José Hamilton Ribeiro – O gosto da guerra

Três meses, garotada! Bom, na verdade, tecnicamente, é amanhã, mas resolvi antecipar a comemoração pra valorizar o post de quarta-feira, sempre tão importante na vida do trabalhador. De qualquer jeito, ê! O Livrada!, este espaço esdrúxulo, faz três meses. Olha, Deus sabe que eu batalhei por isso aqui. Divulguei como eu pude, mostrei ele pra gente importante e influente (que nem deu bola, inclusive), fiz blog, fiz e-mail, fiz twitter… e não dá nem pra dizer que não deixo de não me divertir (esse é o famoso empaca-texto, te encontro daqui a duas horas na próxima frase). Maneiríssimo ver gente que se interessa pelo que é escrito aqui, e que até gosta desse tipo de abordagem a esse assunto tão repelente que é a literatura. Também, tem gente que gosta até de sexo com palhaços, ia ficar boladão se ninguém curtisse o blog. O último mês fechou com mais que o dobro de visitas do primeiro mês (aquela sabatina de posts diários, lembram?) e, ao todo, foram quarenta posts, o que significa 40 livros. QUARENTA LIVROS, eu disse. Tem gente que nem lê quarenta livros na vida, quanto mais comentá-los. E não são quarenta livros compostos por Sabrina, Júlia, Coleção Vagalume (com todo respeito), quadrinhos em forma de livro (algum respeito), e best-sellers escrotos tipo A Profecia Celestina e Marley e Eu (nenhum respeito). São livros bons, amigo, pelo menos na minha concepção. Tá, em alguns eu posso ter metido o malho eventualmente, mas ainda assim, esses ficam literariamente degraus e mais degraus acima de qualquer Crepúsculo e Augustos Curyies da vida. Portanto, palmas para todos nós! Clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap clap. Chega, minha mão já tá ardendo.

E que bom livro eu escolhi para esta celebração de terceiro mês de existência! O gosto da guerra, de nada menos que José Hamilton Ribeiro, o Jack Bauer brasileiro (sim, espertão, até rima!). Escolhi esse cara por três motivos. Primeiro: valorizar a literatura nacional (ui, anauê!). Segundo: tem que engrossar o rol de livros-reportagem desta bagaça. Terceiro: essa semana é minha banca final de conclusão de curso. Sim, caros amigos, se tudo der certo estarei formado e com um diploma na mão (que não serve pra nada, aêêê!). Acho que todo jornalista olha, ou deveria olhar, para o Zé Hamilton com admiração incontida e gritinhos de tiete. Afinal de contas, o cara é incrível . Pergunta pro Thaíde, ele sabe, o Zé Hamilton é Ên-Crê-vél (odeio ter que ficar explicando piada, mas, como sei que vocês são inteligentes, morram de vergonha alheia clicando aqui). Bom, eu escrevi um livrorreportagem também, e claro que, nem de longe é bom igual ao Gosto da guerra, nem tão corajoso, nem tão ousado, nem tão caralhudo, mas gosto de pensar que contribuí para o formato da grande reportagem, cada vez mais abominada pelo patrão do jornal: o dinheiro.

A história desse livro é a seguinte: Na década de 60, o Zé trabalhava na revista Realidade, uma revista do tal new-journalism. A Realidade não fazia economia, malandro. Quer ficar um mês escrevendo uma matéria, fica. Quer cobrir a guerra do Vietnã, simbora. E foi isso que ele fez. Embarcou naquelas latas velhas que chamavam de avião na época do paz e amor e se mandou para aquele país agradável cheio de chinês moreninho com cara de sapo. Lá, com o medo que é peculiar a quem está em território hostil, conheceu um japa mutcho loko que já estava a dois anos cobrindo a guerra pelo único motivo de não ter achado ainda “a” foto da contenda. E o japa safado achou a porra da foto no dia em que Zé Hamilton pisou numa mina terrestre que levou sua perna embora (a foto é a capa do livro). O Gosto da guerra é a história dessa cobertura com esse desfecho trágico. Ponto pra galera que adora dizer que jornalista só se fode.

O relato inteiro — não só o diário de guerra dele, as ponderações sobre o episódio ou o depoimentos sobre o regresso do repórter ao país trinta anos depois (não, não foi pra procurar a perna dele, seu sacana!) — reforça a ideia que ele solta lá pelas tantas do livro: a de que guerra é uma merda, mas sem cobertura jornalística é muito pior. Claro que hoje em dia vocês já viram todo o tipo de barbaridade e, caso eu relatasse aqui as coisas que o Zé descreve no livro vocês não se surpreenderiam tanto, mas isso é porque tá todo mundo amortecido pelo excesso de violência. É um livro que merece ser lido para não esquecer do que o ser humano é capaz quando está com medo, com raiva ou cheio de rancor. Vale a pena mesmo.            Isso, sem contar, é claro, na envergadura moral do cara que escreve um diário da própria enfermidade. Se isso não valesse o prêmio Esso de jornalismo, não sei o que valeria.

