Elvira Vigna – Nada a Dizer

nada a dizerVou ser bem sincero aqui e dizer que há tempos nada me anima muito na literatura brasileira. Acho que o pessoal se perde muito nas próprias veleidades estilísticas e o resultado é uma punhetação literária, a versão escrita de um disco do Yngwie Malmsteem. E levante a mão aqui quem é que curte o Malmsteem de verdade? Ou isso ou a minha visão do que é boa literatura anda muito limitada, mas o fato é que a comparação com os portugueses sempre é inevitável, e isso dá uma medida do quanto estamos ficando pra trás nesse lance de escrever bons livros. É claro, vez ou outra aparece um cara bom que me diverte, mas nada que me cause a catarse de ler um livrasso. Isso até conhecer a obra da carioca Elvira Vigna. E agora para os babaquinhas da objetividade, um alerta: tem spoiler, e se você acha que isso estraga o prazer de uma boa leitura, lo siento.

De Vigna, só li, por enquanto, Nada a Dizer, mas é claro que pretendo ler mais coisas assim que a grana e o espaço de casa permitir. Vou contar aqui do que o livro se trata e comentá-lo um pouco para ver se minha opinião é partilhada por vocês. Bom, e o que é Nada a Dizer? Felizmente esse é um livro que dá para resumir quando precisar responder a pergunta imbecil “do que fala esse livro?”. Nada a Dizer é um romance que conta a história da traição do ponto de vista da mulher traída. Simples assim, mas não vá ficar achando que isso tá de bom tamanho pra um resumo, fulano. A história é narrada por uma tradutora, de idade já avançada, e esposa do canalhão Paulo, que tem um caso com N. Ahh, adoro personagens cujo nome são reduzidos a uma única e misteriosa letra. É um lance tão Stendhal, tão Marques de Sade, tão francês de rabo preso com a aristocracia local que esse simples nome me remete ao que há de melhor na literatura francófona. A genialidade do livro, entretanto, começa justamente escondendo não N., mas a própria narradora. O início mostra Paulo, que mora em São Paulo, viajando ao Rio de Janeiro para encontrar um amigo e essa sua amante. Apenas no final do capítulo temos consciência de que o narrador que tudo sabe não o sabe porque é narrador, mas porque é a esposa dele, que como toda esposa traída, extorquiu a história do infeliz até a última gota.

A partir daí, a coadjuvante-narradora remonta os passos do sujeito desde que ele começou o caso, analisando o que ela sabia e onde ela estava no tempo e no espaço em cada uma das situações. Porque é óbvio que a mulher precisa escrever um livro com tudo o que ela sabe, e o que é pior: dá mesmo para escrever um livro com tudo o que ela sabe. E tudo gira em torno da questão: se ele me trai, o que eu significo para ele? Não dá pra medir a genialidade da Elvira sua sensibilidade feminina nesse ponto. Todo mundo que já conheceu uma mulher que curte pirar errado nas ideias sabe que é exatamente esse o comportamento. A fulana não quer admitir de frente que levou chapéu de vaca pra casa e procura questões tangentes de aparência equânime à principal pra poder se sentir individual em sua dor, para não se rebaixar a um sentimento tão universal e humilhante quanto aquele. É preciso raciocinar sobre o ocorrido, é preciso ser fria e calculista quando tudo o que se quer é botar vidro moído no feijão. E nessa análise da situação toda o leitor acaba descobrindo mais sobre a personalidade de quem conta: uma mulher aparentemente segura, mas completamente insegura, que cresceu à sombra de personalidades mais fortes, dessas que têm a vida toda planejada pela frente e se frustra enormemente quando as coisas não saem como o planejado, etc, etc, já deu pra pegar o tipo.

elvira vignaE, enquanto conta, ela faz um mea-culpa para qualquer interlocutor impiedoso que ouse interferir com um insensível “mas tu era cega mermo, hein, filha?”. Ela admite sua cegueira, seu estado de negação, e dentro desse estado de negação reside seu medo, suas expectativas, seu descompasso com a realidade. Ah, que beleza que é esse livro! Desses que você devora em pouquíssimas horas se tiver um sábado preguiçoso pela frente.

Mas, ao mesmo tempo, a narradora é extremamente humana com o marido traidor. O sujeito também é típico. Daqueles que prefere evitar o problema a discutir em casa, que gosta de negar mesmo com as calças na mão, que nunca admite o próprio erro a não ser quando o erro já tá documentado em cartório. E ela o ama, e por isso se compadece de seu espírito imaturo, ou pelo menos engana a si mesmo ao se apiedar, e o trata como uma criança, como costuma se fazer nessa hora aquelas que precisam passar por cima da carne seca a qualquer custo. E é, pois, esse jogo de moral, o grande barato do livro. Encontrar otimismo na cagada alheia, não se deixar abalar, tentar ser melhor do que tudo isso, quem nunca?

A capa do livro, embora seja bem bonita, me enganou muito bem com esses dois jovenzinhos sentados num sofá compartilhando um climão. Não é, afinal, uma história de amor imaturo,  é uma imaturidade em uma história já amadurecida. Além do que a tipografia usada na capa é compartilhada com a Rachel Cusk, uma escritora americana que, ao que parece, não tem nem um décimo do quilate da Elvira Vigna. Então isso conta contra o projeto gráfico, somado também à mistura abominável de amarelo, salmão e marrom-cocô-de-vegetariano. No mais, por dentro tá tudo certo: papel pólen de alta gramatura, fonte Electra, e o de praxe. Recomendo fortemente pra quem está desacreditado com os autores brasileiros e para quem uma boa dose de realismo é necessária na literatura tupiniquim.

Comentário final:  168 páginas em papel pólen. Machuca o âmago do seu ser.

J. M. Coetzee – Desonra (Disgrace)

Disgrace coetzeeEis que meu camarada Karkão se encantou com a literatura pungente e obstinada do grande John Maxwell Coetzee e me pediu para que eu comentasse aqui este livro que está entre suas obras mais populares, senão a mais popular de todas. Li Desgraça há algum tempo, mas em termos relativos, porque leio muito, posso dizer que li há muuuuito tempo, então pode ser que a grande maioria das impressões que este livro me trouxe de início tenha se perdido ao longo desses anos e suas centenas outras leituras. Mesmo assim vou tentar resumir a história para vocês e meus conterrâneos vão achar o post de hoje bem útil já que rumores andam pairando pela cidade atestando que o grande prêmio Nobel sul-africano pode desembarcar por essas paragens no próximo mês. Vamos aguardar uma confirmação.

Antes de mais nada, uma breve sinopse para começarmos a discutir, mas desde já adianto que não vi o filme homônimo com John Malkovich, então não me culpe por quaisquer más-impressões que a história cinematografada pode ter produzido sobre seu juízo crítico. O que sei é o que li: a saga do professor universitário David Lurie, um daqueles caras lógicos, frios, pragmáticos e brancos que moram na África do Sul (ohhhh, tão diferente do próprio autor, como será que ele consegue?), que é mensalista do puteiro e tem planos megalomaníacos de escrever uma ópera sobre Lord Byron – que é, aliás, o que todos esses misantropos modernos gostariam de ser —, até que um belo dia se mete com uma aluninha chave-de-cadeia e é acusado de abuso. De qualquer forma o sujeito sobe nas tamancas, dá um piti infectado e é afastado da escola. É aí que resolve reatar laços familiares com a única filha que tem – o que, em se tratando de Coetzee, deve ser algo fruto da paternogênese, porque ô velhinho esquisito esse –, uma hã… Maria João que mora numa fazenda do interiorzão da África do Sul. Tudo vai indo bem até que um dia a fazenda é roubada e a filha do cara é estuprada brutalmente por três negões. E o pior, ela engravida de um deles e sabe muito bem quem são. O nosso protagonista fica então desnorteado e tenta entender esse mundo que é geograficamente tão próximo de si e ao mesmo tempo tão distante culturalmente.

Bom, pra começar, Desonra não traz nada de diferente do que o resto da literatura do Coetzee propõe, mas resume muito bem a ideia da obra como um todo. Justamente essa não-pertencença (se essa palavra não existia, passa a vigorar a partir da presente data) do homem branco que se propõe intelectualizado nessa louca louca África dividida. Porque mesmo que o apartheid já tenha acabado, todo mundo sabe que na prática não é assim.  E ou você está do lado de lá, ou está do lado de cá. Mas estando do lado de cá, há sempre a opção de ser um acéfalo e se omitir da questão racial, algo que não é uma escolha para quem se diz ser pensante. Ao mesmo tempo, entender a relação de proximidade entre estuprador e estuprado no interior da África é mais complicado do que Édipo furando os zóio, então não há muito o que fazer senão se deparar com a própria incapacidade de viver o mundo real. Resumindo, o bôer intelectual sul africano é um sujeito sem classe: malquisto dos dois lados, recolhe-se em sua concha de autossuficiência.

