Jorge Luis Borges – O livro dos seres imaginários (El libro de los seres imaginarios)

El libro de los seres imaginariosVish, garotada. Passamos o ano inteirinho sem falar do Jorge Luis Borges, mas não foi por mal. Vieram outros autores na frente, mas a estante aqui de casa está sempre reservada para mais livros desse cabra da peste.

Antes de mais nada, novidades! Agora ali do ladinho fiz uma página de recados para lembrar-lhes de suas obrigações cívicas perante este fescenino blog. E já coloquei lá, para começar, o velho lembrete de mandar as fotos de suas estantes. Então, como diz a Eliana, fiquem ligadinhos, ok? E vamos ao que interessa.

Tirou o cavalinho da chuva quem estava esperando, para começar, um comentário sobre Ficções, ou O Aleph. Se vocês repararem na cronologia do blog, frequentemente começo a falar de um autor por um livro, digamos, Lado B. Isso é resquício dos ensinamentos do professor Polaco, que disse para nunca alimentarmos a conversa de buteco dos outros dando a obra mastigada. Então, filhote, quer pagar de inteligente com teus comparsas entre uma Carlsberg e outra? Vá ler Borges por conta própria, é ou não é?

Bom, apesar de tudo, O livro dos seres imaginários, nosso foco de hoje, também é um grande e importante livro do autor. E se você chegou no planeta agora, trata-se de um compêndio sobre seres imaginários extraídos do folclore do mundo ou pensados por outros escritores, como o bicho esquisito da escada que Kafka conta em um de seus contos, acho que tem no Narrativas do Espólio, se não me engano. E é basicamente isso: a cada capítulo, um animal, com as explicações sobre sua origem, suas particularidades e, quem sabe, um pouco da história de sua criação.

Agora vê só como essa raça chamada argentino é: Borges sempre foi na contramão de toda aquela galera caliente latina que escrevia histórias fantasiosas de viajar na maionese bonito. Não que a literatura dele seja pé no chão, muito pelo contrário. Mas é, antes de tudo, na razão em que ele baseia suas excursões pra fora da casinha. Por isso escolhi esse livro. Ele mostra bem o tipo de rato de biblioteca que o Borges foi, e quase todos os contos tem algum embasamento em história ou literatura alheia. Talvez o mais emblemático seja mesmo o famoso Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, por tudo isso que eu disse, mas deixemos pra falar dele uma outra hora.

O livro dos seres imaginários realmente mexe com a sua cabeça, de ver como as pessoas tem imaginação fértil e você aí, achando que Se eu Fosse Você 2 é o filme mais maluco da história. Talvez o bahamut seja o mais doido que eu tenha visto no livro, mas é difícil dizer, são vários, com nomes estranhíssimos do tipo ‘a bao a qu’ ou ‘abtu e anet’. Alguns já se conhece, outros nem tanto, mas para isso, tá lá o livro do sujeito que, aliás, não é tão fantasioso assim. Nos catálogos do Plínio, o Velho, rapazote naturalista romano que viveu quando os anos só tinham dois dígitos, apareciam muitos bichos que não existiam entre outros, de carne e osso. Acho que o que Borges quis fazer foi pegar o trabalho de Plinio e tirar todos os que já existiam e fazer um compêndio mais completo de seres de mentirinha.

Esse livro faz parte da Biblioteca Borges que a Companhia das Letras está lançando aos pouquinhos. A Biblioteca Borges é a prova viva de que um bom projeto gráfico alavancam as vendas de um autor. Veja só que até bem pouco tempo atrás, antes da editora começar a lançar os primeiros volumes, a editora Globo tinha dois ou três calhamaços com a obra completa do escritor a um preço ridículo, algo como 30 ou 40 reais cada livro. E ninguém nem tchuns pro negócio até que começou a aparecer esses (e o livro dos seres imaginários foi um dos primeiros títulos lançados). Vish, choveu neguinho pra coçar o bolso e adquirir um exemplar. A ideia deu certo e até hoje a editora está lançando esporadicamente volumes da obra completa do autor, com capas que estampam pinturas que não poderiam ter sido melhor escolhidas para casar com a vibe do argentino. Um troço quadradão, de linhas precisas e cores chapadas. Essa no caso é da artista plástica Judith Lauand, uma simpática senhorinha que gosta desse lance de equilíbrio e ritmo sem formas difusas. Com a dona é pão pão queijo queijo, amigo. A tradução é de Heloísa Jahm, uma tradutora muito da versátil, porque já traduziu do inglês, espanhol, francês, italiano, sueco, enfim, a moça é boa e assina a tradução de obras de Marguerite Duras, Conan Doyle, Julio Verne e Apollinaire. Então, respect! No mais, papel pólen soft e fonte Walbaum, usada na Biblioteca Borges toda.

Comentário final: 218 páginas em pólen soft. Hoje tô sem ideia de comentário final. Mas isso não faz diferença mesmo, né?

 

John Hersey – Hiroshima

Esse livro estava na minha mochila na última quarta feira, porque a Kariny, nossa traficante oficial de trufas de brigadeiro e coco, havia me pedido o livro emprestado para um trabalho da faculdade e o queridão aqui — adivinha! — só lembrou de trazer o livro umas duas ou três semanas mais tarde. Como nem adianta pedir desculpas, resolvi falar um pouco dele aqui no Livrada!. Quem sabe alguém consegue aproveitar alguma coisa para o trabalho da faculdade?

Bom, Hiroshima é um clássico do jornalismo literário que teve, na minha humilde opinião, seu sucesso repartido entre 20% de talento e 80% de cagada. Aconteceu que o bicho achou lá seis pessoas que sobreviveram à bomba de Hiroshima. Bomba essa que, aliás, foi muito menos devastadora que a de Nagazaki, mas ficou muito mais famosa. Mistérios inexplicáveis, como o porquê do holocausto ser mais famoso que o genocídio dos armênios pelos turcos. Sei lá, talvez seja mesmo a propaganda a alma do negócio. De qualquer forma, lá foi o china (sim, John Hersey é Chinês e se mudou para os Estados Unidos lá com seus dez ou onze anos) colher o depoimento dos sobreviventes, os perrengues que passaram no dia em que a bomba caiu. Já começa aí a primeira cagada dele: a bomba foi jogada logo pela manhã, o que possibilitou aos sobreviventes uma memória marcante e indelével daquele dia inteiro, dando uma narrativa maior e uma experiência impactante.

