Michel Laub – O Gato Diz Adeus

o-gato-diz-adeus-capaAh, os livros curtos! O paliativo dos críticos procrastinadores com metas a cumprir, sempre à mão e, graças à má vontade desse país pra ler as coisas, cada vez mais fácil de encontrar. Eis que estou aqui, enrolando-me com um livro há mais de um mês — algo imperdoável, sei bem eu, mas às vezes a vida é mais do que livros e pede atenção a outros assuntos, mas só às vezes — e chego ao fim de semana sem ter absolutamente o que resenhar. Minhas leituras do passado já estão num canto um tanto inacessível do meu cérebro, e temo comprometer o julgamento com algo que não esteja fresco em pelo menos dois meses. Mas aí vem esse O Gato diz Adeus, quarto romance do gaúcho Michel Laub, com suas 79 páginas, encarando-me num domingo à noite como quem diz “sério mesmo que você é preguiçoso a esse ponto?”. E eu provo pra esse safado que eu não sou, ora bolas. Aqui dentro bate um coração que anseia por mais atitude, e não posso continuar negando meu coração por muito mais tempo, porque uma hora ele cobra seu preço. Então cá estou com essa obra que talvez seja a mais curta já tratada nesse blog cujo nome evoca os grandes e volumosos clássicos capazes de injuriar uma fera ferida no corpo, na alma e no coração. E atenção, corja: tem spoiler.

O Gato Diz Adeus é um desses livros que você acha que entende até que descobre que não entende, se frustra, tenta voltar umas páginas, tenta nadar corrente acima ante o turbilhão de jogos metalinguísticos que o autor joga na sua cara, mas quando você vê, já está imerso em camadas e camadas de texto, tempos pretéritos mais-que-perfeitos, perfeitos, imperfeitos, complicados e perfeitinhos. A história é basicamente uma, que anda até o ponto em que você começa a lê-la, e depois anda de novo até o ponto em que o que você achava que era literatura despropositada é meta-literatura, escrita por um dos personagens. Pois bem, são três personagens, e cada um deles narra um pouquinho do livro. Um parágrafo ou mais, digamos: Sérgio, um escritor com mania de dominação e um pezinho no swing (não aquele swing que tem música, o swing de casa de swing), Márcia, a mulher coitadinha desse sujeito pintado em pinceladas grossas e esparsas como um ser asqueroso ao extremo, e Roberto, um professor universitário que se torna amante de Márcia depois que Sérgio arma o palco pra oferecer a mulher pra ele. E daí tem um gato, que Márcia oferece pro Sérgio numa tentativa de se reaproximar da vida dele uma vez que as coisas meio que acabam. Meio que acabam, esse período conturbado sem fronteiras definidas.

A história vai rodando assim, tipo um jogral: uma hora fala um, outra hora fala outro, e volta e meia alguém dá a entender que o que um disse foi ouvido ou lido pelos outros dois personagens, que comentam a mesma passagem, por assim dizer. No final do livro, Laub diz que o livro “deve algo”, em estrutura, temática e etc, à Caixa Preta, do Amós Oz, que também é um livro sobre separação e que também tem um personagem que é um escritor e é um escroto e que também tem taras sexuais variadas. Além desse, o Enquanto Agonizo, do Faulkner, e A Chave, do Tanizaki, esses dois sobre os quais nada sei porque não li e não cheguei perto ainda (difícil pra caramba achar A Chave, todos os bons escritores comentam esse livro, mas cadê na loja?). Mas enfim, só pra vocês saberem isso aí, porque achei honesto da parte do cara listar sua… hã… bibliografia inspiracional, e porque vai que vocês leram mais do que eu nisso aí e têm outras coisas a acrescentar, né? A Caixa Preta também é contada de forma epistolar e alternada. Ou esse seria o Meu Michel? Ou o Caro Michele, da Natalia Ginzburg? Gente, é muita coisa na cabeça do cidadão, me desculpem.

Michel Laub por Renato ParadaO mais legal do livro é uma personagem que aparece lá pelas bandas da segunda parte, intitulada “Um Grão, Uma Gota d’Água”, que é uma leitora do romance que o Sérgio escreveu, expondo sua história de devassidão e dominação. A mulher, uma estudante de letras na universidade onde o personagem dá aula, já vai esquentando os motores da crítica do livro, vai comentando as passagens e levanta os pontos altos do livro. E você pode pensar que o Laub talvez seja um desses caras realmente preocupados em fazer o leitor entender as minúcias da história, todas elas pensadas, talvez seja só uma brincadeira com esse fato, e talvez seja ainda a criação de um leitor ideal que dá suas pinceladas sobre a própria obra, mas aí a personagem vai aos poucos se sobrepondo à trama e se imbuindo de significado. Não vou dizer mais, mas sei que achei a parada bem inventiva, para o bem ou para o mal.

E no final, aquela pergunta que precisa ser respondida para as pessoas que vem aqui: Esse livro é sobre o quê? Bom, eu diria que é sobre isso: um cara devasso e cruel e o jogo que ele monta pros outros, e como cada um reage a tudo isso. É uma história de submissão, dominação, ciúmes, sentimentos complexos ligados ao voyeurismo e à troca de casais, tudo numa polifonia que, é preciso dizer, peca por não criar vozes próprias, diferentes umas das outras. Mas fora isso, é o que já comentei aqui, e quem gosta de corrida de fundo pode muito bem pegar esse livro num dia preguiçoso. E não precisa se incomodar em achar um marcador de páginas.

Essa capa modernética e neonzótica da Companhia das Letras me faz supor que o objetivo deles com o Laub é fazer uma parada completamente diferente da outra em cada um dos livros dele. Mas por dentro é aquele padrão: Electra em pólen bold pra ver se o livro para de pé com uma gramatura boa. Gosto de capas gráficas, elas dão uma certa aura de grandiosidade e de edição definitiva do livro, sem falar que parece que o cara não conseguiu traduzir em imagens a história, o que é sempre um ponto positivo pro autor.

Comentário final: 79 páginas em pólen bold. Faz machucadinho não, tio.

Elvira Vigna – Nada a Dizer

nada a dizerVou ser bem sincero aqui e dizer que há tempos nada me anima muito na literatura brasileira. Acho que o pessoal se perde muito nas próprias veleidades estilísticas e o resultado é uma punhetação literária, a versão escrita de um disco do Yngwie Malmsteem. E levante a mão aqui quem é que curte o Malmsteem de verdade? Ou isso ou a minha visão do que é boa literatura anda muito limitada, mas o fato é que a comparação com os portugueses sempre é inevitável, e isso dá uma medida do quanto estamos ficando pra trás nesse lance de escrever bons livros. É claro, vez ou outra aparece um cara bom que me diverte, mas nada que me cause a catarse de ler um livrasso. Isso até conhecer a obra da carioca Elvira Vigna. E agora para os babaquinhas da objetividade, um alerta: tem spoiler, e se você acha que isso estraga o prazer de uma boa leitura, lo siento.

De Vigna, só li, por enquanto, Nada a Dizer, mas é claro que pretendo ler mais coisas assim que a grana e o espaço de casa permitir. Vou contar aqui do que o livro se trata e comentá-lo um pouco para ver se minha opinião é partilhada por vocês. Bom, e o que é Nada a Dizer? Felizmente esse é um livro que dá para resumir quando precisar responder a pergunta imbecil “do que fala esse livro?”. Nada a Dizer é um romance que conta a história da traição do ponto de vista da mulher traída. Simples assim, mas não vá ficar achando que isso tá de bom tamanho pra um resumo, fulano. A história é narrada por uma tradutora, de idade já avançada, e esposa do canalhão Paulo, que tem um caso com N. Ahh, adoro personagens cujo nome são reduzidos a uma única e misteriosa letra. É um lance tão Stendhal, tão Marques de Sade, tão francês de rabo preso com a aristocracia local que esse simples nome me remete ao que há de melhor na literatura francófona. A genialidade do livro, entretanto, começa justamente escondendo não N., mas a própria narradora. O início mostra Paulo, que mora em São Paulo, viajando ao Rio de Janeiro para encontrar um amigo e essa sua amante. Apenas no final do capítulo temos consciência de que o narrador que tudo sabe não o sabe porque é narrador, mas porque é a esposa dele, que como toda esposa traída, extorquiu a história do infeliz até a última gota.