John Maxwell CoetzeeMas rá! Não é só isso. Além da não-pertencença classicista, há a não-pertencença etária. Veja bem, David Lurie está numa fase meio velho lobo que, na prática, o torna velho para tudo o que lhe afronta. Está velho demais para se envolver com as aluninhas, velho demais pra ser mensalista do puteiro, velho demais para tentar cuidar de uma filha que já se cuida sozinha no coração da selvageria, velho demais para ambicionar escrever algum dia relativamente distante uma obra megalomaníaca – que diabos, é velho demais para conceber qualquer coisa megalomaníaca – e se vê irrelutantemente velho, ainda que se sinta novo para tudo isso. E sua tentativa de consertar as coisas são mais desastrosas que a queima de fogos no réveillon lá da minha praia. Resumindo, o deslocamento das coisas só não é mais cru e excruciante que o próprio deslocamento da realidade. E esse, imagino, deva ser o sentimento de todo acadêmico branco africano. Não é à toa que a solidão permeia boa parte de sua obra, e sua inadequação com o trato social é característica marcante não só de seus personagens, como também do próprio autor, algo que pode ser visitado na trilogia autobiográfica Cenas da Vida Na Província, todas já resenhadas pelo livrada. Parte 1 aqui, parte 2 aqui e parte 3 aqui.

Resumindo, a desonra do livro pode muito bem se referir àquela que em David Lurie se encontra depois de ter feito tanta merda na vida e ter acabado testemunha de um assalto seguido de estupro da própria filha, que no fundo nem liga pra isso, mas não deixa de ser a desonra de ter conquistado, colonizado e permanecido ali, imiscível e avesso à vida selvagem. A desonra de ser impotente diante de um mundo que seleciona os melhores pela força e pela honra, a desonra de ser velho vencido e a desonra de ser um merdão a vida toda. Eis, meus senhores, a essência, da obra de Coetzee.

Só uma ressalva, já que sempre terminamos o papo comentando o projeto gráfico. A capa do exemplar que eu tenho, excepcionalmente hoje, não é a capa do começo dessa postagem. Tenho a primeira capa do Coetzee pós-nobel, aquela com belíssimas obras abstratas de Fábio Miguez, mas esse exemplar acabou ficando raro. Não mais raro do que a capa que segue o modelo de Diário de um Ano Ruim. Essa sim é pra lascar o couro do colecionador, o que, graças a Deus, gosto de pensar que não sou. Papel pólen e fonte Electra padrão de todos os bons livros da Companhia das Letras definem a experiência de uma das melhores leituras que fiz na minha recente vida de leitor. Karkão, espero que tenha lhe satisfeito, essa foi pra ti.

Ps: já é o quinto livro do Coetzee que trato aqui. Já já começam a faltar fotos diferentes dele.

Comentário final: 248 páginas papel pólen. Porrada neles, governador!

José Luís Peixoto – Livro

José Luís PeixotoEi-nos, mais uma vez, a passar vergonha ante a onipotente literatura portuguesa. Camões, Eça de Queiroz, Almeida Garrett, Fernando Pessoa, Saramago, say no more. Mesmo que esses caras estejam fora de circulação há algum tempo, e que a grande maioria da nova safra de escritores lusos seja tecnicamente nascida na África, ainda há alguns que mandam bem o bastante para acharmos que o fenômeno é perene, mesmo que eventualmente comece a ir mal das pernas. Mais ou menos a relação do resto do mundo com a Seleção Brasileira de Futebol (SBF) (espero que seja essa a sigla), ou seja, só a gente aqui sabe a quantas anda esse futebol mixuruca.

De qualquer forma, temos cá conosco hoje o senhor José Luís Peixoto e seu livro meta-intitulado “Livro”. Ora, isso é sintomático de um povo que já se cansou de inovar na linguagem e agora resolveu subverter os títulos também. Mas rá, tem um porquê o livro se chamar Livro. Mas se eu explicar com todas as letras vou estragar o prazer da sua leitura, afinal de contas, o sujeito que resume seu título a uma palavra quer muito que você descubra porque aquela palavra é mais importante do que todas as outras dentro do livro.

Pois muito bem, vamos à história: Ilídio (não confudir com a musa Lídio Matheus) é um garoto abandonado pela mãe com uma mala e um livro. Rá, aí já se começa a desvendar o mistério, afinal de contas, há uma simbologia que um livro e uma mala compartilham, e isso tem a ver com todo o resto, faça as contas de cabeça para saber que tô cansado de ficar dando tudo mastigado pra um povo preguiçoso que chega aqui pelo Google querendo cópia de trabalho de escola pronto pra mandar pra professora (se não acredita nisso, dá uma olhada na primeira resenha desse blog, Grande Sertão Veredas). Bom, de qualquer jeito, o protagonista garoto é criado pelo pedreiro Josué, que felizmente é um pedreiro português e não um pedreiro de Feira de Santana, a Meca da pedofilia (brincadeira, amigos baianos, só fiquei traumatizado com o noticiário insistente). Abandonado pela mãe, criado pelo pedreiro, o sujeito desenvolve uma relação platônica com uma moçoila chamada Adelaide. Entendo que Adelaide parece ser um nome comum em Portugal, em especial durante um certo período do século 20, mas toda vez que algum portuga me fala em Adelaide eu lembro não apenas de “Adelaide, Minha Anã Paraguaia”, música da finada e esquecível banda Inimigos do Rei, cujo narrador/poeta se diz jogador de basquete português,  mas também do Bruno Aleixo na escola acusando a “Adelaide, aquela matulona”, de maneira que fica difícil pra mim transformar a história numa coisa mais séria, fora de uma comédia pastelão. De qualquer jeito, Adelaide é a Lenora de Ilídio, e os dois começam um flerte quando rola uma migração massiva pra França e a “Delaide” vai junto, e o Ilídio vai atrás porque, enfim, senão não tem romance.

José Luís PeixotoTaí o cerne da questão, e a boa primeira metade do livro também, porque até então é só descrição, aclimatação e uma boa encheçãozinha de lingüiça porque ninguém é de ferro. E como é de minha política pessoal não contar nada para o leitor além da metade do romance sem colocar um adesivão de Spoiler Alert em cima da postagem, vamos ater-nos ao que temos, sim? Bom, em primeiro lugar, temos aí a viagem do livro e a viagem física retratada no livro, a viagem dentro da sua viagem (yo, dawg…), e a mala e o livro perpassam o romance dando a impressão da perenidade das coisas: os bens imateriais e seus falsos misticismos, vai saber…

Sobre o estilo, porém, tenho que fazer uma ressalva. O Peixoto escreve muitíssimo bem. Você passa pelas linhas e, embora ache tudo estranho como um brasileiro que não reconhece o próprio idioma bem usado, concorda que está tudo em seu devido lugar e que não há muita gordura no texto além do que a estrutura prevê. A estrutura, porém, é um problema, porque você passa as boas 80 primeiras páginas meio que se inteirando das coisas e isso deixa a leitura meio nauseabunda. Agora, obviamente isso não é um defeito a ser atribuído ao escritor, mas a mim mesmo, leitor deficiente criado na base de Mauricio de Sousa. Fato é que a coisa se pareceu arrastada e truncada para mim, mas tenho certeza que qualquer tuga da gema pega isso e lê com mais facilidade do que legenda de filme de besteirol americano. E aí que eu terminei e fiquei sem saber o que há na maravilhosa literatura de José Luís Peixoto que ganha o mundo enquanto você fica aí em casa só no Facebook, seu virjão. E aí me senti mal e um pouco envergonhado, mas mesmo assim vim fazer aqui meu mea culpa para vocês porque se existe uma qualidade que faz um bom crítico é a cara de pau, e cá estou eu com a cara de pau de escrever um post nesse respeitado e mundialmente famoso recanto beletrista da web para dizer: Não entendi, mas pelo menos sou homem o bastante pra não ir requentar críticas alheias sobre o livro. De modos que se alguém tiver lido o livro e quiser compartilhar seus insights, sinta-se livre para fazê-lo na caixa de comentários.

