar sílabas) Uma fonte especial para os títulos das obras, capas coloridas com desenhos em silhuetas translúcidas, porra, fantástico. Só uma ressalva, que é coisa de gente chata eu sei, mas o nome do autor ficou na metade da lateral ao invés de ficar no topo como todos os outros livros. Damm, nigga! No mais, tudo um pitéu: fonte maneira, papel maneiro e o principal: falta de economia com papel. Acho ótimo deixar sempre o título do capítulo numa página a parte, sempre no lado ímpar, coisa e tal. Mostra que você tá nessa pra fazer algo que valha a pena os quarenta e cacetada reais que você gasta no livro.

Comentário final: 262 páginas em papel pólen soft. Pimba!

PS importante: Porra, como esqueci de colocar isso aqui? Eu entrevistei o Mia Couto para a Gazeta, sobre seu livro mais recente “Antes de nascer o mundo”. A entrevista está aqui.

Lygia Fagundes Telles – Meus Contos Preferidos

Não há dúvidas de que a senhora Lygia Fagundes Telles é, talvez, uma das escritoras mais originais do Brasil que ainda respiram. E nesse sentido, acho legal as faculdades que colocam livros dessa simpática e perturbada vovó na lista das obras obrigatórias para o vestibular. Em meio à tantos floreios parnasianos da literatura hã… clássica brasileira, as verdadeiras odisséias na maionese dos contos de Telles são um oásis em meio a um strokes. Peraí que não gosto nem de oásis nem de strokes. Digamos então que é como um dead kennedys em meio a um monte de parangolés. Quem a vê, com aquela cara de quem é da turma de oração da minha vó nunca imagina que Lygia escreve coisas como um gato que quer transar com um quadro (ou algo assim).

É um fato também de que a escritora é muito mais reconhecida por seus contos do que por seus romances, e isso, camaradinhas, é honra pra qualquer um que escreve contos. Considerado um gênero menor, o conto é aquela coisa que as editoras “suportam” enquanto um romance novo não aparece (há uns tempos atrás teve um G ideias bem legal sobre isso, busquem lá). E Lygia Fagundes Telles escreveu romances, meus amigos, romances reconhecidamente bons inclusive, como As Meninas (bom xi bom xi bom bom bom) e Ciranda de Pedra, que virou novelinha da Globo. Mas é realmente no conto que ela prova a que veio. Com poucas (bom, às vezes muitas) páginas, ela consegue montar verdadeiras tensões, angústias e qualquer outra coisa que ela queira porque ela é FODA!

E tudo isso pra falar de sua antologia pessoal, intitulada Meus Contos Preferidos. Acho que preferidos não só da autora mas também da torcida do Flamengo. O livro é só história boa, e são muitas: Tem aqueles Venha Ver o Pôr do Sol e As Formigas, ambas de arrepiar os cabelos do cu, WM e Pomba Enamorada, sobre gente louca (sempre um bom tema), Verde Lagarto Amarelo, um conto que parece muito a história dos irmãos Ivan e Sério Sant’Anna (oooopa, peguei na ferida, hein?) e tantos outros… Eu particularmente, gosto muito do conto O Moço do Saxofone. Ri pra cacete lendo a história de um saxofonista corno que mora na pensãozinha onde sua mulher roda mais que pião maluco. E claro, não podemos deixar de esquecer de A Presença, o conto que todo mundo lê e fala “caralho, quem me dera escrever uma coisa dessas…”.

Em se tratando de uma antologia, na qual os contos estão ligados não por um fio de coerência ou temática, mas apenas por laços afetivos, é muito difícil comentar sobre esse livro como um todo. O que dá pra dizer que os contos favoritos são todos loucos, ah, isso dá! E que a edição da editora Rocco ficou excelente, não fosse o maldito filho da puta papel offset. Quando é que vocês vão parar com isso, gente? Parece que a bola agora está com a Companhia das Letras, que está lançando uma coleção bem menininha dos livros da escritora, mas, como este ainda não foi pra lá, tratemos da Rocco mesmo. Tem um cabeço meio escroto, mas a fonte, com os títulos em itálico, quase compensam a falta de tato na escolha do papel (e não venha dizer que é muito mais caro botar papel pólen soft quando um livro é vendido por 45 reais). A capa é bem simples, mas muito legal, tanto que faz par com a outra antologia da escritora, Meus Contos Esquecidos, com cinta dourada. Meu último comentário é uma pequena crítica sobre a qualidade da cola para fazer a encadernação de brochura: a capa soltou do miolo em pouco tempo de uso. E olha que cuido benzão dos meus livros. Puta falta de sacanagem!

Comentário final: 318 pesadas páginas em offset. Vai ficar difícil expressar seus sentimentos com a mandíbula partida em três lugares (Ética e Política da Amizade).