A reportagem foi publicada numa edição especial da The New Yorker, aquela revista de gente inteligente, sem chamada na capa e cheia de piadinha sem graça que ninguém entende (mas aí, galera da New Yorker, se quiserem me contratar, faço umas charges aí, valeu?). É igual ler o livro, só que em Revista. Loko, né, truta? Agora a cagada mor do sujeito foi ter voltado aos mesmos personagens quarenta anos depois, conseguir encontrar todo mundo e ver como andavam a vida deles. Se não me engano, só um havia morrido, uma moça, de câncer. Primeiro porque até então eu, que não sou nenhum especialista em bomba atômica, achava, do alto de minha ingenuidade, que não havia sobrado viv’alma (coisa de poeta, né?) em Hiroshima. Pô, os sujeitos passam anos metendo o pau nessa bomba, que foi construída toda sob sigilo de governo, todo mundo se descabela quando a Coréia diz que tá fabricando, todo mundo tinha medo do Enéas porque ele queria fazer uma no Brasil e, enfim, a bomba atômica não mata todo mundo de uma cidadezinha japonesa? Acho que minha impressão sobre bombas atômicas vem inteiramente daquele maravilhoso filme “O dia de Amanhã” (The Day After), ou seja: a bomba cai, a imagem congela e por alguns segundos, dá pra ver a caveirinha de todo mundo.

Outro mérito de sua imensa cagada foi ter sobreviventes da bomba durarem mais de quarenta anos. E depois neguinho fica aí metendo o pau na energia nuclear. Pô, se um cara vive mais de quarenta anos depois de sobreviver a uma bomba atômica, dá pra ter mais usina nuclear tranquilamente, afinal de contas, viver até os sessenta ou setenta e poucos anos é uma meta digna na população brasileira (explicando a piada para os idiotas: É BRINCADEIRA, animal!). E os caras tão bem ainda por cima: ficaram famosos, fundaram empresas, ongs para combater a monstruosidade da bomba, etc. E depois dizem que é só brasileiro que gosta de celebridade instantânea. Tudo bem que não teve ninguém pousando para a Playboy, sob o título e a efígie do mestre Tom Jones: “Sexbomb, sexbomb, you’re my sex bomb!”, mas ainda assim rolou um shocksploitation em cima da galerinha.

Vamos ao porquê desse livro ser estudado na faculdade de jornalismo. Bom, além do fato de estar escrito na capa que é “A mais importante reportagem do século XX”, e influenciar por isso a ementa dos professores, acho que ele é importante pra ensinar o jornalista a não largar o osso tão cedo e fazer o estudante maconheiro sem vergonha que se ele voltar à pauta tempos depois, ele pode muito bem fazer a mais importante reportagem do século também. Fora isso, sei lá, pode ser um livro bacana de ler, só depende de você e do seu saco pra tal leitura.

A coleção Jornalismo Literário da Companhia das Letras é uma das mais legais que já vi. Além de vários livros sobre o gênero (no qual não foram incluídos alguns como o A Mulher do Próximo, do Gay Talese), eles tem uma certa padronização de capas e diversas cores que dão um charme a mais. Sem imagem nenhuma na capa, afinal, jornalista curte mesmo é letrinhas, garrafais de preferência. Esse ainda conta com as fotos dos sobreviventes e um posfácio mais que elogioso sobre o livro, assinado pelo jornalista Matinas Suzuki Jr. No mais, papel pólen e fonte minion, padrão da editora para os livros de jornalismo literário.

Comentário final: 172 páginas pólen soft. Faz menos estrago que uma bomba atômica.

 

Amyr Klink – Paratii entre dois pólos

Eis que no escritório surgiu a ideia de fazer uma entrevista com o Amyr Klink para um veículo para o qual produzimos conteúdo. A entrevista seria sobre o livro Paratii, que estava sendo reimpresso pela Companhia das Letras. Pois bem, solicitamos o livro e quem teve a tarefa de lê-lo? Sim, o queridão aqui. Reclamar do excesso das coisas boas da vida é uma das razões pelas quais mesmo as pessoas mais santas merecem uma pranchada na orelha, eu reconheço, mas o fato é que minha agenda de leitura ultimamente está mais atribulada do que vida doméstica de mãe solteira. Mas beleza, aproveitei aí uma brecha e comecei a lê-lo, não esperando muita coisa por ele.

 

E que baque esse livro, minha gente! As aventuras de Amyr Klink são viciantes. Esse livro, em especial, que foi o primeiro que eu li, e que promete leituras de muitos mais, fala sobre uma viagem que ele fez há 21 anos, em 1989. Construiu um barquinho especialmente para a viagerm, que seria feita sozinha, e partiu para morar em seu barco durante um ano na baía Dorian, na Antártida. E, não satisfeito com isso, depois ainda resolveu rumar norte e passar mais um tempinho no outro polo, na casa do Papai Noel, antes de voltar ao Brasil dois anos depois de sua partida. Então, entre altos perrengues, paisagens maravilhosas, engenhosidades e uma rotina que teria tudo pra deixar um cidadão comum completamente maluco, Klink descreve com naturalidade sua jornada, no melhor estilo das literaturas de viagem.

 

E como fiquei bolado com algumas coisas do livro, como o fato do mar ter congelado e ter deixado seu barco preso ao continente até o próximo verão, ou seja, por pelo menos sete meses! É para pirar a cabeça, mesmo sendo algo completamente esperado. E quantas engenhosidades: pintar um mastro de preto para absorver melhor o calor para derreter o gelo que começasse a se prender nele; construir um centro odontológico para emergências totalmente possíveis como uma cárie ou um dente quebrado, para ser operado pelo próprio paciente; fazer previsões de comida e combustível por três anos, tudo calculado certinho. Sabe aquele tipo de gente que pisa sozinho no cocô de cachorro na Avenida Paulista, onde milhões de pessoas passam todos os dias? Pois é, eu sou assim, então esse negócio das pessoas se darem bem quando tinham tudo para se darem mal é algo quase místico e naturalmente fascinante.

 

E vamos combinar: esse lance de ficar sozinho é o maior barato, mas pode facilmente arruinar a cabeça do indivíduo pra sempre. É só ver o astronauta russo que ficou dez anos no espaço, retratado no belíssimo documentário “Armaggedon” (é chato explicar as piadas, mas da última vez, um sujeito não entendeu o sarcamo e veio me chamar de imbecil porque tinha dito que o Diário de Bridget Jones era um livrasso). Acho que o segredo do navegador aí foi se afundar no trabalho: todos os dias, tarefas diligentemente cumpridas e eventuais transmissões de rádio com o Brasil para não se sentir tão sozinho e dar sinal de vida, afinal de contas.

 

Paralelo a sua narrativa, Amyr tece pequenos ensaios sobre a vida de navegadores da idade moderna que fizeram expedições parecidas com as suas, mostrando que o cabra tem muita cultura nesse assunto e que esse lance de se atirar no mar sempre foi coisa de maluco mesmo. Impressionante esses caras de cojones que se aventuravam na navegação hardcore, a navegação roots, sem camisinha, sem enfeite, sem glamour, sem frescurinha. (Caramba, que dor de garganta infernal!)