A capa que a editora Companhia das Letras fez pra esse livro, tenho certeza, garantiu cerca de 40% das vendagens, e o resto veio de sua visita ao circo da putrefação cadavérica da massa cefálica que é a Festa Literária Internacional de Paraty. A gramatura e a fonte Sabon em tamanho grande aumenta a lombada e deixa tudo mais atraente porque onde já se viu português escrevendo livro fininho? Deem-nos mais Equadores, mais Livros do Desassossego, mais Evangelhos Segundo Jesus Cristo, mais Lusíadas que seja, ora bolas! Queremos machucar os outros com Livradas! vindas de além-mar e não temos medo de aumentar o tamanho da fonte para isso. E eu sinceramente espero que essa estirpe de escritor tatuado e cheio de piercings abra uma brecha para que nós, profissionais do ramo tatuados e cheios de piercings, ganhemos algum respeito apesar de nossa aparência assustadora. Por isso coloquei essa foto de gatênho do cara aí.

Enfim, galera, vou ficar por aqui porque não estou sendo muito útil. Façam suas apostas e suas interpretações sobre o livro Livro no Livrada!

Comentário Final: 283 páginas em papel pólen de alta gramatura. Uma porrada no homem do saco de mil filhos!

Orhan Pamuk – Meu Nome é Vermelho (Benim Adım Kırmızı)

Benim Adım KırmızıHoje é aniversário da minha gatinha, mas antes da festa, o Livrada! precisa continuar. A Carlinha tem alguns escritores favoritos, pelos quais eu partilho o gosto na maioria das vezes. Mas o Pamuk, acredito, talvez seja seu escritor favorito de língua estrangeira, e depois de ler três livros dele e de muita insistência, ela finalmente me convenceu a pegar uma obra deste turco que é prêmio Nobel de literatura de 2006.

Meu Nome é Vermelho passou na frente de Neve, que era minha segunda opção, pela proximidade do tema comigo. Ora, muita gente aqui não me conhece pessoalmente, mas a verdade é que eu gosto muito de desenhar e venho de uma família de desenhistas, pintores, projetistas e outros profissionais que trabalham de lápis e prancheta figurativamente sobre um plano neutro. E o lance desse romance está justamente no desenho, então resolvi verificar o que esse gajo turco sabe desses lances.

Pois muito bem, muito bem bem bem. Meu Nome é Vermelho é um livro sobre desenho, mas é uma daquelas histórias específicas rodeadas por universalismos. Temos mistérios, crimes, amor, drama, morte, vilões, mocinhas, heróis, lendas, fábulas, e, é claro, temos a questão do desenho. O argumento principal gira em torno de um polêmico livro que o sultão não-sei-das-quantas ordena secretamente a seus melhores desenhistas para dar de presente para a comitiva veneziana que pretende visitar Istambul nos próximos anos. Agora, o desenho segundo o Islã era uma coisa considerada artisticamente tosca pelos então novos padrões renascentistas que estavam ficando na moda, cheios de sombra, perspectiva e detalhes mínimos, tipo pelanca de pescoço e sobrancelha mal aparada. Isso era então uma afronta às leis de Deus para os turcos, como qualquer arte figurativa, por colocar o homem no centro das atenções e elevar o artista à condição de criador, como o próprio Deus. Ora essa, onde já se viu. Eu sei, eu sei, vocês estão pensando: “Obviamente esses sujeitos não pensariam assim se conhecessem a obra do inominável Romero Britto”, não é verdade? Na verdade também não, porque a arte islâmica tampouco contempla o estilo de um artista e a assinatura como elementos desejáveis. O lance é todo mundo fazer o mesmo tipo de bonequinho e o mesmo tipo de paisagem sempre. Resumindo: a arte islâmica era a arte do ClipArt, e vocês podem ficar o resto do dia discutindo se isso é arte ou artesanato, mas nós temos uma sinopse para desenvolver antes de falar do livro (sempre que tiverem dúvidas sobre o estilo de desenho a que me refiro, podem conferir essa capa, que tem ilustrações que evidenciam bem a questão). Bom, nessa encomenda perigosa, quatro homens, discípulos de Mestre Osman trabalham secretamente: Borboleta, Oliva, Cegonha e Elegante. É, pensei a mesma coisa: parece um elenco da Malhação turca. É quando Elegante é brutalmente assassinado por um dos outros três, e precisamos desvendar esse mistério. Ao mesmo tempo, volta à cidade o Negro, um homem que trabalhou fazendo biscate pelo mundo e pensando na doce Shekure, que tinha apenas 12 anos quando ele a deixou em Istambul. Pedofilia? Talvez, mas não vamos julgar. Shekure agora é uma moça casada e muito provavelmente viúva, já que seu marido foi pra guerra e nunca mais voltou, e seu cunhado Hassan, irmão do marido desaparecido, vive dando em cima da moçoila, mãe solteira de dois e abrigada na casa do pai, o chamado Tio (é pai mas é tio, sacou? Nem eu), que comanda o projeto. O Negro então começa a investigar o assassinato e ver se ainda dá pra recuperar o amor perdido.

pamukBasicamente, essa é a história, permeada, é claro, por muitas aulas de pintura e desenho, contos exemplares sobre estilo e assinatura e sobre a passagem do tempo para o artista, que fica invariavelmente cego no final da vida. Agora, o discurso do livro é muito interessante. Nada menos do que 21 narradores contam esse causo para você, entre eles o cadáver do Elegante, Negro, Shekure, o Tio, Mestre Osman e o resto dos artistas da Malhação Turca, além de outros personagens que são narrados nas tabernas e nas cafeterias onde os sátiros se reúnem, o que dá uma palpabilidade ao zeitgeist do romance. O recurso de múltiplos narradores, entretanto, serve a um propósito muito maior: evidenciar o poder do livro e a posição do leitor.

Isso porque um dos narradores é o Assassino, que se apresenta assim, como assassino, embora narre outros capítulos sob sua verdadeira identidade, guardada em segredo. Aí você vê que nenhum diretor em sã consciência pensaria em adaptar esse livro para o cinema, porque só o livro permite que um assassino se comunique diretamente com o leitor sob uma proteção impenetrável que é a falta de voz literária. Sim, porque todos eles falam com a mesma voz de escritor (algo muito fácil quando o autor é um só, Pamuk), uma camuflagem perfeita. E, ao mesmo tempo, todos narram para você, leitor, evidenciando algo que é sugerido pelas histórias dos sátiros: não há história sem leitor e muito menos há poder narrativo no discurso sem ele também. Isso, é claro, corrobora com a submissão do artista com o objeto da obra e seu futuro apreciador segundo a fé islâmica, então tudo se trata de uma adaptação estilística ao pensamento.

A trama de assassinato, mais a briga de Negro por Shekure, defendendo-a do possessivo Hassan, e as ordens irrefutáveis do sultão, tudo isso dá sequência não só à tradição da literatura ocidental como também da oriental. A Turquia, como vocês devem saber, é um país meio esquizofrênico nesse lance de ocidente e oriente, e coube ao Pamuk escolher temas interseccionais aos dois polos horizontais do mundo para fazer algo em favor da Turquia: um país que fala a todos os outros sem tomar para si tons exóticos e canastrões, como vemos tanto por aí. Tudo parece natural porque tudo, de fato, o é.

Acho que existem muitas outras coisas para falar sobre esse livro, mas resolvi me deter nesse ponto em particular para mostrar como é possível ser inventivo e usar a narrativa e o suporte do livro ao seu favor. Muito se fala em reinvenções linguísticas, saltos narrativos e etc e tal, mas pouca gente pensa em reformular a estrutura do romance em si. O Pamuk ganhou muitos pontos comigo nessa, e pretendo lê-lo de novo por causa disso. Espero que vocês também o façam.

Ps: Feliz aniversário, Carlinha!

Comentário final: 534 páginas em papel pólen soft. Fratura na cabeça do Elegante Efêndi.

Philip Roth – Patrimônio (Patrimony)

patrimonyFala sério, vou deixar todo mundo mal acostumado com tantos livros resenhados no mesmo mês, não é? Sei que é assim, mas regozijai-vos, irmãos, pois este colunista agora retomou o gosto pelas leituras desenfreadas e pelos comentários rápidos e rasteiros, “como quem lê a bordo de um bonde desgovernado”, como me descreveu certa vez o jornalista Pedro Rocha, de Fortaleza (um abraço, Pedro Rocha e Fortaleza!). Sendo assim, mais uma semana, mais um livro nesse blog que está a alguns passos de se tornar uma espécie de Wikipedia parcial da alta-literatura. Sim, porque diferentemente de quase todos os outros blogs literários do Brasil, aqui você não vai encontrar best-sellers (perdão pelo 50 Tons de Cinza), fast-pace, coisas que você encontra esquecidas em bolsões de aviões velhos da Gol. Aqui o bagulho é doido, jão, só figura aqui quem é bom de verdade ou, pelo menos, tarimbado no certame. Por isso as livrarias não gostam de mim, mas quem gosta de livro bão gosta do Livrada!, e é por isso que você deveria anunciar nesse espaço. Sério, me deem dinheiro, já tá na hora de eu começar a ficar rico com isso aqui.