Esse livro foi relançado pela editora Objetiva, e não tem lá muitas pompas nessa edição. Papel offset maldito, fonte desconhecida (tipo Verdana) e a fotaça do japa safado que tira proveito da desgraça alheia. Mas, mesmo assim, temos que dar créditos e loas à editora por ter relançado esse livro. Caralho, como era difícil de achá-lo. Eu mesmo consegui o meu na cagada, há muito tempo atrás. Graças à Objetiva, vocês não vão passar tanto perrengue assim se quiserem descolar um exemplar. E, na moral: descola um, nem que seja pra botar na estante. Um dia seus filhos pegam lá e vão te agradecer. A gente tem que fazer os livros serem legais de novo. Lembrem-se sempre, meninas: se o cara leva vocês pra casa dele e ele não tem livro em casa, não solta a tarraqueta.

Reforço o pedido: assinem o RSS ou sigam o blog no twitter. Assim, fico mais tranquilo sabendo que vocês vão ler algum post fora de data. Aliás, amanhã devo postar alguma coisa só pra não deixar a data passar em branco.

Comentário final: 129 páginas em offset. Pinga sangue, mas dificilmente vai produzir algum hematoma.

Nelson Rodrigues – A vida como ela é…

Nelson Rodrigues! Essa pessoa amabilíssima, agradável, que quase nunca fala merda, que ama e dá aos pobres, que não faz ideia errada da gente, esse moço, pobre moço, que teve o azar de morrer no dia em que ganhou na loteria. Nelson Rodrigues era dessa época em que jornalista não era gente, salário não era dinheiro e dignidade não era poder (tá, isso não faz o menor sentido). O que eu quis dizer é que ele era daquele time de escritores enfurecidos que batiam as teclas até gastar as falanges. E como escrevia, este velhus decreptus. Como a época exigia quantidade em detrimento da qualidade, Nelson padronizou sua escrita.

Manja aqueles desenhos da Hanna-Barbera? Cenários que rolam ao fundo, cabeças que mexem enquanto o corpo fica parado pra não gastar com animação (isso, aliás, gerou toda a sorte de bizarrices como dinossauro de gravata, crocodilo de gravata, leão de gravata… Êta bicharada escrava do colarinho!) e eteceteras malandronas que colocaram a beleza dos desenhos da MGM numa situação inviável. Bom, Nelson Rodrigues fez algo parecido com seus textos. Elementos que sempre retornam, ideias que são marteladas, personagens frequentemente visitados, tudo isso fazia o ofício de sentar ali e escrever qualquer merda por dia uma coisa mais fácil.

Variações sobre mesmo tema. Eis o segredo do escritor em A vida como ela é… e outros textos. Assim como as letras de axé, as novelas do Manoel Carlos e os acordes dos Ramones, tudo em Nelson Rodrigues parece ser gerado por um software especializado. Mas pera lá, camarada! Isso não quer dizer que a obra do velhaco não tenha seu valor, muito menos que seja uma obra ruim. Nelson Rodrigues era foda, acho bom ninguém discutir nesse ponto. E A vida como ela é… taí pra martelar o dedo de quem discordar.

Historietas sobre os recalques da classe média e alta, tabus mil, tudo o que há de podre no reino da Dinamarca esse corno escreveu. Fica difícil criar alguma coisa depois disso. No livro, cem, eu disse CEM continhos estão publicados, e olha que não foram todos.

Ler esse livro de cabo a rabo (quem curte expressões de livro como “ler de cabo a rabo”, “ler numa sentada”, etc? Levanta a mão aí!) pode te causar náusea, e até mesmo odiar o autor. Vai dizer “porra, tudo a mesma coisa!”. Mas isso é pra você (e claro, pra mim. Eu só pareço velho), que não lia toda semana o seu espacinho no jornal. Por isso meu conselho é deixar esse livro na cabeceira e de vez em quando, ler algum.

E que coisas estranhas essas historinhas guardam! Meninas que morrem subitamente, com um golpe de ar — sério, que povo fraco é esse do meu Brasil?; mulheres que tratam seus maridos de “meu filho” como hein “Ih, meu filho, sua batata tá assando”. Gente que responde taxativamente “É batata!” pra tudo. “E ela morreu assim, subitamente, com um golpe de ar?” “Batata, meu filho!”. E tem mais, tem mais: gente que fica repetindo a mesma frase pra dar ênfase como em “E tem mais, tem mais!”; sujeitos com leves tendências pedófilas que chamam as gostosas de “pequena”; gente que fala “Tu és de morte”; motoristas de ônibus que atropelam os outros sem dó; garçonières em Copacabana, de amigos alcoviteiros (talvez naquela época Copacabana não fosse o lugar onde as pessoas mais eram vistas na face da terra); cartinhas anônimas pro corno lerdo, enfim, todo um universo que se repete e se rearranja de todas as maneiras possíveis. Isso, meus queridos, é Nelson Rodrigues em A vida como ela é… E nem me fale daquela versão televisiva que passava no Fantástico e era narrada pelo Zé Wilker, que aquilo me dá nojo. Melhor ler o livro mesmo.