A partir daí, a coadjuvante-narradora remonta os passos do sujeito desde que ele começou o caso, analisando o que ela sabia e onde ela estava no tempo e no espaço em cada uma das situações. Porque é óbvio que a mulher precisa escrever um livro com tudo o que ela sabe, e o que é pior: dá mesmo para escrever um livro com tudo o que ela sabe. E tudo gira em torno da questão: se ele me trai, o que eu significo para ele? Não dá pra medir a genialidade da Elvira sua sensibilidade feminina nesse ponto. Todo mundo que já conheceu uma mulher que curte pirar errado nas ideias sabe que é exatamente esse o comportamento. A fulana não quer admitir de frente que levou chapéu de vaca pra casa e procura questões tangentes de aparência equânime à principal pra poder se sentir individual em sua dor, para não se rebaixar a um sentimento tão universal e humilhante quanto aquele. É preciso raciocinar sobre o ocorrido, é preciso ser fria e calculista quando tudo o que se quer é botar vidro moído no feijão. E nessa análise da situação toda o leitor acaba descobrindo mais sobre a personalidade de quem conta: uma mulher aparentemente segura, mas completamente insegura, que cresceu à sombra de personalidades mais fortes, dessas que têm a vida toda planejada pela frente e se frustra enormemente quando as coisas não saem como o planejado, etc, etc, já deu pra pegar o tipo.

elvira vignaE, enquanto conta, ela faz um mea-culpa para qualquer interlocutor impiedoso que ouse interferir com um insensível “mas tu era cega mermo, hein, filha?”. Ela admite sua cegueira, seu estado de negação, e dentro desse estado de negação reside seu medo, suas expectativas, seu descompasso com a realidade. Ah, que beleza que é esse livro! Desses que você devora em pouquíssimas horas se tiver um sábado preguiçoso pela frente.

Mas, ao mesmo tempo, a narradora é extremamente humana com o marido traidor. O sujeito também é típico. Daqueles que prefere evitar o problema a discutir em casa, que gosta de negar mesmo com as calças na mão, que nunca admite o próprio erro a não ser quando o erro já tá documentado em cartório. E ela o ama, e por isso se compadece de seu espírito imaturo, ou pelo menos engana a si mesmo ao se apiedar, e o trata como uma criança, como costuma se fazer nessa hora aquelas que precisam passar por cima da carne seca a qualquer custo. E é, pois, esse jogo de moral, o grande barato do livro. Encontrar otimismo na cagada alheia, não se deixar abalar, tentar ser melhor do que tudo isso, quem nunca?

A capa do livro, embora seja bem bonita, me enganou muito bem com esses dois jovenzinhos sentados num sofá compartilhando um climão. Não é, afinal, uma história de amor imaturo,  é uma imaturidade em uma história já amadurecida. Além do que a tipografia usada na capa é compartilhada com a Rachel Cusk, uma escritora americana que, ao que parece, não tem nem um décimo do quilate da Elvira Vigna. Então isso conta contra o projeto gráfico, somado também à mistura abominável de amarelo, salmão e marrom-cocô-de-vegetariano. No mais, por dentro tá tudo certo: papel pólen de alta gramatura, fonte Electra, e o de praxe. Recomendo fortemente pra quem está desacreditado com os autores brasileiros e para quem uma boa dose de realismo é necessária na literatura tupiniquim.

Comentário final:  168 páginas em papel pólen. Machuca o âmago do seu ser.

Jorge Amado – A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua

quincas berro dáguaHohohoho faz o papai Noel. Hohohoho, bandido não vai pro céu. Não sei porque comecei o texto de hoje com uma citação a essa música do Planet Hemp. Mas a verdade é que ninguém nunca sabe começar texto nenhum, porque, vamos dizer a verdade, se soubessem, todo mundo ia escrever muito mais, até mesmo os que escrevem por obrigação. A exceção talvez sejam esses escritores de que todo mundo fala: Franz Kafka, Tolstói, Jorge Amado, Cristóvão Tezza, estes bons começadores de texto.

E por falar em Jorge Amado, o livro de hoje é dele. Rá, e você achando que eu tava dando voltas à toa. Não, meu amigo, eu sou como aquele sujeito dos Jogos Mortais, não dou nó sem ponta, malandragem! Mentira, tava enrolando mesmo. OU NÃO? Jamais saberás. Como eu dizia: Jorge Amado. Se você é paulistano e se dá com todas as classes sociais, deve conhecer umas seis ou dez pessoas cujo apelido é “baiano”, mesmo que elas tenham vindo de outros lugares do nordeste. Como diz o Gritando HC, “Não importa da onde veio, chegando em São Paulo, é tudo baiano”. Mas, é claro, podem haver baianos de verdade entre os baianos que moram em São Paulo. Nenhum baiano, porém, é tão baiano quanto Jorge Amado, “o baiano” por antonomásia. E isso se deve pelo fato de ter sido ele o inventor da Bahia. Antes de Jorge Amado, o que era a Bahia? Um lugar meio sem rosto quando a gente imagina, uma coisa assim, meio Aracaju, meio Maceió, meio Pirapora do Norte, uma nuvem toma o lugar da imagem formada na nossa cabeça. Depois de Jorge Amado, a Bahia, e mais especificamente Salvador, virou o que é hoje: pelourinho, neguinho bêbado, mulata assanhada, gente preguiçosa, coroné, macumba, tiro pra tudo quanto é lado, gente certinha se dando mal, gente gauche se dando bem, pescador, marinheiro sacana, sexo 24 horas por dia, maconheiro vagabundo, comida apimentada, meninada de rua, tabuleiro de baiana, bunda de morena, cochilo na rede, sotaque carregado, bordões engraçados e cenário pra novela da Globo. O tempo encarregou-se de colocar aí o axé, o reggae, a Timbalada, mais maconha e mais bunda. Obrigado, Jorge Amado, agora já temos o que imaginar quando nos falam a palavra “Bahia”.

E o que é a pequena noval A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua? Tudo isso, ora essa. Escrita em 1959 para um dos primeiros números da revista Senhor (não, não é revista de crente), enquanto escrevia Os Velhos Marinheiros ou O Capitão de Longo Curso – um livro nem de longe tão celebrado quanto este. Quincas Berro Dágua tomou uma semana da vida de Jorge Amado, e gerou adaptações e mais adaptações para o cinema, teatro, o que seja. Tudo por conta de uma historinha super simples, que vamos passar em revista agora.

O tal Quincas era um daqueles caras vagabundos que tem em toda família, que vive no bar, arruma briga, dá trabalho, e na hora de reunir a parentada, é o principal assunto a ser evitado. O tal sujeito morre um dia, ou seja, é uma daquelas histórias em que o protagonista já começa morto, tipo, sei lá, O Terceiro Tiro, do Hitchcock. E aí, a família finge ficar triste e no fundo respira aliviada. Os filhos tão relaxados, as tias gordas idem, os agregados então, nem se fala. Mas é, claro, tem gente que fica triste. A mulatinha da casa das primas, namoradinha número um do sujeito é uma delas, os companheiros de bebedeira são outros. E são esses degenerados que rompem velório adentro para dar adeus ao companheiro de esbórnia e não o tomam como morto, porque Quincas começa a sorrir, tomar vinho e xingar todo mundo. Eles resolvem então levar o morto para uma última noite de rolé, porrada, putaria e chapação, apenas para que depois ele, em meio a uma tempestade em alto mar, despeça-se de sua gente para ter sua derradeira morte, do jeito que sempre quis.

É basicamente isso. Não há nada demais nessa história, nenhum significado oculto, nenhuma metáfora a coisa nenhuma, sátira zero, niente. A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua é a novela sobre um vagabundo que morre duas vezes, e faz uma farra entre uma morte e outra. O resto podem ser teses que esses senhores de academia fazem para garantir o whisky das crianças, para dar uma força pro Jorge Amado na eterna e saudável disputa com o gaúcho Erico Verissimo, para enganar os bocós, mas a mim ninguém engana. Quincas Berro Dágua é um livro que entra para a história da literatura por ser um clássico 2D. Narrativa impecável, léxico de dar inveja nos mais eloquentes prosadores de nossa época, construções humorísticas, tudo isso se aceita para elevar a qualidade dessa obra leve e divertida de ler. Mas não, não me venham com interpretações, fortunas críticas e dissertações, que eu não engulo. Prova mais viva disso é o posfácio do senhor Affonso Romano de Sant’Anna, uma das cabeças mais lúcidas da literatura brasileira atualmente: uma encheção de lingüiça engraçada e curiosa, mas veja se Sant’Anna se atreveu a fazer alguma tese sobre o livro que vá além daqueles clichês que sempre valem para a literatura brasileira, dos limites entre realidade e ficção, que a vida imita a arte, bla bla bla. Se o Affonso Romano Sant’Anna, eu repito, não falou nada que acrescente à importância da obra, é porque ela não tem mais nada a acrescentar.

