Marquês de Sade – Os 120 dias de Sodoma (Les 120 journeés de Sodome)

Levante a mão quem já leu esse livro. Eu sou a única pessoa que eu conheço que, por enquanto, teve estômago para ler de cabo a rabo os 120 dias de Sodoma, de Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade. Escrito em 1785 em seu encarceramento na Bastilha (foi transferido pra lá depois que o Château de Vincennes foi fechado, em 1784). O Sade é um cara assim meio Edward Bunker, passou quase toda a vida preso, seja por perseguições políticas, seja pelas merdas que ele fez com suas prostitutas (reza uma lenda de que ele teria envenenado duas delas “sem querer” ao ter ministrado “pílulas para peidar”. Ele curtia umas coisas dessas).

Tenho uma “tioria” que atesta que quanto menor o tempo que o escritor leva para escrever sobre um assunto, mais presente o tal assunto está em sua vida. Pois bem: os 120 dias de Sodoma foram escritos em apenas trinta e sete dias. Bom, na verdade, a obra nunca chegou a ser completada, pois, dos cento e vinte dias do enredo, foram narrados apenas trinta. Para o resto ele fez apenas o roteiro e a descrição dos dias. Acontece que depois a Bastilha foi tomada, todo mundo picou a mula de lá e o manuscrito acabou sendo deixado para trás, apenas para ser recuperado anos depois. Foi então que essa hecatombe literária veio ao mundo.

Resumo da ópera: quatro ricaços muito pervertidos que comem as próprias filhas resolvem ir para um castelo na Suíça para passar quatro meses de pura sacanagem. Para isso contratam quatro putas velhas (chamadas “musas”) para narrar suas histórias e quatro amas. Seqüestram oito meninas e oito meninos virgens de idade entre 12 e 15 anos para serem arregaçados e ainda solicitam oito “fodedores”, sujeitos de pirocas enormes para enrabar os amigos (eles são chegados nisso também). A cada mês o nível de perversão aumenta. Começa leve: gente que come cocô, vômito, mija na cara, etc. No segundo mês, as “paixões duplas”: incestos mil e os water sports já mencionados. No terceiro, “paixões criminosas”: gente que sente tesão em furar um olho, arrancar um dente, cortar o dedo. Por último, “paixões assassinas”: galera que só se diverte se matar o parceiro sexual. Claro que quem sofre com isso são as criancinhas, que além de serem todas descabaçadas, ainda são lentamente mutiladas até a morte (vocês devem estar dizendo “Chega! Chega! Chega!”).

Há uma cena emblemática: Quando uma das musas narra um golden shower e os nobres mandam deitar uma das menininhas virgens na mesa para receber o mijo na cara, a menina diz algo como: “Pelo amor de Deus, senhor, não faça isso comigo senhor. Estou muito triste porque, na ocasião do meu sequestro, meus pais foram assassinados por seus capangas.” Aí um dos ricaços chega pra ela e fala: “Menina, não se atreva a falar de Deus aqui dentro. Se Deus existisse ele não deixaria a gente fazer isso com você.” Acho que essa cena resume o livro. É a crueldade desenfreada, a busca pelo prazer sem ética, tudo o que as pessoas fazem quando saem pro crime nas festinhas e não se preocupam com quem elas estão beijando, só que com uma lupa de aumento brutal que explicita o horror da coisa.

Ganhei esse livro de natal da querida tia Albinha (desconfio que se ela soubesse do que se trata esse livro, ela teria preferido me dar outra coisa) e o li enquanto pedalava bicicletas ergométricas numa masmorra chamada academia de ginástica. O livro é extremamente bem escrito, com uma prosa da era moderna fluída. Gostei mesmo da proposta do livro e recomendo para quem agüentar o rojão.

A edição da Iluminuras é linda pra caralho. Vem com um marcador personalizado preso à orelha (só destacar). Excelente diagramação e o melhor: um dos melhores desenhos de nada menos que Egon Schiele na capa. Acho que todo mundo que desenha curte, ou deveria curtir Schiele porque as poses que ele desenha não são para qualquer um. (falo mais dele se um dia for falar dos Cadernos de Dom Rigoberto). Papel pólen, pra agradar todo mundo e fonte Garamond, que eu acho meio apagada, mas estilosa demais.