 

O projeto gráfico da Companhia das Letras é padrão para os livros com foto colorida, exceto no papel, que é offset dessa vez, o maldito offset! Duas brochuras de papel couché com uma coleção de fotografias tiradas durante a viagem e mais um, ao começo, com a rota de Amyr em sua extensa viagem. Mas tem imagem em preto e branco também, como trechos do diário de bordo, que serviu para a composição do livro, a carta de um amigo ao começo, manuscrita, e os planos do barco construído especialmente para a viagem. Foi mal pela resenha sem graça de hoje, gente, tô grogue de um xarope mutcho loko que eu tô tomando.

 

Comentário final: 228 páginas offset! Zzzz… gente, que xarope é esse?

 

Italo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno (Se una notte d’inverno un viaggiatore)

Se una notte d'inverno un viaggiatoreDia 15 de outubro seria o aniversário de Italo Calvino, o rapazote das ideias mei malucas faria 87 anos hoje. Pelo menos eu acho que é isso, ele nasceu em 1923, não sei fazer as contas direito. Se soubesse, afinal, estaria enchendo o rabo de grana na engenharia. Então achei que seria uma boa homenageá-lo falando aqui do primeiro livro que eu li dele.

Se um viajante numa noite de inverno é um livro publicado em 1979, mas quando ele saiu nem me liguei muito porque a minha vida era um saco. Somente anos depois, em 2007, resolvi lê-lo, por indicação da Manu Salazar, que insistia que eu iria gostar da literatura do autor. Aí um dia ganhei ele do meu pai. Dois autores que nunca tinha lido: Italo Calvino e James Joyce, peguei um exemplar de cada autor e pedi para que meu pai, que não é nada chegado em livros, escolhesse. Ele escolheu o do Calvino, ainda bem, imagino eu.

Li o livro quando estava mudando de casa. Nunca vou me esquecer de um dia em que estava lendo ele no meu apartamento novo, que ainda estava em reformas. Uma tarde de frio e uma chuva desgraçada, eu deitado em uma esteira improvisada de papelão sobre o chão repleto de pó de cimento. À noite tinha ópera ainda, estava começando o namoro e a Carlinha, que estava deslumbrante, teve como acompanhante o sujeito mais mal vestido de todo Teatro Guaíra. Assisti ao Rigoletto tossindo pó de obra e fedendo como um cavalo suado. Anotem aí: coisas a não se fazer nos primeiros encontros.

Bom, Se um viajante… é um livro metalinguístico, pra dizer o mínimo. Trata de um sujeito que vai na livraria comprar justamente o Se um viajante numa noite de inverno, do Calvino, e começa a ler, achando super legal, até que descobre que seu exemplar veio com um defeito da gráfica: após a página 32 o livro volta ao começo, um erro na montagem das brochuras. Se vocês não sabem, cada gominho de páginas de um livro com esse tipo de encadernação tem 32 páginas, então o exemplar do protagonista estava repleto dos mesmos gomos. Então ele volta à livraria para trocar. E eis que o vendedor dá uma olhada no livro e afirma que aquela história não é do Italo Calvino, e sim de um outro autor, romeno se não me engano. Como o sujeito já estava totalmente envolvido no enredo, solicita um exemplar do livro desse segundo autor. Quando começa a lê-lo, tchanam! É outra história. Assim, entremeado de fragmentos de livros que sim, parecem todos excelentes, o protagonista se esforça para conseguir ler pelo menos um livro inteiro, enquanto, de quebra, tenta faturar uma mocinha. Sério, tem como não gostar de um mote desses?

Extremamente complexo, Se um viajante em uma noite de inverno, além de explorar diversos gêneros de literatura (todos demonstrados em um organograma no apêndice, em resposta a um crítico italiano), comenta, en passant, as nuances que envolvem a leitura e que estão intrinsecamente conectadas à escrita. O fato de 32 páginas serem suficientes para envolver alguém em uma leitura, por exemplo. Convenhamos que, hoje em dia, livro que não esteja engrenado até a página 30 tá no sal. Neguinho coloca de lado e vai jogar videogame mesmo, sem dó nem piedade. Até a época em que Calvino escreveu esse livro, porém, não era raro o livro engatar lá pelo terceiro ou quarto capítulo. Talvez seja uma alma de contista que se encerre nos romancistas de hoje em dia, quem sabe?

Ah sim, deixei o melhor pro final: a narrativa do livro não é em primeira ou terceira pessoa. É — se é que isso existe — em segunda pessoa! Isso mesmo, o narrador fala diretamente com o protagonista, que é você mesmo, que lê o livro. Isso sim é entretenimento, hein? Se liga no começo:

“Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo à sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros ‘Não, não quero ver televisão!’. Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’. Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: ‘Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!’. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.”

Fala sério, maneríssimo, né não? Acho que esse começo fala do livro por si só.

Bom, o projeto gráfico da Companhia das Letras é lindíssimo, mas causou confusão pro meu pai “Que são esses retângulos aqui na capa? Que tem a ver isso com o livro?”, ele perguntou. A coleção do Calvino é uma das poucas da editora com fonte Garamond, mas vale a pena, dá um toque de finesse pro alfarrábio. A tradução é de ninguém menos que Nilson Moulin, que traduziu do italiano também o A Cada um o Seu, do Leonardo Sciascia, que eu já comentei neste blog. Sem o Nilson, tava todo mundo ferrado, minha gente, deus abençoe os bons tradutores. No mais, papel pólen e uma capa verde musgo, talvez a minha cor favorita (deu pra perceber nesse blog ou não?).

Comentário final: 275 páginas em pólen soft. Pimba em quem tá com a televisão ligada!

 

J.M. Coetzee – Homem Lento (Slow Man)

Homem LentoBom dia, todo mundo! Enquanto este post está sendo lançado no oceano da internet, Fernando Alonso está em Cingapura, largando na frente de todo mundo e cantando “cuidad de las ideas  donde pasas por la noche y encerrado en el silencio de los bosques”. Correndo como o vento e ouvindo Vicente Amigo NO TALO. Mas deixa esses caras pra lá, bora falar de literatura que esporte não é droga. Chega de esporte, portanto.

Tava aqui só me enrolando para falar de Homem Lento. Não escondo que esse livro tá entre os melhores da minha vida. Diria que tá no Top 5, mas desde que eu vi Alta Fidelidade não faço esse tipo de listagem. Filme pentelho do caraças. Divaguei. Dizia eu que esse livro é essencial constar aqui, porque até agora todos os livros do Coetzee de que tratei foram da trilogia Cenas da Vida na Província que, convenhamos, não é a melhor leitura para se iniciar no autor. Homem Lento, por outro lado, é o livro perfeito para tal finalidade. Posso dizer por experiência própria. Li esse livro na volta do feriado de Finados do ano passado, em um voo chatão desses com escalas em Congonhas (se bem que no último que eu peguei, encontrei o Serguei em Congonhas, foi maneiro). Li metade dele entre Rio e Curitiba, e isso pra mim é um sinal claro de que o livro é bom mesmo. E digo o porquê.