O motivo principal pra preferir a história no livro do que na boca mole do Zé Wilker é essa edição da editora Agir. A editora Agir não era nada antes de ser comprada pela Ediouro. Deu uns cinco minutos nessa editora em 2004 em que tudo mudou! A cada dia me surpreendo mais com os projetos gráficos dela, e com a escolha de autores também. Fizeram esse livro gigantesco, lindo para o ano em que ele foi lançado (tem que ver que há uns dois anos fazer livro virou coisa séria pras editoras), apesar do MALDITO papel offset, de gramatura baixa ainda. De qualquer jeito, vale pela capa e pela falta de economia nas páginas. Mas não tente carregar ele por aí, você só vai se fuder, e seu massagista vai ficar rico.

SOBRE A PROMOÇÃO: Tô gostando de ver a galera comentando aí. O comentário de número 500 vai ganhar o livro Plataforma, do francês boiolinha Michel Houellebecq. Literatura de primeira para os meus leitores de primeira (sentiu a puxada de saco? Então comenta aí, cacete!).

Comentário final: 605 páginas em offset. O livro que extinguiu os dinossauros.

Lygia Fagundes Telles – Meus Contos Preferidos

Não há dúvidas de que a senhora Lygia Fagundes Telles é, talvez, uma das escritoras mais originais do Brasil que ainda respiram. E nesse sentido, acho legal as faculdades que colocam livros dessa simpática e perturbada vovó na lista das obras obrigatórias para o vestibular. Em meio à tantos floreios parnasianos da literatura hã… clássica brasileira, as verdadeiras odisséias na maionese dos contos de Telles são um oásis em meio a um strokes. Peraí que não gosto nem de oásis nem de strokes. Digamos então que é como um dead kennedys em meio a um monte de parangolés. Quem a vê, com aquela cara de quem é da turma de oração da minha vó nunca imagina que Lygia escreve coisas como um gato que quer transar com um quadro (ou algo assim).

É um fato também de que a escritora é muito mais reconhecida por seus contos do que por seus romances, e isso, camaradinhas, é honra pra qualquer um que escreve contos. Considerado um gênero menor, o conto é aquela coisa que as editoras “suportam” enquanto um romance novo não aparece (há uns tempos atrás teve um G ideias bem legal sobre isso, busquem lá). E Lygia Fagundes Telles escreveu romances, meus amigos, romances reconhecidamente bons inclusive, como As Meninas (bom xi bom xi bom bom bom) e Ciranda de Pedra, que virou novelinha da Globo. Mas é realmente no conto que ela prova a que veio. Com poucas (bom, às vezes muitas) páginas, ela consegue montar verdadeiras tensões, angústias e qualquer outra coisa que ela queira porque ela é FODA!

E tudo isso pra falar de sua antologia pessoal, intitulada Meus Contos Preferidos. Acho que preferidos não só da autora mas também da torcida do Flamengo. O livro é só história boa, e são muitas: Tem aqueles Venha Ver o Pôr do Sol e As Formigas, ambas de arrepiar os cabelos do cu, WM e Pomba Enamorada, sobre gente louca (sempre um bom tema), Verde Lagarto Amarelo, um conto que parece muito a história dos irmãos Ivan e Sério Sant’Anna (oooopa, peguei na ferida, hein?) e tantos outros… Eu particularmente, gosto muito do conto O Moço do Saxofone. Ri pra cacete lendo a história de um saxofonista corno que mora na pensãozinha onde sua mulher roda mais que pião maluco. E claro, não podemos deixar de esquecer de A Presença, o conto que todo mundo lê e fala “caralho, quem me dera escrever uma coisa dessas…”.

Em se tratando de uma antologia, na qual os contos estão ligados não por um fio de coerência ou temática, mas apenas por laços afetivos, é muito difícil comentar sobre esse livro como um todo. O que dá pra dizer que os contos favoritos são todos loucos, ah, isso dá! E que a edição da editora Rocco ficou excelente, não fosse o maldito filho da puta papel offset. Quando é que vocês vão parar com isso, gente? Parece que a bola agora está com a Companhia das Letras, que está lançando uma coleção bem menininha dos livros da escritora, mas, como este ainda não foi pra lá, tratemos da Rocco mesmo. Tem um cabeço meio escroto, mas a fonte, com os títulos em itálico, quase compensam a falta de tato na escolha do papel (e não venha dizer que é muito mais caro botar papel pólen soft quando um livro é vendido por 45 reais). A capa é bem simples, mas muito legal, tanto que faz par com a outra antologia da escritora, Meus Contos Esquecidos, com cinta dourada. Meu último comentário é uma pequena crítica sobre a qualidade da cola para fazer a encadernação de brochura: a capa soltou do miolo em pouco tempo de uso. E olha que cuido benzão dos meus livros. Puta falta de sacanagem!

Comentário final: 318 pesadas páginas em offset. Vai ficar difícil expressar seus sentimentos com a mandíbula partida em três lugares (Ética e Política da Amizade).