Comentário final: 364 páginas em pólen soft. O pessoal do UDR usa esse livro pra estuprar marinheiros (Alcorão é coisa do passado).

Cristóvão Tezza – Uma Noite em Curitiba

É bem verdade que vou tratar agora de um livro do escritor Cristóvão Tezza que não é dos mais conhecidos de sua carreira. Uma Noite em Curitiba não é, pesando seu impacto na comunidade literária, nenhum O Fotógrafo, nenhum Trapo e certamente nenhum O Filho Eterno. Mas, dos livros de Tezza que eu conheço, ele é um dos mais originais e mais bem escritos de sua produção da década de 90.

Dizia eu no post anterior sobre o Mario Vargas Llosa que o gênero epistolar pode não ser dos mais agradáveis de se ler. E, como coloquei entre parênteses alguns livros de cartas que eu conhecia, fiquei depois pensando em quais obras mais se aventuraram por esse terreno estéril. E esse livro veio à mente. Resolvi então, escrever sobre ele para exemplificar mais um livro bem sucedido de troca de cartas.

Assim como Pantaleão, Uma Noite em Curitiba também é narrativa misturada. A história é escrita pelo filho de Frederico Rennon, um prestigiado historiador que desaparece após cair na infâmia por se envolver com uma renomada atriz que vem para Curitiba. Através das cartas trocadas entre o velado casal, o narrador tenta reconstituir os últimos passos de seu pai, e tentar entender a estranha e forte influência que sua figura paterna exerce sobre ele.

Esse livro é muito especial pra mim, por duas razões: a primeira, porque eu o ganhei do próprio Tezza, ao final da disciplina optativa que ministrava no curso de Letras da UFPR. A segunda, porque acho que Uma Noite em Curitiba tem a abertura mais emblemática de sua carreira: “Escrevo esse livro por dinheiro”. Logo na primeira frase, Tezza ataca, provavelmente sem perceber, a constante de seus livros: um motivo para escrever. À exceção de O Fotógrafo e outros livros escritos em primeira pessoa, todos, absolutamente todos os livros de sua carreira são justificados de alguma maneira por seus personagens. Pode procurar: Juliano Pavolini, o Fantasma da Infância, Aventuras Provisórias, Trapo, etc. Isso pode ser explicado por algumas hipóteses, como por exemplo, um sentimento de culpa inerente pela profissão de escritor, tema sobre o qual ele fala tanto em livros quanto em crônicas já publicadas. Mas talvez a resposta seja a mais simples: é estranho pra cacete escrever em primeira pessoa. Com o narrador onisciente, ninguém faz perguntas, ele escreve simplesmente porque pode. Mas uma pessoa que narra por um livro inteiro sua própria história, ou vivenciada por outrem, cedo ou tarde precisa de uma explicação. Afinal, o que leva alguém a fazer isso (respondam-me, blogueiros que fazem queridos diários de seus sites)? Essa consciência da narrativa justificada Tezza já possuía desde a década de 80 e vocês ainda procurando uma boa razão para ter um twitter, hein?

Apesar da constante troca de cartas (nas quais os pronomes de tratamento vão evoluindo constantemente em intimidade), Uma Noite em Curitiba é dinâmico pelo alto grau de narrativas, que mesmo as próprias epistolas contêm. E mesmo sendo um livro curto, a experiência proposta pelo autor é muito concreta para quem lê.

O grande problema desse livro é encontrá-lo. Desde que o escritor migrou para a editora Record, seus livros antigos publicados pela Rocco viraram artigos raros nas livrarias. Juliano Pavolini e o Fotógrafo ainda conseguem ser achados nas Livrarias Curitiba da vida. Quem sabe a Record também o republique, como fez com Trapo, Aventuras Provisórias e O Fantasma da Infância. Porque, venhamos e convenhamos, a Rocco é ótima pra encontrar novos escritores, mas peca no projeto editorial. Página de offset (não tem mais graça isso, galera!), uma fonte tenebrosa e um cabeço que EU poderia ter feito no microsoft word. E o que é essa capa? Mil desculpas ao Sr. Carlos Dala Stella, cujo mérito artístico não se discute, mas usar o quadro do senhor deste tamaninho nesse fundo branco gelo ficou uma vergonha. Porque não usaram o quadro inteiro na capa? Ficaria ótimo se fosse assim. A ficha técnica do livro também omite muita informação e está bem desorganizada, mas tem um trunfo: o nome de Elizabeth Lissovsky, a heroína que “preparou os originais” do livro (um eufemismo para “decifrou a escrita de Chico Xavier” do escritor. Brincadeirinha, Tezza, mas uma brincadeirinha com um fundo de verdade). Quase uma tradutora do árabe.