E veja aqui a genialidade de Jorge Amado com ela. Qual gênio da literatura não queria fazer isso: um livro absolutamente fantástico que, mesmo assim, não dá margem para que ninguém sério tente mamar em seus talentos? Morre-se duas vezes? Talvez. Quincas é filho de Exu? Sim. A última farra antes de morrer? Isso não dá nem uma introdução séria de tese. Ah, a glória de se escrever um livro completo em suas interpretações e significados. Nada fica por dizer, é a vingança do morto cremado: não deixar carne pros vermes, nem mesmo para mim, este que quer comer cinza em pleno domingo de manhã.

Quando a Companhia das Letras pegou o Jorge Amado para o catálogo, sabia que ia sair coisa bonita. Pelo menos mais bonita do que a coleção horrorosa da Record (pô, galera da Record, vocês também, hein?). Inesperadamente, não criou-se o fetiche que seria de se esperar em cima da coleção, a galera não voou em cima como aconteceu com o Borges, por exemplo. Mas fica aí umas belas cinquenta e tantas lombadas para quem quiser fazer vista boa na estante. Foto do Marcel Gautherot levada às loucuras instagrâmicas na capa, papel pólen, fonte sei lá, mas é gigantesca, arabescos pra tudo quanto é lado e um belíssimo acervo de fotos e manuscritos ao final. Tudo para elevar o valor da obra, cujo valor já é demonstrado por si só. Então, relax and enjoy!

Comentário final: 120 páginas de pura malemolência. Mas rapaz, quase acabou com a polícia de Pernambuco!

Daniel Galera – Mãos de Cavalo

Confesso para vocês que escrever esse post tem para mim uma sensação análoga a do menino que não gosta de jiló e de repente se vê diante da ameaça: se não comer todo o jiló do prato, não sai da mesa. E sabe que viver para o resto da vida à mesa, como um personagem de um Italo Calvino sem imaginação, não é exatamente uma alternativa. Isso porque acreditei ser possível passar ao largo da literatura do Daniel Galera. Dele havia lido apenas algumas páginas aleatórias do Até o Dia em Que o Cão Morreu e Cachalote, o quadrinho feito em parceria com o grande Rafael Coutinho, e odiei os dois. O primeiro achei beat demais, gaúcho demais, jovem adulto demais. O segundo achei pretensioso, incompreensível e desnecessariamente grandiloquente, tipo quando jornalista faz pós-graduação em filosofia, aprende uns jargões e disfarça o pouco conteúdo com um monte de abobrinha hermética pra criar uma ilusão de profundidade. Enfim, era um autor que poderia ser deixado para seus fãs, um autor que sobreviveria naturalmente à revelia da atenção midiática, como tantos outros figurados naquela infame coletânea da geração subzero.

Mas a verdade é que, afora minha péssima experiência com leituras prévias de sua obra, o que nutria meu afastamento do autor era um preconceito sadio, que me impedia ver o quanto o Daniel Galera é parecido comigo. Pelo pouco que sei dele (e sei pouco mesmo), sei que temos gostos musicais e experiências parecidas. E lendo Mãos de Cavalo, que foi me recomendado como o seu melhor livro, vi que temos ideias muito parecidas também. É claro, assim como Jesus Cristo, Raul Seixas, Los Hermanos, Ayrton Senna e Wes Anderson, são os fãs pentelhos que me tiram do sério, mais do que o artista (bom, acho que o Wes Anderson e seu cinema infantil para adultos não muito adultos é igualmente insuportável). Mas resolvi deixar tudo isso de lado, meus preconceitos, meu medo, minha birra com os fãs adolescentes e ler Mãos de Cavalo, porque, afinal de contas, não dá pra dizer que o cara não faz sucesso e tô por aqui também desse papo que ninguém aqui pode ser bem sucedido sem que geral comece a espinafrar.

Bom, Mãos de Cavalo, para quem não sabe, é um romance que alterna dois fluxos narrativos após uma introdução que tem lá sua importância. A história começa com o que o narrador chama de Ciclista Urbano, assim com letras maiúsculas. Sei lá, deve ser pra você já começar odiando o protagonista ao automaticamente associá-lo com esses ecochatos urbanóides que falam em sustentabilidade sem abrir mão da sociedade de consumo e acham que o único problema do mundo é falta de ciclovia e excesso de sacolinha plástica (e esse é um assunto pelo qual guardo um rancor particular, afinal de contas, este blog perdeu um prêmio alemão para um site dessa corja). A descrição do percurso de bicicleta e os mecanismos que mantém o ciclista pedalando são até boas, mas é só quando o sujeito cai que o narrador revela que o ciclista é um garoto de dez anos. Esta parte foi brilhante, a destituição de poder do personagem é total, e a saída da bicicleta o tira do anonimato e lhe devolve a humanidade. Aí temos a primeira pista do livro: o garoto sai sangrando e passa a curtir o gosto do sangue e o fato de estar ferido. O personagem do livro passa o romance inteiro buscando resolver seus problemas se estrepando da pior forma possível, sem o menor zelo pelo corpo. É claro, isso não existe na vida real, é um fetiche de piá de prédio superprotegido que assiste ao Clube da Luta e passa a achar que virou macho porque acha que aguenta se machucar inteiro. Mas para esses garotos da cidade, isso serve muito bem às fantasias criadas em torno da questão: “o que é viver a vida?”. Cair de bicicleta, ralar os joelhos? Comprar um skate depois dos 20 e quebrar o braço? Acampar com os amigos e comer miojo no copo? Lutar Muay Thai na academia? Jogar PS3 é que não é, né? A diversão e a experiência precisam ser legitimadas pelo corpo, porque uma viagem da mente não é mais que do que isso. É claro, todo mundo lê, todo mundo escreve, mas querem menos Almeidas Garrets e mais Hemingways.

Aí temos a história de Mãos de Cavalo, apelido de Hermano, um garoto de 13 ou 14 anos morador de um condomínio em Porto Alegre (condomínio? ahá!) que tem vários amigos de apelidos tão esdrúxulos quanto o dele. Tem um Wagner Montes, tem um Nego Cromado, um Morsa e um Pedreiro. Mas também tem um Bonobo, que é um garoto de estatura normal, mas com uma força descomunal, como um Hulk em forma de guri. E chamam ele de Bonobo porque ele caminha com os braços pesados, como um bonobo. O que é uma furada, na verdade, porque o bonobo é um macaquinho do bem, se organiza em sociedade matriarcal e resolve os problemas com orgias ao invés de porradas. O Hermano é, obviamente, o garoto do começo da história, e tem uma vida interior e diferente dos outros da turma. Tem umas passagens em que ele se parece tanto comigo que chegou a me arrepiar as coincidências com a minha vida, mas isso é muito pessoal. O que importa é que, assim como eu, o Hermano não curtia muito jogar futebol, mas joga pra fazer social, e numa dividida com o Bonobo, provoca uma falta maldosa que desperta a ira do sujeito. O que ele faz pra se redimir depois? Toma um estabaco na bicicleta, descendo umas escadarias. Esse é o começo de uma história de adolescência marcada por isso: a autoflagelação juvenil. Vai entender…

E aí temos a história do Hermano adulto, que, como todo adulto oriundo de um adolescente antissocial, tem apenas um amigo e chato pra caramba, ainda por cima. Hermano fez medicina, é casado e tem uma filha, e gosta de escalar montanhas. Afinal, pra ele agora a resposta de “O que é viver?” é escalar montanhas, como um garoto propaganda almofadinha de comercial de SUV, que estaciona a caranga na beira do penhasco e contempla a paisagem com um senso de autorrealização que respinga na gente. E aí o amigo chatão propõe escalar um vulcão na fronteira da Bolívia com a Argentina que ninguém nunca escalou antes. Sei lá, não sou alpinista, mas isso me parece bem o tipo de tara que alpinista tem. Só que aí o rapazote joga tudo pro alto, e pra quê? Pra se estrepar voluntariamente – agora que ele é adulto, tem a certeza de que dessa vez a parada tá certa. Não queria dar muito spoiler, mas é inevitável.

E aí fechamos a história do menino que acreditava que seu sangue lavaria, inicialmente, sua falta de hombridade, depois sua falta de honra e por último, sua falta de coragem. O menino que exige demais de si mesmo, que tem sensatez demais para seu próprio bem, e que não larga essa ideia de que a vida adulta serve para redimir, de alguma forma, os erros da adolescência, como se nenhum adolescente fizesse merda. Então repare: o protagonista de Mãos de Cavalo é incrivelmente coerente em sua construção. Exagerado, é verdade, histriônico, é verdade, inverossímil até, mas coerente. Sua turma, o núcleo de sua vida após a formatura, tudo faz muitíssimo sentido, e esse é um mérito do escritor.