Caco Barcellos – Abusado

Uh, dobradinha não só de literatura nacional como também de literatura sobre o Rio de Janeiro. Legal, vamos propor uma sessão de porradaria: de um lado, o Rio de Janeiro exaltado de Ruy Castro; do outro, o Rio de Janeiro todo errado de Caco Barcellos em sua pièce de résistance (é sim, porra, muito melhor que Rota 66) Abusado – O dono do morro Dona Marta (hoje em dia, o dono do morro é o Eduardo Paes). E, antes que todo mundo fique falando que a visão deste é realista enquanto a daquele outro é idealista, vamos lembrar que o jornalista gatão Caco Barcellos (as meninas da faculdade dizem que o nome do meio dele é aimeudeusdocéu) é gaúcho, e se você me mostrar um gaúcho que gosta do Rio de Janeiro eu te mostro um sujeito que canta Surfin’ Bird com o ânus. Tá, eu eventualmente acabo mostrando a cena do Surfin’ Bird (não, o sujeito não sou eu, tem naquele filme do John Waters).

Falando sério agora, ninguém discute a veracidade e o compromisso de Barcellos em fazer um retrato fiel de um dos Marcinhos VP, o do morro Dona Marta, o traficante que fez história ao depor na CPI do narcotráfico em 2000, sendo um bandido com uma certa consciência social (não vou ficar dizendo que ele é uma versão brasileira de Robin Hood ou John Dillinger que isso é coisa de jacu). Barcellos colou mesmo com o sujeito e expôs em seu livro todos os pormenores da vida do crime no Rio de Janeiro, os tribunais do crime e a hierarquia do tráfico. Isso tudo além, é claro, de mostrar a faceta (FA-CE-TA!) humana de Marcinho, o patrocínio que recebeu de João Moreira Salles, os envolvimentos amorosos com uma aristocrata e muitas, muitas histórias sensacionais melhores que roteiro de filme brasileiro de miséria brasileira. E, sem querer endeusar o bandido, mas o Marcinho VP realmente era uma figura pelo que o livro conta. Particularmente na entrevista que deu para a Veja na ocasião da CPI, quando o repórter perguntou se ele já matou alguém e se ele conseguiu dormir depois, ele respondeu: “Já matei, no confronto. Viu o filme Mad Max? É a mesma sensação. Depois, em algum momento, você tem de dormir.” AHAHAHAHAHAH dorme com essa agora, revista Veja!

É lógico que não deve ter sido nada fácil fazer essa reportagem gigantesca se metendo em uma roubada (hã? Hã?) atrás da outra, inclusive saindo do Brasil junto com o bandido, mas Caco Barcellos nem por um segundo mencionou seu grande handicap: sua fama e complexão caucasiana em companhia contrastante — em um país de contrastes, é verdade — de um negão de olho puxado alto pra cacete. Deve ter sido foda passar despercebido desse jeito, acho eu. E o medinho?

Não sou muito leitor de biblioteca, mesmo porque na Biblioteca Pública do Paraná os bons livros são disputados a tapa. Mas, eis que um dia estava lá vagabundeando, tomando uma coça atrás da outra no xadrez por menininhos de 8 anos, quando passei na sessão de Sociologia e tava essa belezinha de tijolo ali no expositor dos mais requisitados. Aí peguei emprestado, fiz um malabarismo digno de um Danny Ocean com a carteirinha da biblioteca do amigo Murilo Domingos pra conseguir ficar por mais um mês com ele, e acabei terminando a leitura, ora veja, no Rio de Janeiro, numa oficina mecânica enquanto meu pai balanceava os pneus do carro (ou algo assim). E nesse dia, lembro-me de ter lido pelo menos umas duzentas e cinquenta páginas do livro (eita balanceamento demorado da porra!). A leitura é eletrizante, não dá pra largar o livro nem pra espirrar a alergia de papel de biblioteca que eu tenho. Eu não costumo dizer aqui que recomendo o livro ou não, falo apenas que gostei e que é uma opinião minha. Mas para o Abusado vou abrir uma exceção e recomendá-lo fortemente (e espero que com isso esse blog ultrapasse o site de catálogo de prostituta que aparece em primeiro lugar no Google quando se digita “abusado”)

Essa edição da editora Record é fodassa, embora tenha o MALDITO papel offset. Só não gosto muito quando uma editora lança dois livros do mesmo autor em formatos e tamanhos diferentes. Acharia melhor se o Rota 66 fosse igualmente grandão, porém fininho de espessura. Já que é pra fazer coleção, faz uma coleção que orna, né? Não é TOC, não é boiolagem, é só um conselho, ok? De qualquer jeito, como eu ia dizendo, a edição ficou legal, uma foto de capa muito foda, aquele miolinho colorido com as fotos, sempre fundamental e uma capa um pouco mais rígida do que a habitual, embora não possa ser considerada capa dura. Deixem para ler em casa. Ficar carregando essa porra dá torcicolo.

Comentário final: 560 páginas em formato grande e papel offset. Se tacar num prédio, é terrorismo!