Homem Lento é a história de Paul Rayment, um sexagenário que, um dia, enquanto dava uma volta de bicileta ouvindo música de pai NO TALO, tipo Whitesnake (mentira, ele não tava ouvindo nada), é atropelado por um carro. Bom, velho quando cai no salão do baile da terceira idade já é uma desgraça — no mínimo quebra a bacia — agora imagine ser atropelado por um carro. Os médicos se veem obrigados a amputar uma de suas pernas (direita, esquerda, direita, esquerda, direita, direita, direita… alô poesia concretista!), e ele passa a receber os cuidados de uma pobre enfermeira croata chamada Marijana (lê direito, seu maconheiro!), que vive um casamento conturbado e tem um filho rebelde adolescente pra piorar a equação. E, claro, um velho solteiro, traumatizado, sendo cuidado por uma enfermeira (alôôô, enfermeira!), não poderia dar em outra: o idoso cai de amores pela quarentona esquisita que cheira a cigarro e ovo frito. Isso do cheiro dela eu inventei, na minha cabeça ela parece a Toni Colette, só que mais velha e destruída. Então, coitada da moça afinal, pobre, imigrante, enfermeira, alvo da cobiça de um marido traste e um velho perneta, em quem ela dá banho de esponja quando não está perdendo os cabelos com o filho.

Gosto desse livro primeiramente pela escrita fluída.  Não adianta nada o cara ser um jeito e fazer das palavras bolinhas de gude, jogadas no nosso caminho pra gente ir tropeçando e escorregando a cada linha. E esse livro passou por rigorosos testes de qualidade: minha vó leu e gostou. Aliás, foi ela quem me deu o livro, presente de aniversário, ela tava esperando eu ir para o Rio no feriado e resolveu começar a ler para saber se era legal e leu o livro de cabo a rabo. Isso me fez pensar duas coisas. Primeiro que não é prudente pedir livros do Pedro Juan Gutierrez para minha vó, vai que ela começa a ler. Segundo que, se ela, que curte clááássicos como Quando Nietzsche Chorou, Caçador de Pipas e A Menina que Roubava Livros, leu e gostou, o livro é gostoso de ler mesmo. Outras pessoas leram e podem confirmar o que eu digo. Mas — e aí temos o grande tchananã do Coetzee — só porque ele é de fácil leitura, não quer dizer que ele seja raso. Pelo contrário. Tive a nítida sensação de que o sul africano é preciso nas suas frases, e as ideias que ele insere no subtexto, ou mesmo no texto descarado, são cirurgicamente expostas: pensamentos simples, limpos, claros como água e no timing certo. Não é que nem eu, que coloco um parêntese a cada linha que escrevo (e olha que esse parêntese que abri agora é o primeiro do parágrafo. Tô melhorando, aê! Mas agora você vai dar uma de oráculo do Matrix e se perguntar se eu teria aberto esse se não tivesse mencionado meu vício por parênteses).

John Maxwell CoetzeeO que eu admiro nesse livro, e que faz ele ser um dos meus favoritos é sua pluralidade de sentidos. Homem Lento pode ser uma história sobre um velho que perde uma perna e fica independente se você quiser. Também pode ser um livro sobre a velhice, no melhor estilo Philip-Roth-depois-que-o-Viagra-acabou, e sobre a dependência dessa idade e o apego a certas coisas, a vitimização natural da terceira idade, etecetera. Ainda pode ser uma história sobre o frágil mundo intelectual e seu choque — carregado de sedução — com a (podemos chamar assim) “vida simples”, das pessoas que prescindem de arte, livros outras coisas de gente fresca. E, claro, para quem é um fanzasso de Coetzee, pode ser uma história fantástica de um personagem criado por ele que recebe a visita de outro personagem, de outro livro: Elizabeth Costello, alter-ego do autor. Eu acho que, depois desse livro, tinham que dar um outro Nobel pra esse maluco, por ele ter ficado milionário e deixar o cruzeiro na Grécia de lado para escrever essa obra maravilhosa. Recomendo esse livro mais que ator da Globo recomenda que você vote conscientemente nessas eleições.

Já falei do projeto gráfico da coleção do Coetzee quando resenhei o Juventude, mas, só para refrescar a memória: capa baseada na pintura do Fábio Miguez (Google já se você ainda não sabe quem ele é), fonte Electra, papel pólen e tudo mais. Sem me aprofundar nisso hoje, procurem os outros posts do autor se quiser saber do belíssimo trabalho do João Baptista da Costa Aguiar, valeu?

A propósito: acho que o pessoal curtiu o último post, sobre hábitos de leitura, afinal, foram muitos comentários e muitas visitas. Pretendo fazer outro desses em breve, mas para isso, gostaria da colaboração de vocês: enviem fotos das estantes dos senhores e senhoras, e falem-me dela, se existe alguma organização de seu critério, e qualquer outra informação que gostariam de comentar. Para mandar, é fácil: escrevam para bloglivrada@gmail.com Tranquilis?

Ps: Acho que ninguém sabe, mas escrevo os posts em um documento de Word que fica numa pastinha especial para o blog, onde arquivo fotos de capas e autores. Pois não é que cheguei à página 100 do documento? Bom, tudo bem, poderia estar desperdiçando minha juventude com outras coisas socialmente menos aceitas, como esculturas de palito de sorvete ou torneios de RPG.

Comentário final: 277 páginas pólen soft. Cada porrada é um flash!

Ismail Kadaré – O Acidente (Aksidenti)

O AcidenteFala aí, meu povo, tudo certo? Viram só, o último livro teve comentário ilustre do próprio autor. Um abraço pro Xico Sá aê! E não, eu não fui lá mostrar o meu blog imbecil pra ele, não sei como o cara achou. Mas enfim, achei legal e vamos tentar fazer mais autores visitarem a espelunca. O livro de hoje é do Ismail Kadaré, e ele tá vivo. E pô, se o cabra fala albanês, português pra ele deve ser pito! Quem tem a moral de ir lá esfregar essa resenha naquela cara de Augustinho-da-Grande-Família-depois-do-desterro dele? Quem tem? Tô desafiando!

Antes de começar a falar do livro, uma pergunta para vocês: estou pensando em colocar aqui no espaço outros textos relacionados a hábitos de leitura e aspectos físicos do livro, o que acham? Digam lá nos comentários.

Pois muito bem. O Acidente é o último livro do albanês Ismail Kadaré. Sim, ele, o amargurado, o tio sério que não gosta de piada, o sujeito massacrado pela cultura do país, o cara que queima muitos ATPs para dar uma risada, o paladino blasé. Nesse livro, a história não podia ser mais down: um acidente de carro que mata um casal, logo na primeira página, intriga investigadores e detetives com muito tempo livre que resolvem reconstituir o passado dos dois porque se descobre que o rapazinho tem ligação com o governo. Pelo menos foi isso que eu entendi, rá rá rá.