Comentário Final: 171 páginas de pesado offset. Se pegar no saco, dói.

Mario Vargas Llosa – Pantaleão e as Visitadoras (Pantaleón y las visitadoras)

Uma injustiça do cão: Mario Vargas Llosa nunca vai ganhar o Nobel de literatura por causa de sua visão política direitista. Às vezes desconfio seriamente que esse pessoal não sabe dar valor a bons escritores, independente de sua vida política (o mesmo vale pro Cèline, que como disse a Albana, quando exclamei dizendo que ele era fascista, “ele mantém seu fascismo a níveis muito saudáveis”). Porque, convenhamos, Vargas Llosa é, de longe, o melhor escritor de língua espanhola da atualidade (dorme com essa agora, García Marquez). O cara domina com maestria todos os gêneros e estilos da literatura: ensaio, romance, contos, até mesmo o gênero epistolar, pilar do livro Pantaleão e as Visitadoras, publicado em 1974.

Quem já leu alguns livros de troca de cartas (Cartas a Théo, a Caixa Preta, De Profundis, etc), sabe que ficar lendo carta dos outros não é a coisa mais divertida do mundo. Falta o dinamismo da narrativa, o livro pode se arrastar. Agora, quem conceberia um livro que é, em sua quase totalidade, um envio de correspondência — não de cartas normais, mas de ofícios militares — com um humor pastelão e escrachado? Vargas Llosa fez isso. Pantaleão e as Visitadoras é um livro absolutamente hilário que conta a história de Pantaleão Pantoja, um oficial do exército peruano incumbido de uma missão ultra-secreta por sua óbvia delicadeza: organizar um serviço de visitadora (prostitutas) em um posto do exército instalado no meio da selva amazônica. O motivo é palpável. Os soldados da tropa, metidos naquele fim de mundo sem civilização por perto, estavam estuprando as índias e mulheres de pescadores locais. O exército, pra não ficar difamado por seus soldados tarados, coloca Pantoja para levar de barquinho umas três ou quatro prostitutas até o posto.

Mas o protagonista é um militar altamente disciplinado. Começa a estudar o tempo de cada “serviço” e vendo que a quantidade de mulheres não é suficiente, logo começa a armar um esquema gigantesco de prostituição, com direito a uniforme, hino e bandeirinhas. Não demora muito a arrumar inimigos e problemas matrimoniais. Contar mais do que isso seria tirar boa parte da diversão desse livro.

A intenção de Vargas Llosa em Pantaleão é, mais uma vez, explorar as falhas e fraquezas das forças armadas. Firmou-se no mundo literário com seu romance A Cidade e os Cachorros, sobre a vida de estudantes do colégio militar, e muitos apontam A Festa do Bode, livro que narra ficcionalmente a vida de Rafael Trujillo, o temível ditador da República Dominicana. Mario, ele próprio, foi um cachorro, um aluno do colégio militar, e conheceu um serviço real de visitadoras quando visitou a selva amazônica em 1958, então escreve com conhecimento de causa cada um desses assuntos.

Falar de um projeto gráfico da editora Alfaguara é falar de todos. Os livros são padronizados numa mesma diagramação, mudando apenas a capa, ou, eventualmente o tamanho da fonte (aliás, alguém sabe a fonte que a Alfaguara usa?). Entretanto, a coleção de livros do Vargas Llosa está fenomenal. É foto da Getty Images? É, mas porra, são fotos muito bem escolhidas. Dos livros já lançados pela editora, me faltam a Guerra no Fim do Mundo e a Casa Verde. Meu aniversário tá longe, alguém aí não quer me dar?

Duas curiosidades: 1ª: Esta edição do livro foi traduzida a quatro mãos, por Paulina Wacht e Ari Roitman (ficou muito boa, por sinal). Inusitado, hein? 2ª O próprio Vargas Llosa co-dirigiu a versão cinematográfica do livro com José María Gutiérrez. Mas o filme não é nem de longe tão bom quanto o livro. Recomendado até os ossos.