Ruy Castro – Carnaval no fogo

Começo essa semana com um livro que acabei de ler. Não se assustem, criançada, eu não leio um livro por dia, mesmo porque não posso. Até então, tudo o que vocês leram nesse blog foi fruto de leituras pretéritas e uma relativa boa memória para livros que eu tenho graças a minha alimentação balanceada (tudo faz peso na balança) e minha abstenção do Gelol da Alma, o álcool (a benção, André Dahmer). Mas o livro de hoje, que ficou muito tempo figurado ali embaixo, no cantinho inferior direito, onde diz “Estou lendo”, finalmente foi concluído e está pronto para meu comentário nada abalizado, ainda mais em se tratando de Ruy Castro, um cara, que, pelo que eu ouvi, não gosta de nós, morlocks da imprensa. Então fica combinada a regra: enquanto não termino de ler o livro que está descrito ali embaixo, vou colocando outros que já li aqui, e assim que terminar algum, corro para a resenha do dia, ok?

Se Ruy Castro tem um talento visível aos olhos, é o de fazer o leitor se interessar pelos seus temas, mesmo que o tema em questão ainda não seja do interesse de alguém. Não me admiraria se houvesse, por exemplo, mais gente que leu o Anjo Pornográfico do que leitores assíduos de Nelson Rodrigues. Ou ainda, leitores que devoraram o seu Chega de Saudade e torcem a cara quando uma bossa nova qualquer toca no elevador de algum prédio chique. E com certeza há mais gente que leu Carmen do que gente que já viu algum filme da gaja mais brasileira aos olhos de Hollywood.

Sua fluidez de narrativa não é diferente em Carnaval no Fogo – crônica de uma cidade excitante demais, publicado pela Companhia das Letras e parte da coleção O escritor e a cidade, uma dessas coleções que eventualmente as editoras fazem para atacar o mercado com a força de quatro ou cinco escritores. No caso, mais três além de Castro: David Leavitt, que escreveu sobre Florença; Edmund White, sobre Paris e Peter Carey, sobre Sidney. Carnaval no Fogo é uma extensa crônica sobre a cidade do Rio de Janeiro, as particularidades e a história dos principais bairros e histórias curiosas sobre seus habitantes. Foi um dos vários livros que li sob a recomendação do José Carlos Fernandes, jornalista da Gazeta do Povo que, entre nós, ganhou a alcunha de o Gay Talese brasileiro. E ó, vale a pena, hein?

Ruy Castro, com esse livro, pode ser considerado talvez o primeiro escritor sustentável que já existiu. Não sustentável no sentido de que o papel do livro foi impresso em papel higiênico usado ou outras maluquices ecológicas, mas sustentável em seu tema. Ora, o sujeito passou a vida inteira falando de Carmen Miranda, Garrincha, Nelson Rodrigues, Bossa Nova e o caralho a quatro mais que tiver passado pelo Rio de Janeiro. Que mal tem então pegar todo o rebotalho dessas pesquisas, dar uma recauchutada em tudo e lançar um livro cujo personagem maior é o pano de fundo de todos seus outros livros? E, ao contrário da sobra da pasta de coca que vira merla e crack, o Carnaval no fogo não tem sua qualidade prejudicada por essa reciclagem de informação. Pelo contrário: a quantidade de informação do livro é tão grande que talvez seja a crônica mais bem escrita sobre uma cidade e seus personagens históricos. Parece que Ruy viveu esses anos todos no Rio e ficou só olhando quinhentos anos de história para escrever essa pequena obra. Na verdade, tem horas que ele exagera — o leitor ideal dele nesse caso teria que, além de ficar de falcão na história brasileira, obter conhecimento de mundo referente à história da Europa e das navegações de uma maneira geral. Então cuidado se você for um desses que se perde em meio a muitos nomes e datas, o Carnaval no fogo pode foder sua cabeça bonito! Mas calma, muito provavelmente é só impressão minha. Acho que, às vezes, ele só usa algumas referências obscuras pra não perder o ritmo e não pecar por falta de adjetivação. Com seus leitores, Castro não se incomoda se alguns são burros. Com os jornalistas, entretanto e já dissemos, parece que a banda toca diferente…

A edição da Companhia das letras é simpática, então palmas para o Raul Loureiro, seu idealizador. Com ilustrações de traço livre de Felipe Jardim, papel pólen soft de praxe e fonte Filosofia, uma fonte com as serifas redondinhas. Achei irada. E o melhor: encadernação e acabamento em capa dura, que, pelo preço dos livros hoje em dia, devia ser praxe também.

Comentário final: 254 páginas pólen soft com capa dura. Bom pra quando você não acha o martelo…

Rubem Fonseca – Agosto

Sabe que eu li aí num blog de alguém algum dia indicado por outro alguém algum post que falava que o Rubem Fonseca — justo ele, vencedor do Prêmio Camões em 2003 — era um mau escritor, que só usava uns clichês mais clichês que uma porta e que a escrita dele, além de óbvia, era brega. Vou te falar que, embora goste do autor, reconheço que o referido e já esquecido sujeito tem lá seus argumentos, exemplificados com excertos de alguns livros aleatórios. E gosto do Rubem Fonseca, mas não sou nenhum fanático também. Li aí uma meia dúzia de livros e se aparecer mais algum, vou continuar lendo. Mas não está nas minhas prioridades.