E aí o levantamento do passado dessa relação dos dois revela uma paixão doentia, com mulheres virando prostitutas, lésbicas, casaca, olhinhos por boçais, etc. A história dessa tensão sexual entre o cabra, Bessfort Y. e a mulher, Rovena St., é tensão de verdade, não é aquela coisa afrescalhada do Vermelho e o Negro. E, claro, é triste pra caramba, a bichinha tá num mato sem cachorro e parece que nem percebe. E o bonitão lá, na rédea curta com a moça, fazendo ela de gato e sapato feito aqueles safados que seqüestram garotinhas na Austrália por não sei quantos anos. Nada bom para a bunda da Rita Cadillac, ou, como ela chama, o moral.

Penso que, como tudo na escrita de Ismail Kadaré é política, essa relação entre Bessfort Y. e Rovena St. pode representar a tensão entre sérvios e albaneses, já que cada um do casal é ligado a um dos países. Mas, já fazendo a minha mea culpa, não vou entrar nesse mérito por saber quase nada do assunto. A gente aqui fala besteira, mas fala com propriedade, valeu?

Ismail KadaréAgora, vejam só vocês como são engraçadas as coisas: o release do livro, e a orelha, usa o termo “acontecimento banal” para descrever o acidente de carro que mata o casal protagonista, querendo dizer que o caso não mereceria normalmente a atenção que ganhou por parte dos investigadores do governo. E isso acontece porque o autor inicia o livro com o mesmo termo, para assegurar o leitor de que o tal “acidente” do título não é esse do carro. Mas faça aí uma busca rápida no Google e veja quantas críticas e resenhas a esse livro também se referem ao acidente como “acontecimento banal”. Desde quando acidente de carro que joga as pessoas contra o pára-brisa, os corpos saem voando e se arrebentam no barranco é “acontecimento banal”? Pô, será que esse povo não viu À Prova de Morte, do Tarantino? Será que todo mundo agora é crash test dummy pra achar acidente de trânsito corriqueiro? Coé, críticos do meu Brasil, vamos parar de repetir o que vocês leem no release igual coro de música do Afrika Bambaataa e vamos admitir que esse acidente foi coisa feia sim!

Eu não sei se eu tava com muito sono quando li esse livro, mas o fato é que achei a leitura dele bem lenta e arrastada, dada a complicações pela troca constante de estilo que o autor usa na narrativa. Uma parada meio saramaguiana que rola por umas páginas faz o peão rodar bonito e ficar mais perdido do que filho da p*** em dia dos pais. Nem por isso o livro é ruim, só demora a pegar no tranco (ou quem demora sou eu, não sei). Da metade em diante ele fica excepcionalmente bom, e o final é uma porrada na sua cara. Aposto que por um desfecho como esse vocês não esperavam. Pensem só como alguém pode inventar e surpreender numa história onde você sabe que os protagonistas já estão mortos?

Esse projeto da Companhia das Letras ficou bem bonito, mas me dá uma tristeza no coração quando os caras fazem uma coleção bem bonitinha do autor e aí resolvem mudar o padrão. Gostei das cores, principalmente: cinza e azul petróleo (azul petróleo é como eu chamo qualquer azul que eu não sei que azul é). A tradução ficou por conta, como sempre, do grande Bernardo Joffily, que traduziu a bagaça direto do albanês. Direto do albanês, gente! Acendam uma vela pra esse homem hoje à noite, que ele merece. A capa é de um cabra chamado Fabio Uehara, e, sei lá, eu gostei bastante, tá mais espontâneo que as capas da coleção do Kadaré, então ponto pra ele. Mas bem que poderiam mudar as capas então, né? No mais, papel pólen e fonte Electra, padrão da editora para caras tristes como esse. E o título original, Aksidenti, fez você aprender pelo menos uma palavra em albanês, aê garoto!

Ps: Por que diabos a letra ficou tão grande hoje?

Comentário final: 232 páginas em papel pólen. Pimba na gorduchinha (na gordinha mesmo, não na bola de futebol).

Chinua Achebe – O mundo se despedaça (Things fall apart)

O mundo se despedaçaE aí galera, como vocês estão? Eu tô um bagaço, preciso começar a ganhar dinheiro com esse negócio de crítica, senão to ferrado. Ficar fazendo isso no contratempo é ruinzão. Mas hey, vocês não vieram aqui para me ouvir reclamar da vida, né? Então vamos ao que interessa.

Um dos mais requisitados “termos de motor de busca”, ou seja, as palavrinhas que trazem os leitores ao meu blog (e que de vez em quando me surpreendem com coisas bizarras que eu, volta e meia, jogo lá no twitter para divertí-los também por lá) é “literatura da Nigéria”. Isso acontece porque, logo quando eu estava começando o blog, resenhei um livro da autora Chimamanda Ngozi Adichie chamado Meio Sol Amarelo (aliás, o nome da moça e o título do livro são bem requisitados também). Senti que não tava com essa bola toda pra falar de literatura nigeriana e resolvi ir atrás de mais um livro. Mas não dou passo em falso. Li lá na Gazeta do Povo uma resenha ixperta do camarada Irinêo Netto sobre o livro O mundo se despedaça, do bambambã da literatura nigeriana, Chinua Achebe e pensei que esse seria um bom livro para se inteirar mais sobre o assunto.

Já ouviu falar de Chinua Achebe? Bom, se você foi um bom fã de Sepultura, deve ter percebido que o clipe de Roots Bloody Roots (a melhor fase do Max, é ou não é?) começa com uma citação do autor. Êta metaleirada culta da gota! Curiosamente, a maioria dos clipes da música disponíveis no Youtube limaram esse começo, mas o papai aqui achou um para vocês verem que eu não to de brincadeira. E sério, gente, vocês podem não curtirem muito metal, mas se vocês não gostam do Roots do Sepultura, é bom dar uma conferida no seu senso de humor porque esse disco é o ouro. E não me venha com esse papo de que o Arise ou o Chaos A.D. são outros quinhentos porque não tem música nenhuma com o Carlinhos Brown, podicrê?

Bom, O mundo se despedaça é uma viagem bacana e consideravelmente profunda for a white guy ao universo Ibo. Os guerreiros ibos, suas mulheres ibas, seus filhos ibinhos, todos moravam na Ibolândia, região da Nigéria que, no final da década de 60, virou a república de Biafra, que, como Ícaro, voou, voou, subiu, subiu e se espatifou bonito no chão pelas mãos das tropas da Onu, dos hauçás maloqueiros e de todo o resto do mundo que não tava a fim de ver pobre feliz. Como bom ibo que é, Achebe conhece a fundo as tradições do povo e pôde, a partir desse conhecimento, sangrar a história de Okonkwo, uma espécie de Eric, o Vermelho da Ibolândia, guerreiro temido e respeitado que é gente que faz. As tradições do povo são muitas para eu ficar aqui contando pra vocês, só adianto que é uma galera tarada num inhame e num vinho de palma (eca!).