E hoje, veja só, mais um Philip Roth. Confesso que não sei quantos livros do sujeito já figuraram por aqui, mas vou chutar que esse seja o terceiro ou quarto. Bom, Philip Roth tem aquela coisa, é uma espécie de Marcelo Camelo da literatura: as pessoas que gostam defendem com unhas e dentes, mas pouca gente sabe dizer com precisão o que há na literatura deste priáprico judeu neurótico que tanto os agrada. Eu tenho, entretanto, um palpite que serve bem a boa parte de seus fãs, crentes do tão desacreditado hype: Roth é um dos sujeitos de respeito da literatura mais fáceis de ser lido, principalmente se você pegar seus livros mais recentes, que ainda por cima são curtos. Não há a densidade de um Don DeLillo, não há a complexidade da trama de um Pynchon, não há o rebuscamento linguístico de um Cormac McCarthy, não há sequer a tradição literária resgatada de um Ian McEwan. É tudo leve, rápido e curto. É claro, há toda a formação de uma literatura formadora da imagem de um país a partir de um microcosmos, há a justaposição de invenção e memória, há a educação sentimental do macho pau mole, mas isso são coisas circunspectas a academia, que nada diz ao leitor comum, interessado somente em ler algo de qualidade e com algum conteúdo, coisas que abundam na literatura do nosso velhote. Temos que dar o crédito pela escolha precisa de palavras na voz inconfundível de sua extensa e qualitativamente constante obra. Todo mundo que pega um livro do Roth para ler já sabe o que esperar, não há nenhuma imprevisibilidade, e as pessoas bem gostam disso que eu sei.

Pegue este livro, Patrimônio, por exemplo. Apenas lendo a sinopse da orelha, em que descobrimos se tratar de uma história real sobre os últimos dias de seu velho pai, diagnosticado com um tremendo tumor no cérebro, já sabemos que 1- vai ser triste, com alguns momentos de alívio cômico 2- vai ter todo tipo de referência a judeus, comunidades judaicas, objetos judaicos e outras porcarias judaicas 3- vai ter longos momentos de solilóquio alucinado, com uma vida interior mais paranoica e arredia do que o necessário 4- vai ter discretas porém incisivas menções ao ufanista sentimento de ser americano, ser judeu-americano, ‘Merica, enfim. O resto fica por conta de cada história.

Philip RothPois bem, veja o que é o drama de seu pai, Herman Roth. Não, não é o tumor no cérebro, é ser filho de um canalha que começa a escrever um livro a partir do momento que descobre que você está com câncer. Porque é exatamente isso o que ele confessa no final (ops, spoilers!). Percebe-se que o sujeito começa a passar mais tempo com o pai para ter material para o livro – premiadíssimo, aliás, pelo Círculo de críticos americanos. Há uma cena emblemática no livro, de onde é tirada o título. O pai passa por um período longo de prisão de ventre após um procedimento médico, e sem querer caga o banheiro inteiro quando ele e o filho recebem visitas. Tem merda fora do vaso, na parede, na toalha, nas escovas de dente, a coisa não fica muito distante de uma cena escatológica do Trainspotting. O Philip Roth aparece lá, ajuda o pai a se limpar e a limpar o banheiro, e o pai envergonhadíssimo pede para que o filho não conte para ninguém o que aconteceu. “Não vou contar”, escreve o sujeito em um livro que vendeu milhares de cópias após a morte do velho. Filhão nota dez, esse, hein? Não sei se vocês sabem, mas muitos escritores têm filhos, e é frequente escrever livros sobre esses filhos, mas você vai ter dificuldade em achar um em que o escritor narra as vezes em que o filho cagou nas calças, mijou na cama ou fez qualquer coisa muito embaraçosa, e não é porque eles estão fugindo da verdade enquanto Roth está indo de encontro a uma crueza objetiva do cotidiano, mas porque existem diversas maneiras de prestar homenagem a pessoas em um livro, e manter segredo de acontecimentos em que é pedido sigilo é uma delas. Philip Roth oportunista e canalha? Nãããooo, diriam seus asseclas. Trata-se da realidade que serve de matéria-prima para um dos maiores ficcionistas vivos. Não é, nem de longe, um romance autodepreciativo, isso é óbvio, até porque o drama está na figura do pai. E repare no subtítulo: “Patrimony – A true story”. “True story”? Sério mesmo? Então tudo o que o senhor resolveu botar nesse livro é a mais pura e simples “truth”? Bom saber, senhor ficcionista premiado. Bom para o senhor.

Gosto muitíssimo do Philip Roth. Ora, e qual homem não gosta? E gostei de Patrimônio, porque mostra que a literatura justifica a filhadaputice no olhar desse cara. Mas, sinceramente, acho que ele ainda se dá melhor com as aventuras do velho priáprico xarope, seja ele qual for. E, senhor Herman Roth, sinto muito que seus últimos e sofridos dias tenham servido para colocar mais um desnecessário tijolinho na belíssima e longeva carreira do seu filho, mas como foi o senhor que o educou, por outro lado, o problema é seu.

Comentário Final: 190 páginas. Livroterapia no cérebro!

Yu Hua – Irmãos (Xiōng Dì兄弟)

Xiong diLivraded!, your personal high-literature website is back, oh yeah! Ainda estamos em janeiro, e qualquer resolução de ano novo que seja abandonada ainda em janeiro não é digna de nota, digo eu. Pois bem, prometi a mim mesmo dedicar mais miolos a encher esse recôndito culto da internet de abobrinhas criadas a partir de leituras cada vez menos esporádicas, e é isso que pretendo fazer nessa bela segunda-feira de sol (na verdade, como estou escrevendo isso no domingo, não sei se vai ter sol, mas espero que em algum lugar do mundo em que haja um leitor, isso seja verdade).

E hoje, por que não, um daqueles livros grandes o bastante para validar o apodo deste humilde blog que, por força das circunstâncias, mergulhou em um período de fast-pace mais relacionado às poucas páginas de seus títulos do que propriamente a fugacidade de seu conteúdo. Irmãos, de Yu Hua, é a bola da vez. Sim, meus amigos, esse chinês com vocação para escrever as piores desgraças infligidas a humanos por humanos é a minha grande descoberta literária do ano passado. Descobri sozinho, sem ler uma resenha, receber uma indicação ou saber qualquer coisa a seu respeito. Um desses livros que a gente pega por força da curiosidade, o Crônicas de um Vendedor de Sangue foi o primeiro, e agora já posso dizer que conheço toda a obra do sujeito publicada em português. Infelizmente, isso não é um título muito impressionante se levarmos em consideração que se tratam de apenas três livros traduzidos até o momento, mas há um agravante na pancada amortecida se considerarmos que Irmãos é gigantesco: nada menos do que 630 páginas. Qualquer livro com mais de 400 páginas para mim é considerado grande, e qualquer um com mais de 550 é considerado muito grande. E para você, o que é um livro grande para você?

Mas falemos do Irmãos. Bom, a tara do tal Yu Hua, que já comentamos por aqui antes no tristíssimo Viver, são os romances de formação. Os três livros publicados no Brasil tratam da vida de sujeitos fadados ao miserê desde o nascimento até a sepultura. Que ele consiga fazer isso em duzentas e tantas páginas como no livro supracitado é admirável, mas que ele consiga estender para um mega romance como esse é fodástico, principalmente se a gente se lembrar que o estilo dele é calcado majoritariamente em ação. Ação, ação, ação, com pouquíssimo tempo para analisar, cheirar as rosas, contemplar as belezas ou se lançar a qualquer lampejo poético entre atos. A imaginação dele é invejável, digo isso do alto de quem sempre desprezou justamente essa qualidade em romances fantasiosos como As Crônicas de Gelo e Fogo. Há uma diferença clara de quando se faz isso num mundo em que não se conhece de quando se faz isso num mundo em que se conhece demais. Enquanto o primeiro é brecha para glitches mal-feitos, o segundo é o claro objetivo de se descrever aquele universo por meio de seus personagens.