Mas enfim, não viemos aqui falar de livros ruins do Rubem Fonseca, viemos falar de AGOSTO (a torcida vibra!!), um de seus maiores e melhores romances, lançado em 1990 e até pouco tempo atrás publicado pela Companhia das Letras e agora publicado pela Agir (embora tenha lido a edição antiga, as tags e as glórias vão para a editora que está com a bola. Mas a foto é sempre da edição que eu tenho). Agosto não só é um excelente romance policial como também uma ficção histórica (que serve de escada como aquele tal de Kiabbo) muito bem detalhada. Tudo se passa na década de 50, na ocasião do suicídio de Getúlio Vargas, mas começa um pouco antes, na verdade: com o infame atentado da Rua Toneleiros, que ocorre pouco depois do assassinato de um ricaço (esse só existe no livro). Aí que um delegado que curte ópera (é o tipo da coisa meio difícil de achar), tá sofrendo das úlceras e com uma mulher enchendo o saco resolve investigar o caso por achar que os envolvidos nas duas ocorrências podem ser a mesma pessoa. A partir daí, ficção e realidade tendem a se cruzar, embora não cheguem a fazê-lo de fato. As histórias seguem em paralelo, mais ou menos como aquele filme O Verão de Sam, do Spike Lee. O enredo te gruda no livro, como o Rubem Fonseca sabe fazer bem, aliás, e sua forma de narrar com aspas ao invés de travessões — que condensa o livro em grandes blocos de texto a cada página — não tira a fluidez com que percorremos suas trezentas e cinquenta páginas (da edição antiga). Um livro inspiradíssimo sem dúvida, e que, enquanto policial, não é de todo vagal pela parte da pesquisa histórica.

As realidades descritas por Rubem Fonseca quase nunca escapam aos clichês dos romances policiais: Mocinhas irritantes, poderosos maus-caráter, delegados que resistem à corrupção, submundo exposto, espionagens e perseguições. São poucos elementos, mas, hey, com três notas foram compostas quase todas as punk rock songs. E nem dá para dizer, entretanto, que Agosto é uma variação sobre o mesmo tema porque, lendo bem direitinho, até que é um policial diferente do resto. Ok, não tão diferente, mas diferente o bastante para merecer o devido destaque. E mesmo assim, já disse, é um livro muito do cativante. Acho que até fizeram uma minissérie na Globo sobre o livro, mas não vi e não sei de nada, portanto, prefiro não comentar. Sintam-se livres para falar sobre a transposição televisiva da obra, entretanto.

E falando um pouco da edição da Agir: porra, palmas para a editora Agir que tá relançando as obras do Rubem Fonseca em um formato agradabilíssimo de ler, com capas criativas e padronizadas, assinatura do autor, uma margem de página grande e confortável, fonte Minion Pro (um abraço pra essa fonte, caralho!) e um acabamento na encadernação que parece que vai durar pra sempre (acho que são brochuras menores, talvez com dezesseis páginas cada, não sei ao certo). E o melhor: o preço tá consideravelmente mais em conta do que a edição antiga, o que só dá alegria pra gente que tem que meter a mão no bolso.

E um PS: esse livro é da Carlinha e foi ela que sugeriu o livro de hoje. Fiquem à vontade para sugerí-los também.

Comentário final: 368 páginas pólen bold 90g/m². Die, die, die!

Cristóvão Tezza – Uma Noite em Curitiba

É bem verdade que vou tratar agora de um livro do escritor Cristóvão Tezza que não é dos mais conhecidos de sua carreira. Uma Noite em Curitiba não é, pesando seu impacto na comunidade literária, nenhum O Fotógrafo, nenhum Trapo e certamente nenhum O Filho Eterno. Mas, dos livros de Tezza que eu conheço, ele é um dos mais originais e mais bem escritos de sua produção da década de 90.

Dizia eu no post anterior sobre o Mario Vargas Llosa que o gênero epistolar pode não ser dos mais agradáveis de se ler. E, como coloquei entre parênteses alguns livros de cartas que eu conhecia, fiquei depois pensando em quais obras mais se aventuraram por esse terreno estéril. E esse livro veio à mente. Resolvi então, escrever sobre ele para exemplificar mais um livro bem sucedido de troca de cartas.

Assim como Pantaleão, Uma Noite em Curitiba também é narrativa misturada. A história é escrita pelo filho de Frederico Rennon, um prestigiado historiador que desaparece após cair na infâmia por se envolver com uma renomada atriz que vem para Curitiba. Através das cartas trocadas entre o velado casal, o narrador tenta reconstituir os últimos passos de seu pai, e tentar entender a estranha e forte influência que sua figura paterna exerce sobre ele.