Chinua AchebeBom, o livro demora para entrar no assunto principal (igual a esse blog, hã? Hã?), que é a seguinte: Okonkwo mata, sem querer querendo, um membro do seu clã e é obrigado a viver no exílio por sete anos, tempo que sai de Umófia, sua aldeia, cheia de boi de bota, para ir para Mbanta, terra de nego ponderado igual paulista. O problema de contar mais do que isso é que é contar quase o fim do livro. O que dá pra falar, porque isso a orelha já fez o favor de contar mesmo, é que o garotão deveria engolir o orgulho e baixar a bola, mas o cabra quando é ignorantão e cabeça dura, não tem jeito, pisa na bola quando pode. E isso é, mais ou menos, uma metáfora do porquê a civilização rachou no meio igual melancia na roça quando tá boa. Vocês vão entender o que eu estou dizendo se lerem o livro.

A história é muito boa, mas convenhamos: o sujeito se explica demais.  Bom, tudo bem, nesse sentido ele até que foi esperto: usou uma historinha de fantoche para entreter a gente enquanto ele ensina sobre seu povo. Engraçado que, nesse livro, do qual eu esperava história, ganhei explicação e no outro, da Chimamanda Adichie, esperava explicação e só ganhei história. Vamos deixar de reclamar então, que acho que o problema é comigo.

E que belo projeto gráfico esse da Companhia das Letras. Simples, mas bem bonito. Não é do feitio da editora fazer livros muito estampados e com letras muito grandes, mas até que a variação ficou boa. Tem essa foto assustadora da capa, de um negro se vestindo de branco, tipo aquele filme O Cantor de Jazz no Mundo Bizarro (sério, quando eu falo mundo bizarro, eu quero dizer o mundo bizarro do super-homem. Por que ninguém saca essa referência e acha que eu tô falando daquela coluna do G1?). Acho que seria algo como “O cantor de (insira aqui o seu gênero musical caucasiano de preferência)”. A foto é do rapazote G.I. Jones, um bonequinho do Comandos em Ação que viu uns três filmes do Woody Allen e resolveu se dedicar à fotografia, expondo seu acervo no Museu de Arqueologia & Antropologia da Universidade de Cambridge (puta nome pomposo esse “Cambridge”, só de pronunciá-lo você já se sente mais fresco). Fonte Electra é sempre bem vinda e papel pólen soft é fundamental. A tradução foi feita pela Vera Queiroz da Costa e Silva e a introdução pelo Alberto da Costa e Silva, ou seja, ninguém mete a colher. Tem uma epígrafe linda, linda, linda do Yeats, donde vem o título da obra. Aliás, repararam que “things” foi traduzido como “mundo”, né? Tradutores de poesia do meu Brasil, saquem suas defesas do bolso. Mentira, assunto encerrado.

Bom, é isso por hoje, minha gente. Tão afim de ler o lado A da crítica? Já sabe, é lá na Revista Paradoxo. Essa semana, um livro do Italo Calvino pra galeraê!

Ah, vai, vou terminar com a epígrafe do livro, que realmente vale a pena. Lá vai:

“O falcão, a voar num giro que se amplia,

Não pode mais ouvir o falcoeiro;

O mundo se despedaça; nada mais o sustenta;

A simples anarquia se desata no mundo”

Vê que com a tradução, aparece “mundo” duas vezes. Fazer o quê, né?

Comentário final: 236 páginas pólen soft. Pof pof pof!

Luiz Alfredo Garcia-Roza – Vento Sudoeste

Mais um mês de existência, moçada! Já disse, o Livrada! não é mano, mas também tá aí, contrariando as estatísticas, morô? Neste último mês, o número de visitas não parou de subir e os comentários também. A promoção está de pé, e, agora, muito perto do fim também. Sei que anunciei essa porra lá atrás e até agora não saiu um ganhador. Isso é explicado em parte pela minha falta de tino para números de promoções e em parte porque muita gente lê, mas não comenta. Se bem que a surpresa de descobrir que tenho leitores é legal. Outro dia mesmo…

Mas enfim, agradeço bastante a todos vocês que leem, comentam ou não comentam, divulgam, apóiam e tudo mais. Espanto-me de ver a popularidade deste humilde espaço crescer, e faço votos e empenho para que continue assim.

Também tenho novidades. Como disse ali na parte “Sobre Livrada”, isso aqui é só uma brincadeira, um lado B da minha crítica. Pois agora, é com orgulho que digo que estou desempenhando o lado A também (quem sabe um dia o lado A vire lado B e vice-versa, né?). Minhas críticas sérias podem ser vistas na Revista Paradoxo, na parte de literatura, e quem quiser me visitar lá, pode ler um artigo sobre o all-mighty Coetzee e uma crítica sobre O Dia da Coruja, do Leonardo Sciascia.

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Vento SudoesteSem mais, vamos à resenha de hoje. Claro, um livro especial para uma comemoração especial (sim, eu tô ligado que hoje é dia dos pais, parabéns a todos os pais do mundo, mas a comemoração aqui é mais forte). Resolvi escolher o Luiz Alfredo Garcia-Roza, esse velhinho com vozeirão que tem uma trajetória literária espetacular: começou a escrever depois de velho. E quando eu digo “depois de velho”, quis dizer depois de bem velho. Acho que a estreia do cara na literatura foi aos 63 anos. Eu ia falar bem do primeiro romance dele, O Silêncio da Chuva, que é super original, mas não o bastante: todas as pessoas para quem eu indicava a leitura não retornavam dela tão impressionadas assim. Então, escolhi o Vento Sudoeste, um romance policial com um mote dos mais inusitados.

Vento Sudoeste é um livro da série do Detetive Espinosa (posteriormente Delegado Espinosa), um policial da Civil amante da literatura e detentor de uma ética impecável (daí o nome inspirado no holandês magrelo). Falemos dele mais tarde, vamos tratar do mote do livro. Em Vento Sudoeste, um sujeito entra na delegacia para falar com Espinosa a respeito de um crime que ainda não foi cometido. Desconhece-se a vítima e o motivo, mas sabe-se que o assassino será o próprio delator da contravenção. E resta a Espinosa, que poderia ficar vendo Fórmula 1 em casa, levar a história do moço à sério e arregaçar as mangas para entender a maluquice. E aí, no resto, é aquela fórmula dos romances policiais que o cinema holywoodiano tão bem soube estragar: suspeitos, pessoas que vão morrendo, mocinhas, sexo às vezes, etc. Dentro do que é possível se esperar de um policial propriamente dito, a história é original, vai vendo.