Comentário Final: 246 páginas pólen soft de alta gramatura. Se pegar uns cinco desses e juntar em alguém, rola um sanguinho.

Yasunari Kawabata – A Dançarina de Izu (Izu no Odoriko, 伊豆の踊り子)

Deus sabe que não gosto de literaturas muito descritivas. Mas esse livro, A Dançarina de Izu, do japa Yasunari Kawabata, prêmio Nobel de literatura em 1968, bateu fundo no peito. O livro é curto — menos de 60 páginas — e é de uma singeleza que dói. Kawabata escreve o livro como um pintor que não tem dinheiro pra comprar tinta pinta uma tela — economizando em tudo. E como dizem algumas peruas que, quando saem na rua mais parecem árvore de natal, o menos acaba sendo mais.

O livro foi publicado em 1926, e escrito a partir de uma experiência autobiográfica de sua vida de estudante. O mauricinho, então com dezenove anos, faz uma viagem de férias à península de Izu, a oeste de Tóquio. Hospedado em alguns albergues familiares, conhece uma trupe de artistas mambembes de Oshima, uma das ilhas de Izu (procura no Google Earth que é bem bonito o lugar). Uma das integrantes dessa trupe é uma pequena dançarina chamada Kaoru, de treze anos. Ele se encanta com a graça da menina e faz amizade com os outros artistas da companhia, todos de sua idade ou mais jovens do que ele. E ao final de suas férias, ele volta para a cidade grande. Essa é toda a história do livro. Simples, não?

Não dá nem pra chamar isso de Spoiler. A graça de A Dançarina de Izu está na beleza das descrições de Kawabata, das cenas que ele coloca na sua cabeça de uma maneira tão universal que chega a ser difícil haver muitas diferenças nas diversas adaptações que o livro teve para o cinema.

E a gente fica pensando: Como um ser tão sofrido como Kawabata pode ter escrito uma obra tão bonita? Para quem não sabe, o escritor perdeu o pai com dois anos e a mãe com três. Seus avós maternos abrigaram ele e sua irmã mais velha em Tokoyama, Osaka. Com sete anos, sua avó morreu; com dez, sua irmã; finalmente com quinze, seu avô. Ao longo de sua vida, perdeu vários amigos que suicidaram. Até que em 1972, ele passou por uma operação de apendicite que debilitou sua saúde. No mês seguinte, se matou inalando gás de cozinha. O cara é praticamente um coelho sem patas da má sorte total.

A beleza da obra está, eu acredito, na aventura de conhecer um lugar novo com pessoas novas. A trupe, toda composta por jovens, independente em sua arte, itinerante permanentemente ao contrário dele próprio, que está só de passagem. A história velada que cada vida possui, um grupo só de adolescentes (quase uma turma de Garotos Perdidos). O deslumbramento pela menina e o amor impossível que sente por ela (já naquela época essas coisas davam cadeia), não carnal, mas etéreo e idealizado. E depois a volta à realidade.

A editora Estação Liberdade está de parabéns por publicar a obra completa de Kawabata com projetos de capas (para esta, Midori Hatanaka, acrílico sobre folha de ouro. Incrível, hein?) e fonte Gatineau, que eu nunca tinha ouvido falar até ler o livro. Gostei mais ou menos da fonte, acho que até combina com a diagramação que fizeram. O ensaio complementar ao livro, que tem quase o tamanho do romance, é um pitéu. A gente tem que agradecer a esses heróis que se dispõem a estudar esses caras. Meiko Shimon, um abraço pro senhor. E um abraço também para o tradutor Carlos Hiroshi Usirono, que decifrou aquela escrita maluca que é o japonês. Vou ficar devendo suco pra muita gente depois desse blog. A parte chata do livro é, de novo, a merda do papel off-set. Sério gente, parou com isso.

Comentário Final: 101 páginas, incluindo o ensaio, em gramatura alta. Se tacar igual estrelinha ninja, é capaz de decepar a cabeça de alguém.

Pedro Juan Gutierrez – Trilogia Suja de Havana (Trilogia sucia de la Habana)

Estenda sua mão, dê um pescotapa e diga “se liga, mané”  em quem disser que Pedro Juan Gutiérrez escreve de um jeito bem parecido ao de Charles Bukowski. Essa afirmação é de uma imbecilidade que deveríamos ignorar, mas, ao invés disso, vamos explicar direitinho, para encerrar qualquer discussão.