Esse livro é muito especial pra mim, por duas razões: a primeira, porque eu o ganhei do próprio Tezza, ao final da disciplina optativa que ministrava no curso de Letras da UFPR. A segunda, porque acho que Uma Noite em Curitiba tem a abertura mais emblemática de sua carreira: “Escrevo esse livro por dinheiro”. Logo na primeira frase, Tezza ataca, provavelmente sem perceber, a constante de seus livros: um motivo para escrever. À exceção de O Fotógrafo e outros livros escritos em primeira pessoa, todos, absolutamente todos os livros de sua carreira são justificados de alguma maneira por seus personagens. Pode procurar: Juliano Pavolini, o Fantasma da Infância, Aventuras Provisórias, Trapo, etc. Isso pode ser explicado por algumas hipóteses, como por exemplo, um sentimento de culpa inerente pela profissão de escritor, tema sobre o qual ele fala tanto em livros quanto em crônicas já publicadas. Mas talvez a resposta seja a mais simples: é estranho pra cacete escrever em primeira pessoa. Com o narrador onisciente, ninguém faz perguntas, ele escreve simplesmente porque pode. Mas uma pessoa que narra por um livro inteiro sua própria história, ou vivenciada por outrem, cedo ou tarde precisa de uma explicação. Afinal, o que leva alguém a fazer isso (respondam-me, blogueiros que fazem queridos diários de seus sites)? Essa consciência da narrativa justificada Tezza já possuía desde a década de 80 e vocês ainda procurando uma boa razão para ter um twitter, hein?

Apesar da constante troca de cartas (nas quais os pronomes de tratamento vão evoluindo constantemente em intimidade), Uma Noite em Curitiba é dinâmico pelo alto grau de narrativas, que mesmo as próprias epistolas contêm. E mesmo sendo um livro curto, a experiência proposta pelo autor é muito concreta para quem lê.

O grande problema desse livro é encontrá-lo. Desde que o escritor migrou para a editora Record, seus livros antigos publicados pela Rocco viraram artigos raros nas livrarias. Juliano Pavolini e o Fotógrafo ainda conseguem ser achados nas Livrarias Curitiba da vida. Quem sabe a Record também o republique, como fez com Trapo, Aventuras Provisórias e O Fantasma da Infância. Porque, venhamos e convenhamos, a Rocco é ótima pra encontrar novos escritores, mas peca no projeto editorial. Página de offset (não tem mais graça isso, galera!), uma fonte tenebrosa e um cabeço que EU poderia ter feito no microsoft word. E o que é essa capa? Mil desculpas ao Sr. Carlos Dala Stella, cujo mérito artístico não se discute, mas usar o quadro do senhor deste tamaninho nesse fundo branco gelo ficou uma vergonha. Porque não usaram o quadro inteiro na capa? Ficaria ótimo se fosse assim. A ficha técnica do livro também omite muita informação e está bem desorganizada, mas tem um trunfo: o nome de Elizabeth Lissovsky, a heroína que “preparou os originais” do livro (um eufemismo para “decifrou a escrita de Chico Xavier” do escritor. Brincadeirinha, Tezza, mas uma brincadeirinha com um fundo de verdade). Quase uma tradutora do árabe.

Comentário Final: 171 páginas de pesado offset. Se pegar no saco, dói.

Ruy Tapioca – A República dos Bugres

Vamos botar a mão na consciência e admitir que, em se tratando de literatura brasileira contemporânea, não são muitos os autores novos que se destacam. Por isso mesmo, quando aparece um, é preciso arregaçar as mangas para fazer saber que ainda existe gente que presta na literatura desse país, mesmo que o escritor em questão não seja necessariamente novo. Ruy Tapioca já é um senhor, e iniciou sua carreira de escritor depois de sua aposentadoria. Desde 1999, tem quatro livros publicados. E pergunto: Você já leu ou ouviu falar do gajo?

Pois é justamente sobre A República dos Bugres, seu romance de estreia, que trataremos neste post. O livro foi agraciado com o Prêmio Guimarães Rosa de Literatura , entre outros prêmios igualmente importantes, e é um sucesso somente no meio acadêmico. Foi na faculdade de Letras que o conheci. A querida professora Marilene Weinhardt ministrou sua disciplina de Teoria Literária e Teoria da História baseada neste livro, que é uma ficção histórica de primeira que abrange quase todo o século XIX, e que tem como um de seus protagonistas um suposto filho bastardo de D. João VI que vem para o Brasil junto com a família real em 1808. A mistura entre personagens reais e inventados é perfeita pela escolha dos personagens reais (caricatos demais para terem existido) e pela profundidade de construção dos inventados. Se você ler o livro, tente descobrir quais existiram de verdade. Garanto que terá uma surpresa ou duas.

Não podemos ignorar também o domínio do autor sobre o estilo literário da época do império. A escrita de A República dos Bugres é um show à parte. Também pudera, teve aula de redação com Machado de Assis (Opa, que maldade! Brincadeira, Sr. Tapioca!), que aliás faz ponta no romance. Pra quem curte uma erudição literária, essa obra-prima promete molhar a roupa de baixo de muita gente.

E também há o humor. A República dos Bugres é um livro engraçadíssimo. De gargalhar mesmo, como poucos. Aliás, por se tratar de uma ficção histórica sobre o Brasil que aborda o tema com esse humor e estilo rebuscado, gosto de fazer um paralelo com a portentosa obra Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Mas, João Ubaldo que me perdoe, mas A República dos Bugres bate as 700 páginas de Viva o Povo Brasileiro em muitos aspectos.