Vamos lá: tirando Rubem Fonseca, quem mais é o fodão no policial brasileiro? Jô Soares, amigo? Não mete essa. Patricia Melo? Pra cima de moi? Não tem ninguém, e a razão é muito simples: como é que alguém vai fazer uma história aqui no Brasil em que o herói é puliça? Me diz? Me diz, quero ver? Aliás, se alguém fosse escrever um policial do jeito que as coisas são, arrisco a dizer que o livro, caso o poder de síntese do autor não seja muito bom, teria pelo menos umas 2000 páginas só de enrolação. Prevejo: “Capítulo 52 – o caso muda de jurisdição (pela oitava vez)”, “Capítulo 89 – o processo emperra na papelada” ou algo do tipo. E, no fim das contas, o livro ia acabar por falta de saco do escritor, porque ninguém ia ser preso nem condenado. E, diante desse senso-comum, Garcia-Roza se meteu a fazer um policial honesto e corretíssimo em tudo o que faz, na dificílima missão de reverter um pouco desse quadro. Mesmo que ele não consiga, palmas para ele pelo intento. Clap clap clap.

Luiz Afredo Garcia-RozaPor fim, o Espinosa tem algo que todo mundo comenta: a tal da estante sem estante, que consiste em empilhar os livros de uma maneira que pareça uma estante, até o teto. Vou dar meu parecer sobre isso: Garcia-Roza, meu velho, isso até seria possível se o protagonista fosse frequentador de livrarias. Mas não, Espinosa alimenta a estante com esculhambados exemplares de sebo. Gente, quem conhece sabe que livro de sebo mal para em pé, o que dirá sustentar colunas e mais colunas de livros. Então, pensem nisso.

Essa coleção policial da Companhia das Letras é bem legal, mas o papel offset denuncia que o gênero é fast-paste mesmo. Nada contra, quem é que não gosta de um policial de vez em quando? Quem é que não curte ver um filme bobo, ou pior, assistir um seriado, quem é que não curte comer um Mc Donald’s, ou pior, uma coxinha de buteco, quem é que não curte… enfim, deu pra entender. Acho legal isso da lateral das páginas ser pintada, cada uma de uma cor diferente, mas não curto muito livros estreitos. E por último, gosto bastante dessas fotos da capa, mas reconheço que é um gosto duvidoso. A propósito, pela primeira vez, o livro retratado ali em cima não é a mesma edição que eu tenho. Isso porque ficou difícil achar uma foto da versão original.

Comentário final: 210 páginas offset. Ah…

Philip Roth – O Complexo de Portnoy (Portnoy’s Complex)

O Complexo de Portnoy

O Complexo de Portnoy

Último fim de semana do mês, amigos. Também conhecido como “fim de semana seminarista” pelo voto involuntário de pobreza que a gente faz pra esperar o advento do salário, que morreu por nossos pecados consumistas e retornará mais uma vez para salvar nossa barriga da miséria, amém. E aí, vamos encarar um programa financeiramente isento neste domingo e ler a resenha do Livrada! É ou não é? Aproveitem que, por enquanto, vocês não pagam nada para ler minhas nada brilhantes resenhas.

E sinta só o drama do ardil: graças às estatísticas do wordpress, pude constatar que o autor mais pesquisado no Google que traz leitores para cá é o nosso querido vovô Philip Roth (tem alguma coisa nele que realmente lembra meu avô, não sei o quê). Então pensei, “que diabos (esse negócio de pensar “que diabos” é um trauma da opressão cultural norte-americana que nem vinte anos de análise curam), vou resenhar mais um livro dele”(dá um tapa na própria coxa). Se bem que, ao que parece, estou fazendo um grande desserviço, porque nunca consigo fazer as pessoas se interessarem pelos livros dele. Vejamos se a gente consegue reverter isso, escolhi um livro beeeem legal dessa vez.

O Complexo de Portnoy é um livro velhão, maluco. Foi publicado em 67 pela primeira vez, e ganhou muitas edições até essa versão lindona que eu tenho em mãos. Foi o segundo livro dele que eu li, e que boa impressão me deu sobre o autor! Em primeiro lugar, por ser um livro muito bem escrito, como são as obras do cara. Em segundo lugar, por ser um livro de comédia, algo muito, mas muito raro hoje em dia (e a raridade se dá, é claro, ao equilíbrio entre humor e boa literatura. Não estamos falando aqui de livros apenas engraçados). Escrever comédia é um troço muito difícil, porque a piada tem que ser lida, interpretada, imaginada na sua cabeça e aí, só depois, se for boa, você dá uma risada. Por isso o humor, além de sutil, tem que ser muito bem trabalhado, senão vai ser só uma parada vergonhosa de ler.

Mas bem, do que trata o Complexo? Alexander Portnoy, o protagonista do livro, é um sujeito balzaco tomado de complexos formados em sua infância, que conta suas histórias para um analista. Pelo menos pra mim, a cultura judia é uma parada muito distante que só começou a ganhar forma no meu imaginário a partir desse tipo de literatura, e dos filmes do Woody Allen e dos Irmãos Coen. Não sei como funciona direito, portanto, mas o Alexander do livro é atormentado pelo famoso estereótipo da mãe judia: grudenta e opressora até o último, e atormenta a todos — ele, sua irmã e seu pai, que é um vendedor de seguros falidão. Claro que não é privilégio apenas dos judeus ter uma “mãe judia”, mas a religião exige uma porção de privações e regras que, como diria aquela música do Patife Band, deixa qualquer um malucooooooooo. E entre as um zilhão de coisas que ele não pode fazer, começa a desenvolver uma tara e um vício por masturbação como válvula de escape. Com toda a rebordosa que lhe bate após todas as vezes que ele bate (caham), ele começa a entrar em umas neuras de remorso e paranóia com a justiça divina, o que seria muito triste não fosse tão engraçado pra gente, que tá lendo.

Philip Roth

Philip Roth

De uma maneira que eu não sei precisar direito, o tragicômico do livro vai se tornando cada vez mais trágico rumo ao seu final. Possivelmente por causa das consequências desastrosas de alguns episódios e os desdobramentos de outros na vida adulta de Portnoy, e isso meio que mata o ritmo nas últimas páginas, o que não quer dizer que fique desinteressante. Mas a nata da obra mesmo tá na primeira metade dela. E quem leu tá ligado.

Essa tradução do Paulo Henrique Britto é bem legal por conservar os termos que a judeuzada usa e anexar um glossário no final. Algumas palavras a gente sempre ouve nos filmes e nem se dá conta que é termo dos judeus, tipo “schmuck”, usado pra xingar alguém, que literalmente quer dizer “pênis”, entre outros. A reimpressão da Companhia das Letras deu uma capa que é uma das mais bonitas da coleção dele (junto com a de Indignação), e o projeto gráfico do interior é muito parecido — senão idêntico — com os livros do Coetzee: fonte Electra, papel pólen, e a diagramação interna que lhe é peculiar. Obviamente que um livro como esse, sobre um moleque judeu punheteiro, causa muito mais frenesi na década de 60, quando foi lançado, do que hoje em dia. Mas é legal ver que, mesmo após 40 anos, ele segue firme e forte como um dos clássicos da literatura (tá na tag!)