E é exatamente a isso que Irmãos se propõe. Os irmãos do título são Li Carequinha e Song Gang, na verdade meio irmãos. Enquanto o primeiro é filho da sofrida Li Lan, o segundo é filho do bonitão e basqueteiro Song Fanping, que se casam depois que seus respectivos cônjuges morrem – algo escandaloso para a época pré- Revolução Cultural, diga-se de passagem. Li Carequinha é safadão, gaiato e arrogante, enquanto Song Fanping é subserviente, nobre e correto em todos os sentidos. E basicamente é isso o que se precisa saber sobre os dois personagens principais da história. Isso porque Irmãos não é a história de Song Gang e Li Carequinha, mas a história da China, da Revolução Cultural à abertura econômica, e nada melhor para detalhar a saga de tão grandioso e complexo país quanto personagens voláteis com espíritos rígidos à sua própria forma. A China de Mao, que se escandaliza quando Li Carequinha é pego espiando bundas no banheiro público na pequena e ficcional cidade de Liu, é diferente da China de Jiang Zemin, que realiza as Olimpíadas do Hímen, ou Concurso Nacional da Beleza Virginal. A China das bugigangas falsificadas, dos acordos com o Japão, das novelas coreanas, da indústria das cirurgias plásticas, é um universo completamente diferente daquela outra, comunista, que massacrou pessoas em sessões de crítica e autocrítica. Basicamente é essa a passagem que o livro conta, e como as personalidades de Li Carequinha e Song Gang encontram seus lugares em cada uma delas.

Yu HuaNão há, aqui, um resumo que eu possa dar sem que incorra nos tais spoilers que resultam em uma enxurrada de hatemail que recebo, e nem que comporte a magnitude das ações que se desenrolam ao longo das centenas de páginas de Irmãos. O que podemos dizer é que, órfãos desde que Song Fanping é espancado até a morte na rodoviária da cidade, a primeira metade da vida dos irmãos é de uma tristeza sem fim, compartilhada com outros personagens recorrentes no livro e, tais como eles, desprovidos de qualquer profundidade. Tanto é que o nome deles já denota tudo o que podem ser na história: Zhang Alfaiate, Yu Boticão, o dentista, Wang Picolé, o sorveteiro, Tong Torquesão, o ferreiro, e Guan Tesourão, o amolador de tesouras. Somam-se a eles Su Mamãe e Su Mocinha, donas da lanchonete, e Lin Hong, a beldade do vilarejo a quem Li Carequinha espia, o que lhe garante pratos de macarrão especial em troca da descrição da bunda mais bonita da cidade, para fazer menção a uma infame banda da minha cidade. E, claro, uma trupe de personagens não estaria completa sem os dois panacas Liu Escritor e Zhao Poeta, os chamados Talentos Promissores da Cidade de Liu. Pronto, está montado o palco para a comédia da miséria humana.

Estranhamente, a segunda parte do livro revela uma veia cômica de Yu Hua pouco explorada em seus outros romances. A coisa fica realmente engraçada, embora, de certa forma, nunca deixe de ser triste. Piadas de humor negro com retardados mentais, aleijados, mudos, cegos e surdos, charlatões, falsas virgens, pensamentos tacanhos e outras ignorâncias de um país que se viu obrigado a espertar-se diante de um mundo que se abriu de uma hora para outra tornam o livro muito mais leve, coisa que não imaginaria depois de uma avalanches de socos na boca do estômago que esse livro te dá nas primeiras duzentas páginas. Pensando bem, poucos aguentariam uma dose dessas por mais 400 páginas…

Ainda sobre os apelidos, é engraçado pensar que apenas Song Gang e Song Fanping são os personagens sem apelidos em Irmãos. Eles e as mulheres Li Lan e Lin Hong. Acho que o china quis atestar a nobreza de seus dois personagens mais queridos, que não se dobram ante piadas e apelidos, apenas quando seus destinos mudam a coisa também muda de figura. Pensem nisso se um dia estiverem com esse livro em mãos, tal informação pode ser crucial para o entendimento dele, mas sobre esse assunto nem mais uma palavra sob o risco de jogar mais spoilers sobre essa casca dura de leitores impiedosos de internet.

No final, a gente vê que não é só porque um livro não é cheio das floreações poéticas, análises psicológicas e vida interior rica que ele é ruim. Pelo contrário, o fato de Irmãos ser recheado só de ações o aproxima da tradição teatral das grandes tragédias e dá substância ao material de que a vida é composta sem oferecer o substrato mastigadinho pro leitor preguiçosão. Certeza que esse é um dos livros mais legais que já li, e é difícil que alguém não sinta a mesma coisa depois de se envolver tão intensamente com uma longa história como essa. Tirem a prova e me digam: o que há para se não gostar nesse livro? Até a superficialidade dos personagens é adoravelmente cômica, o sujeito não deixa margem pra você criticar sem parecer um metidinho rancoroso que não come ninguém. Recomendo.

Por último, uma ressalva a essa edição da Companhia das Letras: por mais que o livro seja muito bonito e tudo mais, é um absurdo fazer uma edição que pesa um quilo com uma capa de papel cartão, que corre o risco de quebrar a qualquer hora com o peso das páginas seguradas. Cuidado com isso quando lê-lo.

Comentário final: 630 páginas. A saudosa fratura exposa e afundamento de crânio estão de volta, dessa vez para ficar!

Robert Walser – Jakob Von Gunten

jakob von guntenHurray! Livrada, ano III, edição número 157 (pra quem gosta de roubar, é um bom número!). Mais um ano, mais leitores, mais aporrinhação, mais haters, menos tempo, mais livros, menos amor, mais porrada, talvez um pouco mais de cultura em vossas vidas. Mais Livrada!, pois não.

Como vocês foram de fim de ano? Espero que bem, e andei sondando com os nossos queridos fãs no Facebook sobre suas metas de leitura e andei pensando em oficializar isso, fazer um Desafio Livrada! 2013 em que você faz o seu próprio desafio, colocar as fotos dos bravos que aqui se comprometeram para atestarem seu sucesso ou autodecepção no fim do ano, o que acham? Digam aí que a gente faz aqui.

Como resolução de ano novo, resolvi ser mais conciso e dar mais atenção ao Livrada!, quem sabe, até aumentar a periodicidade das postagens, vamos ver como isso se sai. Mas, como diz o povo lá no AA, um dia de cada vez. Por ora, vamos ao livro de hoje, que reservei para essa ocasião especial porque acho que as pessoas que vem ao Livrada! o fazem não só para ler esses três parágrafos de encheção de lingüiça que eu faço comumente, mas também para descobrir clássicos esquecidos, pouco comentados, ostracisados e relegados à patotinha beletrista que você vê tomando café na livraria mais charmosa da cidade sem nem ao mesmo se dignar a tomar banho para tal. E acho que Jakob Von Gunten, a obra mais famosa do suíço Robert Walser, é um exemplo que encaixa bem ao caso.

Veja, não é o primeiro suíço que a gente comenta aqui no Livrada, vocês podem se lembrar da resenha do Schertenleib aqui, mas o Walser é de outro período e de outra grandeza. De outro período porque é do começo do século 20, enquanto o outro é do final, e de outra grandeza porque influenciou gente do naipe de Franz Kafka e Robert Musil (não tinha uma dessas marcas de granola que era Musil?), enquanto o nosso querido Hansjörg Schertenleib influenciou gente do naipe dos arrivistas suíços que decidem escrever um livro depois de encarar a trigésima fila de autógrafos de suas vidas, e acho que isso se deve ao fato dele ser muito contemporâneo, modernoso e ter um nome complicado pra caramba, desses que você precisa sempre soletrar quando faz ficha na loja de informática. Robert Walser também é legal porque ficou maluco, foi pro hospício, o verdadeiro lar dos Vida Loka, e morreu na neve misteriosamente, e se tem uma coisa que a comunidade literária gosta hoje em dia é de escritores malucos que morrem misteriosamente – por si só já o transformaria num hype.