Com tudo isso, você deve estar pensando: Por que um livro desses não tá na boca de toda livraria do Brasil? Pois é, amigo, também não sei. Publicado pela editora Rocco, que, vamos concordar que não fez um bom trabalho na divulgação desse autor, o livro tem um projeto gráfico meio tosco, embora tenha sido impresso em fonte Minion, que eu acho irada e cuja versão genérica pode ser encontrada para download na internet. Com um papel offset podrão (ô gente, vamos parar com o offset!) e uma capa com uma pintura realista, uma estética que já saiu de moda na publicação de livros há pelo menos 20 anos. Então, ponto positivo pra Rocco, que publicou este que talvez seja o último dos autores de novos clássicos (e quem escreve ficção com mais de 400 páginas hoje em dia?), mas ponto negativo por não caprichar na publicação desse belíssimo livro, um dos melhores, aqui no Brasil, dos últimos trinta anos.

Comentário Final: 532 páginas pesadas de offset podrão. Se tacar na cabeça dá traumatismo.

João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas

Começo o blog com um livro que já havia comentado na malograda primeira tentativa de um espaço sobre livros. Não poderia começar de outra maneira, afinal de contas, Grande Sertão: Veredas é o meu livro favorito. Ganhei-o de aniversário, em 2008, do grande amigo Cássio Busetto, que tenho em alta conta e cujas indicações literárias sempre são acatadas. Li durante as férias do fim do ano e hoje digo com tranqüilidade que ler este livro é uma das poucas vantagens de ser brasileiro. É preciso ter as raízes bem fixadas na cultura do país.

Para quem sempre dormia na aula de literatura quando a professora entrava nesse assunto, o livro é um grande relato de um jagunço chamado Riobaldo “Tatarana” a um interlocutor oculto. Ele fala de suas aventuras no “sertão das gerais”, um território vasto que abrange parte dos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás, e de como conheceu e viveu com seu amigo Reinaldo “Diadorim”, um jagunço filho de Joca Ramiro, chefe do bando. Riobaldo, em sua ânsia por poder e sucesso, resolve fazer um pacto com o demônio, mas não sabe se o pacto foi consumado e passa a viver uma tortura psicológica enquanto tem de lidar com as reviravoltas de seu bando e a boiolagem latente que ronda sua amizade com Diadorim. Pronto, eis a sinopse. Se você não sabia do que esse livro falava, vergonha na sua cara, hein?

O problema de falar de um livro desses é que basicamente tudo já foi falado com muito mais categoria e conhecimento. A experiência lingüística é realmente o melhor da obra, e, somado à trama intensa, faz de Grande Sertão: Veredas o melhor livro que eu já li (até o momento, mas acho difícil achar algo melhor).

O leitor já deve ter lido de certos etílicos beatniks coisas como “eu escrevo com a alma, com o coração, com as bolas, com sangue, com porra, com merda” e bla bla blás semelhantes. É tudo mentira. O tal bebum escreve é com palavras e gramática, permeados por talvez algumas gírias e mau gosto. Porém, não seria nenhuma injustiça incorrer na suposição de que se algum autor realmente escreveu com a alma, esse autor foi o Guimarães Rosa. Ao contrário dos outros, Rosa conseguiu romper as correntes da sua escravidão à gramática e à semântica e, dando a volta por cima, tomou os elementos da escrita como seus escravos para conduzir sua literatura por veredas só imaginadas por ele e que nenhuma convenção linguística seria capaz de seguí-la. Não é a toa que o livro dá pano pra manga até os dias de hoje.

PROJETO GRÁFICO

A editora Nova Fronteira, que produziu a versão que eu li (vide imagem), cometeu o pecado de imprimir essa magnânima obra em um papel offset vagabundo. Em outras casas editoriais, o mais imprestável dos escritores é publicado no mínimo em um confortável pólen soft.

E isso não é pecado só com o Guimarães Rosa. As belíssimas ilustrações de nada menos que Poty Lazarotto mereciam ao menos uma capa dura. O número de vítimas aumenta se contarmos a excelente diagramação interna do cabeço (na vertical e alternando os cantos superiores e inferiores). O excelente projeto gráfico tem ainda o poema “Um Chamado João” escrito por Drummond sobre o amigo, com caligrafia do poeta. Tudo isso parcialmente arruinado pelo acabamento.  Não havia necessidade de se economizar tanto, afinal de contas, o livro por si só já é caro e a mesma editora Nova Fronteira possui uma versão “de estudante” que é menor e ainda mais desprovida de charme.

Claro que a versão chique do livro saiu, uma edição comemorativa de 50 anos (em 2006) que custava pelo menos cento e vinte reais e que durou uns três meses por aí (tiragem de dez mil exemplares). Quem viu sabe que era um pitéu, tinha o título bordado com fios soltos, capa dura, marcador de fita, isso sem falar no álbum de imagens e o DVD interativo (embora também tenha sido impressa também no maldito offset).

Pouco tempo depois, lançaram uma edição que era basicamente o mesmo projeto gráfico do meu exemplar mas com a capa que imitava a capa dura da edição de luxo. Também vinha em uma caixinha e acompanhava o álbum de imagens. Mas foi só. Um livro como esse merecia ser visualmente melhor representado, não acham?

Comentário Final: 624 páginas leves mas bem condensadas. Quebra alguns ossos.