O estilo literário do autor, por outro lado, é um problema. Ainda que faça brilhantes digressões e arrisque um ou outro discurso indireto livre, falha miseravelmente na construção de uma linguagem oral, sob a qual grande parte do livro é narrada. Basicamente, a coisa se resume na falta de concordância de algumas palavras e uma gíria aqui e outra acolá, e isso bem de vez em quando. O resultado é estranhíssimo, tipo Gilberto Braga escrevendo fala de bandido da novela das oito. É claro, intelectualmente o livro tem seus pontos altos, e a clareza com que consegue articular uma ideia é invejável. Se queria criar uma surpresa sobre o personagem das três histórias serem os mesmos, também não funcionou. Mas acho que tudo bem porque não parece ter sido essa a intenção.

No final das contas, Mãos de Cavalo é um livro divertido e rápido. Para mim, serviu como um autoconhecimento interior, e literariamente, é melhor do que muita coisa que vêm sendo vendida por aí como a última Coca-Cola gelada do deserto. Mesmo assim, não é o tipo de leitura de que gosto e ao qual estou acostumado. O que não tira dele seus charmes e suas ideias interessantes. Então, fãs de Daniel Galera, não se preocupem, vocês estão bem acompanhados.

Comentário final: 190 páginas. Não sacia a sede de sangue dos masoquistas.

Edney Silvestre – Se Eu Fechar Os Olhos Agora

Olá, queridos leitores do Livrada! Antes de começarmos a resenha de hoje, gostaria de compartilhar algumas coisas que não tem a menor importância, mas que resolvi escrever assim mesmo só pra não perder de vista esses eventos de nossa história pessoal.

1-    A partir de agora, temos mais uma editora parceira, a Geração Editorial. Eles entenderam a proposta do blog, não fazem nenhuma pressão como algumas editoras quiseram, de trocar livros por posts (podem ficar tranquilos que isso nunca será feito por aqui), e me mandaram alguns livros que em breve comentarei por aqui. Então agora tem um banner da editora ali do lado, se quiserem conhecê-la melhor, é só clicar ali.

2-    Duas semanas depois deste humilde blog cair nas mãos de um influente editor do Estadão, ele foi recomendado pelas meninas do blog Coisas de Diva. Com isso tudo, o número de leitores que nos acompanham aqui e pela página do Facebook skyrocked to the roof e agora trabalhamos na casa dos milhares por dia e estou me sentindo meio como aquele personagem do Roberto Begnini no último do Woody Allen. Por isso, quero agradecer a todos os que divulgaram esse espaço (inocentemente dou-me a crença esperançosa de chamá-lo de formador de leitores) e fizeram o Livrada! ser hoje um porto seguro de quem quer conhecer novas leituras em uma abordagem mais branda e descompromissada do que a tradicional crítica literária que temos hoje nos jornais. E que também estou aberto pra negócios, porque ficar escrevendo aqui de graça é chatão. Anunciem, anunciem!

3-    Já falei isso aqui antes, mas escrevo todos os textos desse blog em um único arquivo do Word. Só queria dizer que esse arquivo já passou da página 200 há algumas semanas. Se fosse um livro, seria do tamanho de dois livros da trilogia Crepúsculo. A única diferença é que seria mal escrito e estaria repleto de baboseiras. Não, pera…

4-    Tenho recebido muitas sugestões de leitura por e-mail, e temo que os leitores fiquem chateados por não verem seus livros comentados por aqui. Por isso, é imperativo explicar que meu trabalho (meu trabalho de verdade), consiste em ler livros, e que com isso sobra muito pouco tempo para fazer as leituras para o Livrada! Por essa razão, não tenho condições de pegar um Stephen King, um Mario Puzzo, um Caçador de Pipas, um Guerra dos Tronos nem um Cinquenta Tons Mais Escuros, como vocês me pediram. E confesso também que não é o tipo de leitura que eu gosto. Então me perdoem, relaxem no crack e apreciem a resenha de hoje.

Pois muito bem, vamos tratar hoje de um livro que esteve no centro de uma polêmica editorial. Mas não é por isso que vamos falar dele, afinal. Se Eu Fechar Os Olhos Agora, livro de estreia do jornalista Edney Silvestre (aquele cara que você vê na televisão), é importantíssimo e totalmente irado porque destoa da nossa atual produção literária. E com isso, é melhor eu frisar uma coisa, porque tem uns cuecas de seda por aí, cujo nome não vou citar, que acham que minha opinião sobre o livro é afetada por eu conhecer o autor: minha opinião sobre os livros são independentes e imparciais, e meus amigos que escrevem sabem disso. Por isso, se eu falo que o livro é bom, pode passar o atestado, filhão, que eu assino embaixo. E vou explicar direitinho o porquê.

Se Eu Fechar Os Olhos Agora narra uma história com tons de romance policial, pinceladas de crítica social em um painel histórico importante e pouco discutido da história recente do Brasil. O lance é o seguinte: uma mocinha aparece morta num brejão, com um seio decepado, e dois meninos acham o corpo. A moça é a mulher do proeminente dentista da cidade, inconfessavelmente corno. Sim, em uma cidade pequena do interior do Rio de Janeiro, bem perto de onde morei, Resende (ainda espero que uma bomba atômica caia naquele lugar, depois que meus familiares se mudarem, é claro), todo mundo se conhece e todo mundo sabe que a mulher do dentista é a Maria-Compasso da região. Se as pernas da moça tivessem uma senha, ia ser 1234, tão entendendo? É aí que o próprio dentista se entrega pra polícia, como bom cornudo que lava a honra na bala, uma história que pode parecer cada vez mais rara hoje em dia mas que, acredite, já foi uma atitude mais aceita do que doar dinheiro pro Criança Esperança. Aliás, por onde andam os duelos de pistola, os desafios com padrinhos presentes, onde foi parar essa brutalidade civilizada da época vitoriana? Ai ai, saudades de passar na rua e ver dois bigodudos com armas em punho dando passos contados em direções contrárias, apenas para depois virar e atirar. Hoje em dia só o que temos são pitboys com orelhas de couve-flor que saem do carro já com o extintor na mão. A pura definição da falta de classe.

Enfim, tudo parecia resolvido e todos já poderiam voltar a viver suas vidinhas miseráveis de médio-paraibanos, mas Paulo, o menino pobre e negro, e Eduardo, o menino rico com a mãe gostosa, resolvem investigar por conta própria, com a ajuda de um senhor de muita idade que vive em um asilo e não tem nada da vida para fazer a não ser se meter na vida dos outros. Que falta que não faz um boliche numa cidade dessas… Enfim, o improvável trio começa o trabalho detetivesco, e obviamente, a coisa se revela uma merda completa, daquelas que quanto mais se mexe, mais fede. Contar mais do que isso é puramente estragar a leitura, então detenhamo-nos nos fatos que podemos concluir com o que já temos.

O primeiro ponto digno de destaque de Se eu Fechar os Olhos Agora é, como já disse, o recorte histórico. A história se passa na década de 60, mais especificamente na década de 61, no último mandato do presidente Juscelino Kubitschek (se esse nome caísse num concurso de soletração, todo mundo tava no sal), e toda aquela região do Rio de Janeiro estava começando a crescer graças à instação da CSN alguns anos antes. O final da primeira experiência democrática do Brasil, a modernização do interior, a chegada do homem ao espaço, tudo isso se contrapõe a mentalidade interiorana ainda arraigada no coletivo do povo simprão da zona do café, que ainda aposta no coronelismo, nas aparências e na tradição do sobrenome. É, nada mudou. Então, de uma certa maneira, entender o que acontece nessa época ajuda a entender o que o país se tornou hoje, mais ou menos como ler Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, mas num período mais recente, com menos absorção, mas com mais diversão.

Depois, há ainda a própria narrativa. Sabe, existe um problema na atual literatura brasileira, em que os escritores basicamente se dividem entre os que querem contar uma boa história e se pretendem tão rasos quanto um prato de microondas, e outros que querem ser profundos como bucho de gordinho de churrascaria e se perdem em digressões, jogos de sintaxe e malabarismos literários afins e fazem um bom sonífero ao invés de um bom romance. O Edney, por sua vez, coloca a história e sua voz em pé de igualdade, priorizando o leitor em detrimento de vaidades estilísticas chatassas. Resumindo, é um livro divertido e bem escrito, foi o que eu quis dizer.