Mas não, Robert Walser não é só um rostinho bonito jogado na neve, Robert Walser é conteúdo. Seu romancinho (inho porque é pequenininho), Jakob Von Gunten conta a história de um personagem que tem o mesmo nome do título (mistérios!) e que é um rapaz abastado que, contudo, rejeita o berço para ingressar numa escola para criados, o infame Instituto Benjamenta, regido pelo senhor Benjamenta e sua irmã Benjamentinha. Longe de ser uma instituição séria e tradicional, a coisa parece mais um alojamento coletivo em que as pessoas aprendem a ser submissos e subservientes aos dois diretores do instituto, mediante uma taxa de inscrição. Aí está a primeira grande sacada do Walser. Ao invés de fazer um Memórias Póstumas de Brás Cubas, ou seja, do ponto de vista do malandro que arrumou um jeito de ter mordomos de graça – que ainda pagam para ele! – o sujeito resolveu fazer isso do ponto de vista da pessoa que mais tinha a perder com a empreitada: o sujeito rico que não sabe nada sobre o mundo real. Como o livro é narrado todo em primeira pessoa como um diário, ou seja, o fluxo temporal narrado é o mesmo em que a história se passa, a história dá voz ao ser inferior, que não deixa de ter consciência por causa disso. Vejam vocês que essa é a ideia diametralmente oposta a que o Kafka pensou naquele conto Um Relatório Para a Academia. Naquele, o macaco capturado da selva resolve virar humano porque sagazmente percebe que esse é o único jeito de viver num mundo civilizado, enquanto o Von Gunten em questão faz o oposto: resolve deixar de ser humano para sobreviver como máquina num mundo de ordens e disciplina.

robert walserOra, que transformações o mundo passava naquela época. O fim dos homens vitorianos, o aumento da chamada classe média, escolas abarrotadas de alunos… era preciso colocar ordem no barraco e os caras oldschool sentiram que estavam perdendo sua individualidade para um mundo cada vez mais formatado por padrões e perfis (coisa que os félas que te mandam propaganda pelo correio sabem muito bem). Esse era o pesadelo do burguesinho que se achava sozinho no mundo livre, e essa é a saída dramática do passivo-agressivo que acha que vai fazer falta em um mundo indiferente. Veja só que coisa engraçada, o Villa-Matas fala do Robert Walser no Doutor Pasavento, uma história sobre o ato de desaparecer. O protagonista do livro desaparece e fala de Walser, que escrevia cada vez com uma letrinha menor para “se eclipsar” na escrita, mas não é menos verdade que Jakob Von Gunten também tem esse desejo de desaparecer no meio da ordem.

Mas, obviamente, essa não é uma história contada por uma pessoa comum. Robert Walser terminou a vida no hospício, se vocês bem se lembram, e não é à toa que o romance vai ficando cada vez mais maluco e contraditório. Não há uma coerência clara no discurso de Von Gunten porque o sujeito que o criou tinha o melão estragado por chocolates e relógios suíços. De maneira que não sobram significados para um livro que parece mais um teste de Rorschach, no qual você enxerga qualquer coisa que você quiser. Não há frase sem sua antítese dita pela mesma pessoa mais para frente, não há uma moral clara e não há um movimento que se repete, dando a entender um caminho a ser seguido. O que há em Jakob Von Gunten é isso: uma intenção, um desconforto com o mundo e uma solução perturbadora para os problemas.

Agora, uma coisa que seria mais importante ainda para entender esse livro é ter outras obras do sujeito traduzidas no Brasil. A Companhia das Letras só lançou essa por enquanto e vamos ter que ficar na vontade de entender um pouco mais sobre esse caudilho se não quisermos aprender alemão pra ler no original. Sendo assim, fica a dica pra todo mundo. Mais livros e alemão!

Comentário final: 150 páginas em papel pólen soft. Pra fazer o cabôco cair de cara na neve!

Jorge Amado – A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua

quincas berro dáguaHohohoho faz o papai Noel. Hohohoho, bandido não vai pro céu. Não sei porque comecei o texto de hoje com uma citação a essa música do Planet Hemp. Mas a verdade é que ninguém nunca sabe começar texto nenhum, porque, vamos dizer a verdade, se soubessem, todo mundo ia escrever muito mais, até mesmo os que escrevem por obrigação. A exceção talvez sejam esses escritores de que todo mundo fala: Franz Kafka, Tolstói, Jorge Amado, Cristóvão Tezza, estes bons começadores de texto.

E por falar em Jorge Amado, o livro de hoje é dele. Rá, e você achando que eu tava dando voltas à toa. Não, meu amigo, eu sou como aquele sujeito dos Jogos Mortais, não dou nó sem ponta, malandragem! Mentira, tava enrolando mesmo. OU NÃO? Jamais saberás. Como eu dizia: Jorge Amado. Se você é paulistano e se dá com todas as classes sociais, deve conhecer umas seis ou dez pessoas cujo apelido é “baiano”, mesmo que elas tenham vindo de outros lugares do nordeste. Como diz o Gritando HC, “Não importa da onde veio, chegando em São Paulo, é tudo baiano”. Mas, é claro, podem haver baianos de verdade entre os baianos que moram em São Paulo. Nenhum baiano, porém, é tão baiano quanto Jorge Amado, “o baiano” por antonomásia. E isso se deve pelo fato de ter sido ele o inventor da Bahia. Antes de Jorge Amado, o que era a Bahia? Um lugar meio sem rosto quando a gente imagina, uma coisa assim, meio Aracaju, meio Maceió, meio Pirapora do Norte, uma nuvem toma o lugar da imagem formada na nossa cabeça. Depois de Jorge Amado, a Bahia, e mais especificamente Salvador, virou o que é hoje: pelourinho, neguinho bêbado, mulata assanhada, gente preguiçosa, coroné, macumba, tiro pra tudo quanto é lado, gente certinha se dando mal, gente gauche se dando bem, pescador, marinheiro sacana, sexo 24 horas por dia, maconheiro vagabundo, comida apimentada, meninada de rua, tabuleiro de baiana, bunda de morena, cochilo na rede, sotaque carregado, bordões engraçados e cenário pra novela da Globo. O tempo encarregou-se de colocar aí o axé, o reggae, a Timbalada, mais maconha e mais bunda. Obrigado, Jorge Amado, agora já temos o que imaginar quando nos falam a palavra “Bahia”.

E o que é a pequena noval A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua? Tudo isso, ora essa. Escrita em 1959 para um dos primeiros números da revista Senhor (não, não é revista de crente), enquanto escrevia Os Velhos Marinheiros ou O Capitão de Longo Curso – um livro nem de longe tão celebrado quanto este. Quincas Berro Dágua tomou uma semana da vida de Jorge Amado, e gerou adaptações e mais adaptações para o cinema, teatro, o que seja. Tudo por conta de uma historinha super simples, que vamos passar em revista agora.

O tal Quincas era um daqueles caras vagabundos que tem em toda família, que vive no bar, arruma briga, dá trabalho, e na hora de reunir a parentada, é o principal assunto a ser evitado. O tal sujeito morre um dia, ou seja, é uma daquelas histórias em que o protagonista já começa morto, tipo, sei lá, O Terceiro Tiro, do Hitchcock. E aí, a família finge ficar triste e no fundo respira aliviada. Os filhos tão relaxados, as tias gordas idem, os agregados então, nem se fala. Mas é, claro, tem gente que fica triste. A mulatinha da casa das primas, namoradinha número um do sujeito é uma delas, os companheiros de bebedeira são outros. E são esses degenerados que rompem velório adentro para dar adeus ao companheiro de esbórnia e não o tomam como morto, porque Quincas começa a sorrir, tomar vinho e xingar todo mundo. Eles resolvem então levar o morto para uma última noite de rolé, porrada, putaria e chapação, apenas para que depois ele, em meio a uma tempestade em alto mar, despeça-se de sua gente para ter sua derradeira morte, do jeito que sempre quis.

É basicamente isso. Não há nada demais nessa história, nenhum significado oculto, nenhuma metáfora a coisa nenhuma, sátira zero, niente. A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua é a novela sobre um vagabundo que morre duas vezes, e faz uma farra entre uma morte e outra. O resto podem ser teses que esses senhores de academia fazem para garantir o whisky das crianças, para dar uma força pro Jorge Amado na eterna e saudável disputa com o gaúcho Erico Verissimo, para enganar os bocós, mas a mim ninguém engana. Quincas Berro Dágua é um livro que entra para a história da literatura por ser um clássico 2D. Narrativa impecável, léxico de dar inveja nos mais eloquentes prosadores de nossa época, construções humorísticas, tudo isso se aceita para elevar a qualidade dessa obra leve e divertida de ler. Mas não, não me venham com interpretações, fortunas críticas e dissertações, que eu não engulo. Prova mais viva disso é o posfácio do senhor Affonso Romano de Sant’Anna, uma das cabeças mais lúcidas da literatura brasileira atualmente: uma encheção de lingüiça engraçada e curiosa, mas veja se Sant’Anna se atreveu a fazer alguma tese sobre o livro que vá além daqueles clichês que sempre valem para a literatura brasileira, dos limites entre realidade e ficção, que a vida imita a arte, bla bla bla. Se o Affonso Romano Sant’Anna, eu repito, não falou nada que acrescente à importância da obra, é porque ela não tem mais nada a acrescentar.