Putz, agora que me dei conta que usei as expressões “masturbação” e “punheteiro” nessa resenha. Eu tava querendo satisfazer melhor os leitores que são trazidos pelo Google e acabei de arrebanhar uma multidão de cornos anônimos depravados. Fazer o quê?

Comentário final: 261 páginas pólen soft. Pimba na cabeça do corno anônimo depravado que chegou aqui pelos termos errados!

Saul Bellow – Henderson, o rei da chuva (Henderson, the rain king)

Henderson, o rei da chuvaE aí, meu povo. Olha, antes de mais nada, queria agradecer de coração ao pessoal que divulgou o blog no twitter, no orkut, em seus blogs pessoais, verbalmente, enfim, a galera que se esforçou para dividir com os outros esse gostinho amargo de ler esse blog zoadão. Reforço o pedido: continuem divulgando e aumentando a comunidade de leitores aqui desta bagacinha. Quem sabe um dia a parada cresce mesmo, e aí vocês vão dizer “eu *cof cof* era leitor desse blog há muuuito tempo, meu netinho… na época esse Yuri era um sujeito legal, não era esse esnobe metido a besta que é hoje…”.

Mas, vamos aos trabalhos. Henderson, o rei da chuva! Fala sério, o sujeito que não fica um tiquinho curioso para ler um livro com esse título é um frio desalmado do caraças. A genialidade do escritor canadense radicado nos Estados Unidos filho de judeus russos (depois brasileiro que é tudo mexido) começa no título, e foi pelo título que esse cara me fisgou. Ganhei esse livro de dia dos namorados (que foi? Não me diga que ganhou uma Jabulani!?) da Carlinha e li ele durante esse mês inteiro, só me arrastando na leitura. É amigos, não tenho mais o viço de ler trocentos livros, mas tudo bem.

E aqui vou contar um pouco do livro. Não é spoiler, mas conto algumas coisas do livro, portanto, se quiser passar, te vejo no próximo parágrafo. Pois bem. A história fala de um tal Eugene Henderson, milionário, fanfarrão, sexagenário, veterano de guerra que, após uma vida conturbada quase que unicamente pelo seu temperamento instável, resolve se mandar para o… eu ia dizer coração da áfrica, mas o lugar pra onde ele foi tá mais perto de ser o cu do continente. Ele se mete num buraco esquecido pelo mundo e conhece duas tribos: os Arnewi, amistosos e simpáticos, porém muito coitadinhos, e os Wariri, arredios e excêntricos, porém com um rei extremamente cativante. Os Wariri tem um ritual muito interessante: o rei Dahfu, com dezenas de esposas, deve sempre dar no couro, caso contrário suas donas-encrenca denunciam ele para uma figura chamada bunam, que o leva para a floresta e o estrangula. O ritual de passagem para o próximo rei é que é interessante, e envolve a captura de um leão. Os Wariris são bastante crentes nos poderes do leão, e aí só lendo mesmo pra saber do que eu estou falando, porque estragar as surpresas mais do que eu já estou estragando aqui é muita sacanagem.

Nesse universo esquisitão, Henderson tenta preencher o vazio de sua alma, seu sentimento de inadequação em relação à vida, o seu “grun-tu-molani”, expressão Arnewi do livro dificílima de explicar (vale um mestrado aí, filósofos de plantão), a grosso modo quer dizer “homem quer viver”, o sujeito do eterno vir a ser. Com o rei dos Wariri, Henderson discute essa sua condição em diálogos profundos porém não maçantes. Esse é outro ponto forte do livro: ele é denso sem ser chato. Muito pelo contrário. Com doses certas de ação e suspense, o livro é extremamente emocionante, daqueles que você custa a largar. Sem sacanagem, um dos melhores que eu já li.

Saul BellowEventualmente a gente se depara, na literatura, com personagens tão perfeitos, tão bem construídos, que você custa a acreditar que é tudo inventado. É assim com o tragicômico Henderson, o rei da chuva. Eugene é nível 9 na escala Rodrigo Terra-Cambará de perfeição em caráter de personagem, mas, pensando bem, assim é o livro inteiro. Eu não sei se Saul Bellow viajou mesmo pra esses lugares, ou estudou alguma coisa sobre esses povos, mas a descrição que ele faz das tribos, da áfrica, do comportamento de seus líderes e dos rituais, é algo pra fazer cair o queixo no dedão do pé. Talvez seja isso que fascina a gente na literatura afinal. Se não, é com certeza algo que faz alguém ganhar o prêmio Nobel de literatura, como Saul Bellow ganhou em 1976.

Essa edição da Companhia das Letras tá no padrão da editora, com papel e capa que lhe são peculiares. Mas tenho uma crítica: a revisão do livro não foi das melhores mesmo. Várias palavras erradas, um jogo de palavras que foi traduzido de duas maneiras diferentes (ammargruha e bittahcidade, aparecem as duas formas no livro), e conte só quantas vezes a condecoração militar Purple Heart foi escrita como Purple Haze (será que tinha alguém doidão ouvindo Hendrix por lá?). Mau, muito mau, esse tipo de coisa dá um baque na leitura que a gente nem imagina.

Por fim, eu não sou muito de fazer isso, mas vou transcrever um trechinho de um diálogo do rei Dahfu que me impressionou muito, para dar o gostinho da leitura para vocês. Sem aspas iniciais porque esse texto já vai ficar cheio de aspas naturalmente:

“Dizem”, prosseguiu, “que o mal pode facilmente ser espetacular, que com seu ímpeto e fanfarronice impressiona o espírito mais facilmente do que o bem. Oh, isso a meu ver é um engano. Talvez seja verdade no que se refere ao bem corriqueiro. Muitas e muitas pessoas ótimas. Oh sim. Sua vontade lhes ordena praticar o bem, e elas o praticam. Como isso é comum! Mera aritmética. ‘Deixei de fazer os etceteras que deveria ter feito, e fiz os etceteras que não devia’. Isso não chega a valer uma vida. Oh, como é sórdido manter um registro de custo-benefício. Minha visão é totalmente oposta: o bem não pode significar oposto ou conflito. Quando ele é grande e elevado, é também superior. Oh, Sr. Henderson, é muito mais espetacular. Tem a ver com inspiração, não com conflito, pois ali onde o homem entra em conflito, ele cai, e quem empunha a espada também morre pela espada. Uma vontade estúpida produz um bem muito estúpido, desprovido de interesse. Onde o homem traça uma linha de frente numa guerra, é ali que ele tem tudo para ser encontrado, morto, um atestado de grande força e sacrifício, mas só de sacrifício”. (página 205)

Comentário final: 413 páginas pólen soft. Afunda o esterno do camarada.