Esse projeto da editora Record tem uma foto batidíssima do Bresson, mas tudo bem porque ela continua boa mesmo que você olhe um porrilhão de vezes pra ela. Tem a boa e velha fonte Electra e o bom e velho papel pólen, com aquele corte da folha nanométrico que a gráfica da Record faz, que deixa as páginas retas na brochura e listradinhas. Vale a pena pelo livro, mas tem também um audiolivro narrado pelo Antonio Fagundes, que não tem páginas nem fontes. Deve ser melhor que, sei lá, a Bíblia narrada pelo Cid Moreira, ou a Odisseia narrada pelo Joey Ramone, então fikdik.

Comentário final: 304 páginas. Dor e sofrimento para quem leva, alegria e satisfação para quem taca.

Luiz Alfredo Garcia-Roza – Fantasma

Ufa, chega de polemizar com o best-seller alheio, vamos falar agora de outro tipo de livro: o best-seller pessoal, aquele que é sucesso grande entre um seleto grupo de pessoas que se interessa por literatura o suficiente para escolher best-sellers melhores do que os que as livrarias empurram em seus diabólicos mostruários patrocinados pelo vil metal das editoras que ganham vendendo papel por quilo. Literatura policial, por que não? Os recalcados dizem ser um gênero menor, os exigentes reclamam da repetitividade da fórmula, os puritanos acham que há excesso de violência e os lerdos acham que é livro que “tem que pensar”. Jorge Coli e eu, porém, defendemos que os bons leem policial. Há muito o que aprender nesses livrinhos descompromissados, amigos. A fina arte da mentira, os limites da maquinação humana, as reviravoltas pessoais e a habilidade de fazer conexões entre elementos que estão à espera da percepção humana são alguns tópicos, mas há também todo o engenho de quem deseja fazer uma boa história revelando-a por camadas, sem que a próxima seja menos interessante do que a anterior, e sem que uma passe por cima da outra. Eis aí a genialidade do gênero, e eis o gênio da genialidade do gênero: Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Sou da opinião de que se você gosta de um autor policial, deve ler todos os livros que ele já escreveu. Afinal, é por aí que se pega o vício e é por aí que se percebe a versatilidade do escritor em um tema que se reinventa a cada romance com fórmula fixa. Garcia-Roza é um desses: seus romances sempre tem aquele “Who done it?”, o “Quem foi o cagão?”, em bom português. A chave de seus romances é descobrir o assassino e a motivação. Ora, isso é entretenimento! Fantasma, que, pelos meus cálculos, é o décimo livro da carreira de romancista de Garcia-Roza, traz o bom e velho delegado Espinosa, que já conhecemos desde o romance vencedor do prêmio Jabuti, o Silêncio da Chuva (que, confesso, não faço ideia de porque se chama O Silêncio da Chuva. É tipo Bruxa de Blair 2 – O Livro das Sombras, que não há menção a um único livro no filme inteiro). Nesses dez livros, muita coisa aconteceu ao delegado Espinosa. Foi promovido a delegado, tomou tiros, escapou da morte várias vezes, comeu muita mulher, amigou-se com a Irene num relacionamento aberto, matou amigos de infância, recebeu a visita do filho que mora nos Estados Unidos, aumentou sua estante-sem-estante (construção bizarra de livros comprados em sebo que se empilham numa parede. Uma parada improvável, já que livros de sebo mal conseguem manter-se inteiros), entre outras coisas.

O caso deste livro começa de maneira peculiar. Um sujeito é assassinado e roubado, e o que chama mais atenção no corpo é ter anotado na mão os seis primeiros dígitos do telefone de Espinosa. Ora, se um sujeito aparecesse morto com um pedaço do meu celular anotado na mão, ia ficar no mínimo bolado e migrar para a Claro. Mas o Espinosa é intrépido, e começa a investigação, justamente pela possível única testemunha ocular presente. A Princesa, uma sem-teto morbidamente obesa e albinicamente branca que só fica lá sentadona encostada na parede com suas sacolinhas, uma espécie de Buda branco de Copacabana. O único amigo da princesa é um senhor Isaías, um sujeito do Amazonas que mora numa construção abandonada, pago por alguém para que a obra não seja invadida. E aí, já sabe, povo da rua já é naturalmente escaldado, pra falar com puliça então, meu filho, só com despacho.

E é aí que reside a genialidade de Garcia-Roza. O escritor não só criou um policial incorruptível nesse meu Brasil do mau exemplo, como também criou um malandro policial. O malandro é aquele que se dá bem com todo mundo, é respeitado por onde passa, não dá margem pra crocodilagem, mora? E Espinosa vai, com seu jeitão de senhor de cinquenta anos, falando com mendigo, vagabundo, quem puder ajudar no caso, que não tem absolutamente nada de óbvio.

O título? Fantasma, sim, pode se referir à invisibilidade dos moradores de rua, mas ganha outro contorno no que se refere a uma mala imaginária que supostamente foi roubada do morto. Mesmo sem ninguém ter atestado sua existência, Espinosa busca esse fantasma de bagagem como se não houvesse dúvidas de sua existência, e nessa busca está o centro da trama. Repare que no começo do livro Espinosa está lendo uma edição velha de Sobre a Teoria dos Objetos Inexistentes, de um filósofo chamado Alexius Meinong, que tem uma teoria de fato bem interessante sobre o assunto. Nada é por acaso na literatura do sujeito.

Minha conclusão é que Fantasma é um dos melhores livros de Garcia-Roza desde Vento Sudoeste, já resenhado aqui. E digo isso porque já li todos mesmo. A capacidade de juntar cacos e formar um caso em Espinosa é surpreendente, e isso não é porque a consciência do escritor é a consciência do protagonista não, filho. É porque requer uma imaginação forte e sagaz para fazer seu personagem dar passos mais lentos que os seus próprios, enveredá-lo por falsas pistas e retomar o caminho certo de novo com lógica sobre lógica. Bah, nem vou começar com isso. Apenas leiam o livro, divirtam-se com ele por um dia ou dois e não se esqueçam que Garcia-Roza é talvez o único escritor policial clássico do Brasil, com detetives sagazes e honestos, assassinos misteriosos e pistas que são seguidas com faro e lupa. Acho que falta apenas um arqui-inimigo, um Moriarty pro Espinosa. De resto, tá tudo aí.

Por último, gostaria de acrescentar que essa constante mudança de projeto gráfico da Companhia das Letras pra coleção policial tá deixando minha coleção do Garcia-Roza. Eles sempre pintam a lateral das páginas na cor da capa, mas nesse pintaram de preto. Ficou bacana até, mas sei lá, preferia do jeito como era antes, com a faixinha colorida com o nome do autor e uma foto muito escrota em preto-e-branco. A foto dessa capa parece que foi feita no computador, com renderização 3D no cenário. E ainda permanece o inexpurgável papel offset, que deve ser o único que gruda essa tinta de lateral de página. Que é feio, é. Pelo menos a fonte é Garamond, aquela fonte style, charmosa tipo um galã francês. A Garamond é o Vicent Cassel das fontes.

Comentário final: 210 páginas. Catuca, catuca lá no fundo.

Sérgio Sant’Anna – O Livro de Praga

Hoje é domingo, pé de cachimbo, dia das mães, todo mundo enchendo a pança em família e fazendo as mesmas piadas de “é pavê ou pá cumê” e “afinal, avó é mãe duas vezes”, enquanto têm-se a ligeira impressão de que mais um domingo acaba, mais um final de semana chega a seu ocaso e mais uma vez, os objetivos alcançados foram mínimos. Suspira conformado e vai para a cama esperar o começo de mais uma melancólica semana. Mas não tema, homem moderno e exemplo patético da herança orgânica da Terra, cá está o livrada para colocar mais miolos nos seus miolos e mais tutano no seu tutano. Sente-se, relaxe e aproveite mais esse livro do dia, quem sabe quando você chegar ao final você se anime a visitar uma livraria e comprar algo bonito para a sua estante e seu cérebro.

Bom, este é o penúltimo post antes das minhas tão merecidas férias, e fala logo sobre Praga, cidade que estarei visitando daqui a exatamente um mês. Por isso achei conveniente e vamos lá, é livro nacional, sempre uma boa pedida!