E veja aqui a genialidade de Jorge Amado com ela. Qual gênio da literatura não queria fazer isso: um livro absolutamente fantástico que, mesmo assim, não dá margem para que ninguém sério tente mamar em seus talentos? Morre-se duas vezes? Talvez. Quincas é filho de Exu? Sim. A última farra antes de morrer? Isso não dá nem uma introdução séria de tese. Ah, a glória de se escrever um livro completo em suas interpretações e significados. Nada fica por dizer, é a vingança do morto cremado: não deixar carne pros vermes, nem mesmo para mim, este que quer comer cinza em pleno domingo de manhã.

Quando a Companhia das Letras pegou o Jorge Amado para o catálogo, sabia que ia sair coisa bonita. Pelo menos mais bonita do que a coleção horrorosa da Record (pô, galera da Record, vocês também, hein?). Inesperadamente, não criou-se o fetiche que seria de se esperar em cima da coleção, a galera não voou em cima como aconteceu com o Borges, por exemplo. Mas fica aí umas belas cinquenta e tantas lombadas para quem quiser fazer vista boa na estante. Foto do Marcel Gautherot levada às loucuras instagrâmicas na capa, papel pólen, fonte sei lá, mas é gigantesca, arabescos pra tudo quanto é lado e um belíssimo acervo de fotos e manuscritos ao final. Tudo para elevar o valor da obra, cujo valor já é demonstrado por si só. Então, relax and enjoy!

Comentário final: 120 páginas de pura malemolência. Mas rapaz, quase acabou com a polícia de Pernambuco!

Don DeLillo – A Artista do Corpo (The Body Artist)

the body artistÀs vezes eu paro, penso, reconsidero a decisão de continuar com este blog, de soltar essas palavras no deserto virtual da internet, mas aí lembro que, embora não tenha me dado dinheiro, o Livrada! me deu uma porrada de amigos e algumas boas indicações de livros. Toda vez que venho comentar um livro do Don DeLillo aqui, não esqueço que, sem este blog, talvez demorasse uma eternidade para descobrir este que é um dos meus autores favoritos. Isso porque, nessa rotina de ler um livro atrás do outro, a gente vai se acostumando à linguagem, às estruturas narrativas do contemporâneo, e a verdade é que, no final, pouca coisa é capaz de te sacudir. Felizmente, este nada simpático senhor da foto abaixo não me decepciona a cada livro seu que descubro. Por isso, hoje vamos tratar de A Artista do Corpo, que li depois de uma macarronada que a gente bateu com o Alcir Pécora numa noite. É um livro difícil, sério, sombrio e complexo, mas que eu, do alto da minha pretensão, julgo ter entendido. Então vamos tentar analisá-lo e colocar as coisas em termos simples, porque se eu, que vim da roça praiana da Costa Verde, consegui manjar esse livro, você também consegue.

Bom, A Artista do Corpo não deixa de ser um livro datado pelo tipo de arte exercido pela protagonista. A moçoila, uma trintona-quarentona, pelo que o romance dá a entender, chama Lauren Hartke e é uma adepta da chamada body art, um tipo muito peculiar – peculiar aqui querendo dizer ixcrota – de arte performática que tem como principal objetivo a deformação do corpo, a descoberta de posições desconfortáveis, bruscas e dolorosas que explorem ao máximo a dimensão corporal, seus limites e seus significados. Como diz em um trecho, é como se ela “tentasse sair do próprio corpo”. Uma mandíbula jogada pro lado, um braço que passa por trás da cabeça, uma perna que dá a volta pelas costas, uma coisa não muito bonita de se ver, esse tipo de arte que o pessoal entediado e cool de Nova York paga caro para ver e se julgar inteligente de vez em quando. Esse tipo de arte foi muito popular pelo mundo no final da década de 90 e no começo do século 21, e teve lá seus representantes, tipo a Marina Abramovic, que fazia algo parecido, mas não igual. Umas coisas do tipo comer uma cebola inteira crua. É, isso é arte, mas pode ser falta de uma enxada e um lote para carpir, vocês decidem.

Enfim, essa nossa protagonista nos é apresentada numa cena tediosa de rotina com o marido, com quem toma café da manhã. A coisa toda tem ao mesmo tempo uma normalidade familiar e uma estranheza de fluxo, cheia de diálogos incompletos, ideias que ficam na intenção e frases desconexas, mas não absurdas. Algo muito parecido com os livros do Thomas Pynchon, se alguém me perguntar… A primeira frase do livro: “O tempo parece passar”. Olho no lance!

Logo depois, já sabemos do suicídio do marido, um cineasta aparentemente com um ou dois sucessos que levou um vida de fracassos de público e crítica. O luto recente faz com que ela se isole na casinha de litoral deserto onde passaram seus últimos dias juntos. Algo muito pouco indicado para pessoas em luto, vocês poderiam sugerir. Mas é o que ela faz, fica lá amargando a vida e olhando uma câmera de vigilância de uma estrada da Finlândia que tem streaming ao vivo. Mais uma vez, aqui, a ilusão de tempo real, transposição do espaço e etc. Coisas que entram em evidência…AGORA.

Eis que a mocinha tá lá, trabalhando em suas bizarrices corporais, quando percebe que há um intruso na casa. Um homem, de idade indefinida, que às vezes parece velho, às vezes parece novo. Ele não fala coisa com coisa e é capaz de emular a voz dela e do marido morto, reproduzindo diálogos completos entre eles. É um pouco surreal a pouca atenção que ela dá ao fato, dedicando-se a uma reflexão ou outra sobre a presença do Sr. Tuttle, como ela o chama, mas convivendo de maneira relativamente harmoniosa com ele.

Aqui entra a minha análise da história toda: o Sr. Tuttle é, na verdade, a materialização do deslocamento do tempo e do espaço que a body art propõe. É como se tudo o que ela fizesse com o corpo em sentido figurado se configurasse concretamente na figura dessa entidade. Para o Sr. Tuttle, o tempo não é algo linear, e suas falas afásicas refletem isso. Há uma dificuldade de percepção da passagem do tempo quando se está de luto e isolado no litoral deserto, afinal de contas. É como se a body art deslocasse algo para fora de seu corpo, suas lembranças, seu próprio passado, e a confrontação com esse tempo agora inexistente, já que só o presente existe segundo o Dalai Lama, se dá de uma maneira confusa e embaralhada. O passado, enfim, é tão indecifrável quanto o futuro.

A Artista do Corpo é um livro muito diferente dos outros livros do Don DeLillo que eu conheço. Enquanto Ruído Branco e Cosmópolis são mais engraçados, caricatos e culturalmente críticos, este é mais parecido com seu último romance, Ponto Ômega, um livro mega complicado e curto demais pra sua complexidade. Como esse. Ô sujeitinho que resolve escrever 300 páginas de piada e 100 páginas de espremedor de cérebro! Há diversas aproximações entre Ponto Ômega e A Artista do Corpo: uma teoria a ser desenvolvida (sobre o tempo em um livro e sobre o conhecimento em outro), uma arte estranha a ser apresentada (body art e a instação 24 hour Psycho, que passa o filme Psicose, do Hitchcock em super câmera lenta que faz o filme durar um dia inteiro), uma narrativa curta em formato de tríptico, com o miolo da história emparedado por uma introdução e um epílogo um tanto desconexos, qualquer coisa de surreal levemente abordado, etc etc etc. Parece que a literatura do Don DeLillo é um evento cíclico, que alterna entre a introspecção densa e a extravagância caricata, mas é óbvio que isso é uma boa coisa, mostra que o sujeito tem seus momentos e, como Wander Wildner já disse, não consegue ser alegre o tempo inteiro. Melhor do que querer juntar as duas coisas, como o Houellebecq faz às vezes.

O projeto gráfico da Companhia das Letras é aquela maravilha de sempre, e a capa, por mais que eu não goste muito de fotografias de corpo, tem seu mérito por casar com o conteúdo. Papel pólen, fonte Meridien, que é tipo a avó da Electra, e o formatinho que vocês já conhecem. Vale a pena a leitura porque é meu autor favorito e porque vai fazer vocês pensarem em alguma coisa. Abraços a todos!

Comentário final: 122 páginas em papel pólen. A verdadeira concussão está no cérebro.