O Livro de Praga é obra do escritor Sérgio Sant’Anna, que obviamente já viu dias melhores na hora de bolar um título criativo. Sant’Anna fez parte do time da coleção Amores Expressos, do almighty Rodrigo Teixeira, da RT Features, produtora paulistana de qualquer coisa. Pra quem tá de bobeira, vou explicar: dezesseis autores viajaram bancados pela empresa para passar um mês em alguma cidade do mundo com a missão de voltar e escrever uma história de amor situada nessa cidade. Primeira consideração: vida chata, hein galera? Fala sério, ser chegado do Teixeirão aí é a maior jogada (me liga, cara, vamos jogar uma bola qualquer hora!) E isso prova que eu não teria o menor tino pra coisa, o santo aqui ia desconfiar dessa esmolada toda e não ia arredar o pé com medo de ter a alma roubada depois. Sério, gente, não me ofereçam dinheiro, morro de medo… Bom, de qualquer jeito, até o momento, sete livros já saíram pela Companhia das Letras: esse, o Cordilheira do Daniel Galera (Buenos Aires), , Estive em Lisboa e Lembrei de Você do Luiz Ruffato (Lisboa… dã), Do Fundo do Poço se Vê a Lua, do Joca Reiners Terron (Cairo), O Único Final Feliz Para Uma História de Amor é um Acidente, do João Paulo Cuenca (a vírgula se faz necessária aqui… Tóquio), Nunca Vai Embora, do Chico Matoso (idem… Cuba) e O Filho da Mãe, do Bernardo Carvalho (ibidem… São Petesburgo). A coleção prevê ainda livros do Lourenço Mutarelli sobre Nova York e um livro rejeitado de um gaiato de Goiânia que foi para São Paulo (o azarento da turma, provavelmente), entre outros. Olha, já vi ideias melhores para coleções literárias, e essa me parece a Paris Hilton das coleções literárias: perdulária, superficial e altamente desejada por fashionistas antenados nas tendências. Isso enquanto coleção, o que não quer dizer que, individualmente, a parada não guarde boas surpresas, como é o caso desse livro. Vamos a ele.

Sérgio Sant’Anna teve muito culhão pra fazer o que fez no Livro de Praga: pegou a grana que lhe foi dado, passou um mês usufruindo sabe-se lá de quais serviços do Leste Europeu e voltou não com um romance, mas com um livro de contos mascarado de romance e com um roteiro de filme pornô mascarado de história de amor, usando como pano de fundo a maior parte dos clichês da capital checa – coisa que uma semana na cidade ou duas semanas na Wikipedia resolveriam de forma igualmente eficaz.

O protagonista é um sujeito chamado Antônio Fernandes, um cara que guarda grandes semelhanças com o autor do livro à exceção do excesso de swag que lhe permite passar o rodo em Praga. Fernandes – olha só! – também está passando um mês em Praga a pedido de um ricasso para uma coleção literária. É, a imaginação do cara voou longe pra bolar essa história… O “romance” é dividido em vários contos e em cada um deles o herói Antônio Fernandes (que também poderia ter sido batizado Dirk Diggler) se envolve com alguma peripécia artística e sexual: numa hora é precisa desenbolsar uma bolada para ver e trepar com uma pianista reclusa e seleta, noutra descobre que um sujeito cafetina a irmã que tem tatuado um manuscrito inédito de Kafka no corpo, noutro compra uma boneca no teatro que ganha vida na cabeça dele, noutro ainda transa com uma santa fictícia num altar. Tudo no maior delírio, na maior loucuragem, na maior psicodelia libertina. O sujeito está em alfa, em nirvana, pra lá de Bagdá, viajando na maionese enquanto essas coisas acontecem nos seus sonhos diurnos. Cada uma das aventuras é um tipo de tara e um tipo de arte: felação e música, penetração e escultura, literatura e donkey show, sei lá, o cara vai misturando as taras da cabeça dele com as artes que vai encontrando.

E aí vai aquela coisa, aquela ambiguidade onírica gostosa: é sonho ou é realidade? É sexo ou é amor? É romance ou é conto? É arte ou charlatanismo? Você decide, você julga e você escolhe, porque a minha opinião está guardada na minha cabeça e se eu intercedesse nesse ponto eu interferirira da pior maneira na sua leitura: limando a sua imaginação e sua capacidade de julgamento e discernimento. Como eu não tenho cara de televisão, jogo pra galera.

Esse projeto gráfico é uma maravilha, faz todo mundo querer fazer a coleçãozinha, porque vem com um carimbinho e o público gosta disso: gotta catch ‘em all, mr. Pokémon. Essa capa é mais bonita que as outras, na minha modesta opinião, por ser menos pop, menos teen e menos hype. Papél pólen, fonte Electra e todo mundo fica feliz. Alright!

Eis os meus recados:

1-    Essa é a última quinzena para mandar seus autógrafos. Tô querendo fazer uma parada massa aqui e a galera não colabora. Não adianta nada ter dez mil acessos no mês e receber quatro e-mails, sejam participativos, colaborativos, sejam mais Che Guevara e menos “com 5 mil ‘curtir’ o médico vai fazer um transplante de rim pro labrador dessa garotinha com câncer”. Vamos lá, vai ser legal: envie fotos ou imagens scaneadas de seus autógrafos favoritos para bloglivrada@gmail.com

2-    Não sei se já viram, mas agora além de criticar livros, também critico hambúrgueres – um trabalho bem mais gostoso, vá lá. Se não conhece ainda, passa lá no Good Burger a qualquer hora e procure os meus textos, mas leia também os do Murilo, meu camarada que tampouco foge à luta.

3-    Já que nunca é pedir demais: curtam o Livrada! no Facebook e sigam @bloglivrada for more.

Comentário final: 144 páginas pólen soft. Voando daqui até Praga, uma porrada no orelhão do Kafka.

Chico Buarque – Budapeste

Deeeeeeeesde os tempos mais primórdios, o Livrada taí! (taí, taí!). Criticando obras completas, educando os asceeeeeeeeclas das bibliotecaaas ôôô. Coeeeeetzee, Kadaré e Guimarães Rosa, Pedro Juan e Vargas Llosa (que lindo, que lindo!) Kadaré, Philip Roth e Villa-Matas, quem não gosta do Livrada é um puta filho das patas!

É carnaval, meu povo! É daqui a três dias que o ano começa, daqui a nove meses que os bastardos nascem e daqui a dez anos que os soros-positivo batem as botas. Brasileiro se ferra o ano todo, oprimido pela máquina terceiromundista, sendo roubado pela frente e por trás, mas chega no carnaval… Globeleeeeeza! Ê mundo bão de acabá, mas vamo que vamo que o livro de hoje não vai se criticar sozinho. Opa, mentira, vai sim. Já viu a rasgação de seda que vem atrás de qualquer edição do Budapeste? Em qualquer outro livro, os elogios são do naipe de “Intelectual-do-qual-você-nunca-ouviu-falar”, “Gazeta de Moçoró”, “Mãe do autor”, “Blogueiro-virgem”. Mas rá! Chico Buarque não, negão. Aposto que rolou um leilão pra ver quem iria figurar nos comentários de capa e contra-capa, mas acabou que ganharam Caetano Veloso e José Saramago. Quase nada, né? Dois zés-ninguém, afinal. É esse tipo de coisa que me fazia levantar uma sobrancelha pra literatura do feio bonito, assim como o faço com qualquer unanimidade/vaca sagrada.

Mas, meus camaradinhas, eis que me rendi ao charme do velhote. Budapeste é mesmo um livro sensacional, e digo mais: em termos de ambição literária, poucos autores podem se gabar de ter chegado tão longe quanto Chico com esse livrinho.

Pra quem não tá ligado na história, aqui vai uma desde já malfadada tentativa de resumo da ópera (embora eu sei que não devesse porque acho que esse livro vai entrar na lista de alguns vestibulares esse ano, mas bora lá ser irresponsável e baixar as espectativas do sistema educacional): O protagonista é um ghost-writer chamado José Costa. Para quem não sabe, um ghost-writer é o cabôco que, em troca de muito dinheiro, escreve discurso pra político, autobiografia de alheios e outras paradas afim sem nunca levar o crédito por nada (“Ah, pára com isso, Yuri, todo mundo escreve suas próprias obras!”). Digamos então que é uma espécie de Peninha da literatura. De qualquer forma, parece que os ghost-writers se reúnem em congressos e encontros, uma parada bizarra para profissionais anônimos, eu sei, mas foi exatamente numa dessas, na Turquia se bem me lembro, que José Costa acaba parando em Budapeste, por causa de qualquer incidente com voo, essas bagunças de aeroporto. Lá ele se apaixona pela cidade, e na volta tudo é diferente: sua mulher já lhe parece mais distante, seu emprego pouco satisfatório e eis que surge um alemão sem pêlo no corpo pedindo uma autobiografia. O sujeito trava pela primeira vez na história do tedesco e termina de qualquer jeito antes de se mandar para umas férias de período indeterminado na Hungria, enquanto a esposa viaja pra Londres. E aí que conhece a Krista, a branquinha de Budapeste, que resolve ensinar a língua magiar pra ele. Só que enquanto isso, não é que o livro do alemão que ele escreveu e batizou de O Ginógrafo bomba nas Megastore da vida? É autógrafo pra lá, entrevista no Jô pra cá, um oba-oba dos infernos que começa a mexer com a vontade do Costa de querer ser reconhecido. E aí a vida do cara vira EL DESBARRANCADERO. Mais do que isso é Spoiler, menos do que isso é orelha e mais sério do que isso é redação de quinta-série. Então paremos por aí.

"Você tá igual melancia na roça, gata, tá rachando de boa"

Primeiro: é de babar o jogo de espelhos que o autor constrói nesse livro: Rio de Janeiro/Budapeste, Esposa/Amante, português/húngaro (aliás, me expliquem. Se Búlgaro – Bulgária, por que não Húngaro – Hungária?), anonimato/fama, riqueza/pobreza, etc etc. E a maneira como esses dois mundos vão colidindo é qualquer coisa tão sensacional que se J.J. Abrahams tivesse pensado antes, Fringe não seria a porcaria ininteligível que é hoje.

Segundo: acho que como o Pedro Camacho na Tia Júlia e o Escrivinhador, Chico Buarque quis traçar planos ideais: o que seria o anonimato ideal para um ghost-writer? Qual seri a situação limítrofe que o empurraria para fora desse anonimato? O quanto se pode realmente dominar uma língua estrangeira, e em quanto tempo? Essas questões são levadas ao extremo em Budapeste, e quem é que não gosta de um extremismo por essas bandas? Quem, eu pergunto, quem não liga para extremismo na terra do azeite de dendê, da suruba, do Rio-quarenta-graus, da PM truculenta, do Impostômetro, da surra de bunda, do Pit-boy com orelha de couve-flor, de Otto Maria Carpeaux, de Sérgio Porto, da venda de cimento que aumenta 500% em ano de eleição?

Terceiro: o livro guarda mais ação, suspense e narrativa dinâmica que muito fast-pace de aeroporto que a La Selva se adianta pra colocar na vitrine. Do jeito que a gente anda mal das pernas na literatura nacional, se tivesse só uma narrativa irada já valeria a pena, mas é tão mais que isso que é ou não é pra ficar bolado com esse tal de Chico Buarque que, além de falar húngaro de verdade, ainda por cima tem olho azul. Deus, por que és tão injusto conosco?

Esse projeto gráfico da Companhia das Letras é feito para uma edição econômica, que reduz o preço do livro em uns bons 40%. Fonte janson pra caber mais, papel jornal porque mofo é para os fracos, sem orelha (impressionante o quanto uma orelha pode encarecer o preço final de um livro. E pra quê? Pra conservar as pontas e pagar pra um almofadinha qualquer jogar confete no livro que eles já estão tentando vender) e num formato um tanto maior que não vou medir a essa hora da madrugada. Mesmo assim, tem uma margem confortável na página e a capa é bem bonita, fazendo uma menção ao tal jogo de espelhos a que me referia. E é essa a edição que eu tenho e é essa a edição que eu recomendo pra vocês. Por quê? Porque eu não quero que vocês abram falência por causa desse blog e porque o Chico Buarque já tá rico o suficiente, ele não vai ligar se vocês comprarem a edição barateza mesmo. Fiquem com JAH e usem camisinha.

A propósito: CURTAM A PÁGINA DO LIVRADA NO FACEBOOK. Grato.

Comentário final: 113 páginas em papel jornal. Desses pra enrolar o livro num tubo e dar na cabeça das crianças dizendo “menino levado!”.

Lourenço Mutarelli – Nada Me Faltará

(voz da locução) Com a chegada do Natal, muitos se preparam para comprar presentes com antecipação. Mas a maioria das pessoas, como bons brasileiros, deixaram tudo para a última hora. (microfone na cara da gordinha) Deixou para a última hora por quê? (gordinha dá uma risada amarela) ahahaha ahh, sabe como é… brasileiro, né? Tudo pra última hora hahahah (volta pra locução enquanto as imagens mostram o interior de algum magazine Luiza) Mesmo assim, para quem tem paciência de pesquisar, existem muitas promoções para quem quer encher a árvore de natal de presentes (microfone na cara do senhor careca com cara de quem apanha da mulher) tá levando o que hoje? (senhor coça a nuca meio sem graça) tô levando uma máquina de lavar pra minha mulher, uma geladeira pra minha filha e uma televisão pro meu filho. (volta pra voz de locução e agora as imagens mostram um tio meio bostão mexendo nuns papéis na escrivaninha) mas este economista alerta: comprar tudo parcelado pode dar uma dor de cabeça daquelas para o consumidor depois do ano novo (microfone na cara do tio bostão) não pode pesar no orçamento depois. O ideal é que se separe até 15% do salário dos próximos meses para pagar as parcelas, não mais do que isso (corta direto pra gordinha número dois, porque quem faz merda é sempre gordo) que que você comprou? (gordinha rindo à toa) ih, já comprei uma geladeira, um liquidifador, laptop, celular, lava-louça, amber vision, frigidiet, masterline, camisinha, camisola e kamikaze (repórter pergunta com um leve tom de riso) e pra pagar tudo isso depois? (gordinha aos poucos parando de rir e botando a mão na consciência, mas fingindo que está levando na esportiva) ahhh, depois a gente vê, o importante é aproveitar o natal.

Essa brevíssima introdução, além de alertar meus queridos leitores sobre os perigos do consumismo e enrolar o suficiente, serve também para mostrar que jornalista não tem imaginação durante todo o mês de dezembro. Por exatamente essa razão, resolvi aproveitar uma entrevista que fiz com o escritor Lourenço Mutarelli no ano passado que, não sei por que cargas d’água, não coloquei aqui antes. Rá, aqui a sinceridade prevalece, se você gosta de falsidade e hipocrisia, vá ler outra coisa. Sei lá, a Caras. Segue o texto na íntegra:

Não se pode mais dizer que o escritor e desenhista Lourenço Mutarelli seja um novato na área da literatura propriamente dita. DesdeO Cheiro do Ralo [2002], seu romance de estreia, o autor vem desenvolvendo um estilo singular de escrita e já desponta como um dos mais autênticos escritores nacionais. Os livros de Mutarelli são marcados por uma forma sintética e um conteúdo doentio, conferindo ao conjunto da obra quase uma obsessão pela unidade temática.

Agora, com seu novo livro, Nada me Faltará, Mutarelli refina ainda mais sua escrita para compor uma história inteiramente contada por diálogos, sobre o drama de Paulo, que, após sumir do mapa por um ano junto com sua mulher e filha, reaparece sozinho, suscitando dúvidas e desconfianças quanto ao paradeiro de sua família. Em entrevista exclusiva, o autor falou da forma de sua escrita e de elementos comuns que permeiam sua obra e se fazem mais notáveis neste livro.

A principal característica desse livro é sua forma minimalista. Porém, analisando suas outras obras é fácil perceber que um livro composto apenas de diálogos seria o próximo passo lógico no processo de enxugamento de texto que o você vinha realizando. A concepção dessa forma foi natural para você?

Foi muito simples na verdade, eu estava pensando justamente nos quadrinhos, uma história contada só com diálogos. Foi um ponto de referência pra mim. O mais difícil foi achar uma forma de resolver a história só em diálogos, porque eu queria suprimir o máximo de informações. Eu queria um diálogo muito cotidiano, que não fosse muito rebuscado ou poético, porque os dois primeiros livros têm um estilo sintético, mas têm também uma poesia que eu queria evitar nesse.

"Aí o dono do bar falou: eu nunca vi um papagaio gostar tanto de x-burger"

Os finais de seus livros estão cada vez mais afastados de um desfecho confortável à nossa curiosidade, pois o você suspende o leitor em vários pontos e resolve apenas alguns. Isso acontece por uma preferência pessoal ou por uma dificuldade técnica sua em fechar histórias?
Eu não quero continuar fazendo isso, porque eu gosto de experimentar. O cheiro do ralo, por exemplo, tem o final fechado, mas o Natimorto [romance de 2004] deixa em aberto. Me perguntavam o que acontecia e eu não sabia responder, porque acho que as pessoas têm que fazer o final que elas quiserem. O final tá lá, codificado e de acordo com a interpretação de cada um. O final está em suspenso de alguma forma porque o personagem não morreu e matar meus personagens era a única maneira de contar uma história até o fim. Eu estou trabalhando numa história ilustrada agora que começa pelo fim, mas tem um episódio que fica sempre no ar. Então cabe a cada um perceber se é verdade ou não e também se faz sentido ou não, porque um dos personagens acredita naquilo e usa essa mentira [caso não tenha acontecido] para causar alguma coisa nas pessoas para quem ele conta.
Mas como gosto muito de experimentar, eu quero, quando acabar esse, fazer um livro cujo final seja mais fechado e mais tradicional.