Daniel Galera – Mãos de Cavalo

Confesso para vocês que escrever esse post tem para mim uma sensação análoga a do menino que não gosta de jiló e de repente se vê diante da ameaça: se não comer todo o jiló do prato, não sai da mesa. E sabe que viver para o resto da vida à mesa, como um personagem de um Italo Calvino sem imaginação, não é exatamente uma alternativa. Isso porque acreditei ser possível passar ao largo da literatura do Daniel Galera. Dele havia lido apenas algumas páginas aleatórias do Até o Dia em Que o Cão Morreu e Cachalote, o quadrinho feito em parceria com o grande Rafael Coutinho, e odiei os dois. O primeiro achei beat demais, gaúcho demais, jovem adulto demais. O segundo achei pretensioso, incompreensível e desnecessariamente grandiloquente, tipo quando jornalista faz pós-graduação em filosofia, aprende uns jargões e disfarça o pouco conteúdo com um monte de abobrinha hermética pra criar uma ilusão de profundidade. Enfim, era um autor que poderia ser deixado para seus fãs, um autor que sobreviveria naturalmente à revelia da atenção midiática, como tantos outros figurados naquela infame coletânea da geração subzero.

Mas a verdade é que, afora minha péssima experiência com leituras prévias de sua obra, o que nutria meu afastamento do autor era um preconceito sadio, que me impedia ver o quanto o Daniel Galera é parecido comigo. Pelo pouco que sei dele (e sei pouco mesmo), sei que temos gostos musicais e experiências parecidas. E lendo Mãos de Cavalo, que foi me recomendado como o seu melhor livro, vi que temos ideias muito parecidas também. É claro, assim como Jesus Cristo, Raul Seixas, Los Hermanos, Ayrton Senna e Wes Anderson, são os fãs pentelhos que me tiram do sério, mais do que o artista (bom, acho que o Wes Anderson e seu cinema infantil para adultos não muito adultos é igualmente insuportável). Mas resolvi deixar tudo isso de lado, meus preconceitos, meu medo, minha birra com os fãs adolescentes e ler Mãos de Cavalo, porque, afinal de contas, não dá pra dizer que o cara não faz sucesso e tô por aqui também desse papo que ninguém aqui pode ser bem sucedido sem que geral comece a espinafrar.

Bom, Mãos de Cavalo, para quem não sabe, é um romance que alterna dois fluxos narrativos após uma introdução que tem lá sua importância. A história começa com o que o narrador chama de Ciclista Urbano, assim com letras maiúsculas. Sei lá, deve ser pra você já começar odiando o protagonista ao automaticamente associá-lo com esses ecochatos urbanóides que falam em sustentabilidade sem abrir mão da sociedade de consumo e acham que o único problema do mundo é falta de ciclovia e excesso de sacolinha plástica (e esse é um assunto pelo qual guardo um rancor particular, afinal de contas, este blog perdeu um prêmio alemão para um site dessa corja). A descrição do percurso de bicicleta e os mecanismos que mantém o ciclista pedalando são até boas, mas é só quando o sujeito cai que o narrador revela que o ciclista é um garoto de dez anos. Esta parte foi brilhante, a destituição de poder do personagem é total, e a saída da bicicleta o tira do anonimato e lhe devolve a humanidade. Aí temos a primeira pista do livro: o garoto sai sangrando e passa a curtir o gosto do sangue e o fato de estar ferido. O personagem do livro passa o romance inteiro buscando resolver seus problemas se estrepando da pior forma possível, sem o menor zelo pelo corpo. É claro, isso não existe na vida real, é um fetiche de piá de prédio superprotegido que assiste ao Clube da Luta e passa a achar que virou macho porque acha que aguenta se machucar inteiro. Mas para esses garotos da cidade, isso serve muito bem às fantasias criadas em torno da questão: “o que é viver a vida?”. Cair de bicicleta, ralar os joelhos? Comprar um skate depois dos 20 e quebrar o braço? Acampar com os amigos e comer miojo no copo? Lutar Muay Thai na academia? Jogar PS3 é que não é, né? A diversão e a experiência precisam ser legitimadas pelo corpo, porque uma viagem da mente não é mais que do que isso. É claro, todo mundo lê, todo mundo escreve, mas querem menos Almeidas Garrets e mais Hemingways.

Aí temos a história de Mãos de Cavalo, apelido de Hermano, um garoto de 13 ou 14 anos morador de um condomínio em Porto Alegre (condomínio? ahá!) que tem vários amigos de apelidos tão esdrúxulos quanto o dele. Tem um Wagner Montes, tem um Nego Cromado, um Morsa e um Pedreiro. Mas também tem um Bonobo, que é um garoto de estatura normal, mas com uma força descomunal, como um Hulk em forma de guri. E chamam ele de Bonobo porque ele caminha com os braços pesados, como um bonobo. O que é uma furada, na verdade, porque o bonobo é um macaquinho do bem, se organiza em sociedade matriarcal e resolve os problemas com orgias ao invés de porradas. O Hermano é, obviamente, o garoto do começo da história, e tem uma vida interior e diferente dos outros da turma. Tem umas passagens em que ele se parece tanto comigo que chegou a me arrepiar as coincidências com a minha vida, mas isso é muito pessoal. O que importa é que, assim como eu, o Hermano não curtia muito jogar futebol, mas joga pra fazer social, e numa dividida com o Bonobo, provoca uma falta maldosa que desperta a ira do sujeito. O que ele faz pra se redimir depois? Toma um estabaco na bicicleta, descendo umas escadarias. Esse é o começo de uma história de adolescência marcada por isso: a autoflagelação juvenil. Vai entender…

E aí temos a história do Hermano adulto, que, como todo adulto oriundo de um adolescente antissocial, tem apenas um amigo e chato pra caramba, ainda por cima. Hermano fez medicina, é casado e tem uma filha, e gosta de escalar montanhas. Afinal, pra ele agora a resposta de “O que é viver?” é escalar montanhas, como um garoto propaganda almofadinha de comercial de SUV, que estaciona a caranga na beira do penhasco e contempla a paisagem com um senso de autorrealização que respinga na gente. E aí o amigo chatão propõe escalar um vulcão na fronteira da Bolívia com a Argentina que ninguém nunca escalou antes. Sei lá, não sou alpinista, mas isso me parece bem o tipo de tara que alpinista tem. Só que aí o rapazote joga tudo pro alto, e pra quê? Pra se estrepar voluntariamente – agora que ele é adulto, tem a certeza de que dessa vez a parada tá certa. Não queria dar muito spoiler, mas é inevitável.

E aí fechamos a história do menino que acreditava que seu sangue lavaria, inicialmente, sua falta de hombridade, depois sua falta de honra e por último, sua falta de coragem. O menino que exige demais de si mesmo, que tem sensatez demais para seu próprio bem, e que não larga essa ideia de que a vida adulta serve para redimir, de alguma forma, os erros da adolescência, como se nenhum adolescente fizesse merda. Então repare: o protagonista de Mãos de Cavalo é incrivelmente coerente em sua construção. Exagerado, é verdade, histriônico, é verdade, inverossímil até, mas coerente. Sua turma, o núcleo de sua vida após a formatura, tudo faz muitíssimo sentido, e esse é um mérito do escritor.

O estilo literário do autor, por outro lado, é um problema. Ainda que faça brilhantes digressões e arrisque um ou outro discurso indireto livre, falha miseravelmente na construção de uma linguagem oral, sob a qual grande parte do livro é narrada. Basicamente, a coisa se resume na falta de concordância de algumas palavras e uma gíria aqui e outra acolá, e isso bem de vez em quando. O resultado é estranhíssimo, tipo Gilberto Braga escrevendo fala de bandido da novela das oito. É claro, intelectualmente o livro tem seus pontos altos, e a clareza com que consegue articular uma ideia é invejável. Se queria criar uma surpresa sobre o personagem das três histórias serem os mesmos, também não funcionou. Mas acho que tudo bem porque não parece ter sido essa a intenção.

No final das contas, Mãos de Cavalo é um livro divertido e rápido. Para mim, serviu como um autoconhecimento interior, e literariamente, é melhor do que muita coisa que vêm sendo vendida por aí como a última Coca-Cola gelada do deserto. Mesmo assim, não é o tipo de leitura de que gosto e ao qual estou acostumado. O que não tira dele seus charmes e suas ideias interessantes. Então, fãs de Daniel Galera, não se preocupem, vocês estão bem acompanhados.

Comentário final: 190 páginas. Não sacia a sede de sangue dos masoquistas.