Assim como em A arte de se produzir efeito sem causa e Miguel e os Demônios, o protagonista de Nada me faltará também volta a morar na casa dos pais [no caso, com a mãe]. Qual é a importância dessa mudança de casa [como também acontece em O natimorto] em sua literatura? O aumento do atrito entre as relações dos habitantes da casa demonstra que morar junto é uma impossibilidade? 
Eu acho que tem muitas questões que aparecem no nosso trabalho sem que a gente perceba. Eu quis fazer uma trilogia em que o filho adulto volta a morar a com o pai. Isso acontece noMiguel e os demônios,  em A arte de produzir efeito sem causa e no livro de nova York que eu pretendo reescrever. Após isso, eu quis fazer um livro em que o personagem volta a morar com a mãe, é uma relação pra mim bastante diferente. Sobre o atrito, eu penso que o maior pesadelo para mim seria ter que voltar para o primeiro lar. Então eu usei essa atitude como uma forma de tornar o personagem já derrotado. No caso do Miguel, o filho está muito mais como uma companhia para o pai do que um peso. Mas há aquele filho que nunca consegue formar sua própria família e sempre tem que voltar à sua condição de filho.

O protagonista do livro passa por um processo de hipnose. De onde vem o seu fascínio por ciências ocultas ou arcaicas?

Eu acho fascinante! Geralmente eu não acredito, mas exerce um poder ilusório de acreditar na possibilidade, e aí eu gosto de pensar nisso. Quando a pessoa está sofrendo uma ruptura interna e ela começa a projetar isso no sobrenatural — em alguma visão mística ou religiosa — fica difícil saber até que ponto isso é possível ou apenas um delírio do personagem. Eu gosto desse jogo.

Você costuma fazer referências à suas próprias leituras em seus livros [emNada me faltará, a obra chave é um livro de Foucault e em Arte de Produzir Efeito sem Causa, o mistério é circundado pela obra de William Burroughs]. Você espera que seu leitor ideal busque nesses livros um complemento à sua obra, como uma pista de caça ao tesouro?
Eu sou um leitor autodidata. E muito do que eu li e que eu montei a minha biblioteca foi em cima de notas de rodapé ou referências que ramificam para obras sem fim. Nos dois casos específicos, eu acho que a obra citada é quase um link para entender o mistério. Eu acho que há muito que a obra pode complementar a visão do trabalho.

O personagem mundinho, que aparece em A arte de produzir efeito sem causa, é citado em dado momento do livro. É o mesmo personagem? Se sim, por que fez esse resgate?
Foi intencional esse resgate e ele deve aparecer de novo. É um personagem fictício que virou uma referência a muitas pessoas com quem eu conheci, com quem eu estudei no ginásio. Demais você ter percebido, ele vai aparecer de novo!

O perfil psicológico de seus protagonistas é sempre um enigma. A maioria é tão apática que os personagens secundários são mais claros para o leitor do que o próprio personagem central. Como você pensa a construção psicológica desse personagem tão veladamente?
Eu brincava até de diagnosticar os transtornos patológicos dos meus personagens. A partir de pensar e traçar esse perfil, eu acho importante deixar uma proximidade e ao mesmo tempo uma estranheza, como acontece com uma pessoa que te surpreende. Eu acho que 90% dos meus personagens está a ponto de viver uma transformação, e a história se passa um pouco antes dessa montanha russa descer. Em Nada me Faltará, esse personagem aparece e ele já passou por uma transformação. Nesse caso eu não podia entregar nada antes desse acontecimento porque a grande questão é isso: o que aconteceu e se, de fato aconteceu. Então ele aparece já voltando dessa passagem.

Eliane Brum – Uma Duas

Se eu fosse o Pedro Bial, chegaria nesse blog gritando ROMANCE! agora (tá, clique aqui para entender minhas piadas). Isso porque, apesar da autora em questão ser uma jornalista conhecida por suas matérias jornalísticas e seus livros jornalísticos, o livro em questão é nada mais nada menos que a estreia de Eliane Brum no campo minado da ficção. Sem mais delogas, vamos a ele. E hoje vou fazer uma resenha séria.

Uma Duas é um livro que me lembrou em muito o romance A Pianista, da Elfriede Jelinek (que foi transformado no filme A Professora de Piano, pelas mãos de nada menos que meu diretor favorito: Michael Haneke, o Tony Montana do cinema!), por tratar de uma relação doentia. E quando eu digo doentia, não quero dizer no nível Napoleon Dynamite, não quero dizer no nível King Pin – Esses Loucos Reis do Boliche, e também não quero dizer no nível irmão-que-transa-com-a-irmã-no-guerra-dos-tronos. Peraí, mas agora chegou perto! Trata da história de uma filha e uma mãe que, coitadinhas, se pudessem se matavam como um hamster mata o outro dentro de uma mesma gaiola. A mãe é pouco mais que uma cadela passivo-agressiva: despirocada desde antes de ser abandonada pelo maridão, mantém a cria na rédea curta com aquele lance de culpa de mãe judia, embora a religião aqui não seja determinada. O que é uma burrice, porque todo mundo sabe que jogar as ameaças na mão de Deus é considerado normal aos olhos do juizado, mas experimente falar que quem vai dar o castigo é você pra ver se não te enquadram no abuso infantil…

De qualquer forma, a mãe é uma daquelas que gosta de pegar, de dormir junto, de fazer carinho… êpa! Claro que a filha já não cresce certinha das ideias. Incapaz de lidar com pessoas normais, afasta todo mundo dela e inclusive larga seu emprego. Agora, o mais perturbador da história é que a protagonista guarda terríveis semelhanças com a vida da Eliane Brum: também é jornalista, também largou o lance que ela tinha na Época, etc. etc.

E aí a cagada tá feita, mano! Alternando entre a voz da mãe, a voz da filha, e a voz de uma narradora “imparcial”, Eliane te leva pra dar um rolé no inferno com ela e com a patota que ela criou. É curioso a gente pensar que uma repórter como ela, que lida com tanta desgraça nas histórias que conta, queira tratar de um outro tipo de desgraceira que é a desgraceira psicológica… Bem, como diz o Bispo, eu sou um artista, esse é meu lixo. Vamo que vamo.

Algumas considerações, mas antes, uma ressalva: para um livro de estreia, Uma Duas é um livraço! Mas vocês me conhecem, o papai aqui é chato. Eu sou o equivalente àquele feioso do Ídolos que usa boné e óculos e desconta as frustrações da vida no trabalho dos outros. O que eu queria dizer na verdade é que a autora carrega pra dentro da ficção alguns vícios da escrita jornalística, e acho que o principal é direcionar o olhar do leitor para o horror de uma maneira muito explícita, ainda que não pareça quando as orações são maquiadas com o pankake do eufemismo. Claro, isso serve na reportagem: você precisa sacudir o sujeito que coloca o monóculo para ler sua matéria. Mas na literatura, eu acho mais interessante o que não é dito e o que é sutil. Algumas passagens podem ser carregadas de efeitos lingüísticos que alimentam a alma barroca mas fazem pouco pela alma de quem lê. E nessas apanhou também o Sr. Saramago.

Há também a questão da voz. Não fosse a fonte do livro, que muda três vezes para alternar entre as três vozes, ficaria difícil diferenciar uma da outra. Talvez isso sirva ao propósito de que mãe e filha são mais parecidas do que se supõe, mas a julgar pelo zelo da edição em separa na tipografia, diria que não. O atenuante da situação é que a(s) voz(es) que ela cria são bem interessantes, e dizem muito sobre a intenção da autora e conduz o leitor para dentro da miséria mental dos personagens sem necessariamente entender tudo, mas também sem deixar aquela vaga impressão de que ninguém – nem a escritora – sabia o que estava fazendo. Não se enganem, meus filhos: a relação conflituosa e doentia entre mãe e filha pode ser corriqueira na literatura e no cinema, mas o que temos aqui foi criado a partir do zero, algo bem original, principalmente para os padrões da nossa literatura nacional.

O projeto gráfico da editora Leya é uma beleza, mas uma beleza do tipo Hillary Swank: dada a divergências. Tipografia laranja e aquele papel leve de jornal com que imprimem os livros americanos… vá lá. Eu gostei, e vocês?

Desculpem por essa péssima resenha de hoje. Não ando inspirado nem motivado. Quem sabe melhora.