Embora o Realismo Sujo (gênero de Gutiérrez) tenha alguns elementos físicos da literatura beatnik (de Bukowski), a forma como esses elementos são tratados é bem diferente. A principal diferença é que no Realismo, os espaços urbanos não são concebidos para serem o que são, e o personagem realista transite por esse espaço como um estranho, ao passo que os beats (bear, beats, battlestar gallactica) são incorporados ao lugar e sua destruição (boemias, sarjetas, bàs-fonds, etc). É uma explicaçãozinha meio rápida e vazia, mas se você quer aprender alguma coisa a fundo, sugiro não tentar fazê-lo em blogs.

Dizem que o cubano Pedro Juan resolveu escrever esse livro depois de ver uma criança fuçando o lixo em busca de comida, em plena Havana. É uma imagem poética para uma realidade ainda mais dura. Cuba passava por uma grande crise na década de 90, nos anos que se seguiram ao fim da União Soviética, a única amiguinha daquela ilhota em mais de cinquenta anos. Não havia comida, dinheiro, remédios, energia, nada. A maioria dos veículos de comunicação havia sido fechada por intervenção do governo. Para piorar, a vida do autor ia de mal a pior. Tinha três filhos para sustentar (sendo um bastardo), ganhava três dólares por mês e sua mulher estava a ponto de deixá-lo quando descobriu que ele tinha pelo menos umas seis amantes. Ficou completamente abandonado. E então escreveu essa coletânea de contos duros, crueis e desencantados com a realidade do país.

Tem de tudo na Trilogia Suja. Estupro, tráfico de órgãos, de drogas, de comida, tráfico de tudo na verdade, assaltos, assassinatos, e muito sexo, sempre. A literatura de Pedro Juan recende a cecê de longe. Difícil ler este livro e não se sentir incomodado pelas situações ali descritas, em uma mistura de ficção e realidade.

Hoje em dia, a edição que se encontra é a da Alfaguara (por isso mesmo vou colocar a tag na editora), mas eu li a publicação da Companhia das Letras. Um livro menor em tamanho, com uma fotografia sensacional na capa. Em tons pastéis, o fotógrafo captou muito bem a essência da literatura e da  Cuba de Gutiérrez (aliás, as fotos dos outros livros do autor também são sensacionais). A edição da Alfaguara tem um acabamento característico da editora, que é de excelente qualidade. A capa porém, preferiu privilegiar essa pluralidade (cheio de palavra com pê, hein?) de elementos da cultura latino-americana, colorida e um pouco sombria no conjunto. É bem da cultura cubana, mas pouco tem a ver com a escrita do autor.

Fui apresentado à sua literatura pela amada Carla Cursino, e hoje digo a todos: Leiam Pedro Juan Gutiérrez e sua Trilogia Suja.

Comentário Final: 382 páginas pólen soft molengas. Se quiser fazer estrago mesmo, melhor bater com a edição da Alfaguara.

Ruy Tapioca – A República dos Bugres

Vamos botar a mão na consciência e admitir que, em se tratando de literatura brasileira contemporânea, não são muitos os autores novos que se destacam. Por isso mesmo, quando aparece um, é preciso arregaçar as mangas para fazer saber que ainda existe gente que presta na literatura desse país, mesmo que o escritor em questão não seja necessariamente novo. Ruy Tapioca já é um senhor, e iniciou sua carreira de escritor depois de sua aposentadoria. Desde 1999, tem quatro livros publicados. E pergunto: Você já leu ou ouviu falar do gajo?

Pois é justamente sobre A República dos Bugres, seu romance de estreia, que trataremos neste post. O livro foi agraciado com o Prêmio Guimarães Rosa de Literatura , entre outros prêmios igualmente importantes, e é um sucesso somente no meio acadêmico. Foi na faculdade de Letras que o conheci. A querida professora Marilene Weinhardt ministrou sua disciplina de Teoria Literária e Teoria da História baseada neste livro, que é uma ficção histórica de primeira que abrange quase todo o século XIX, e que tem como um de seus protagonistas um suposto filho bastardo de D. João VI que vem para o Brasil junto com a família real em 1808. A mistura entre personagens reais e inventados é perfeita pela escolha dos personagens reais (caricatos demais para terem existido) e pela profundidade de construção dos inventados. Se você ler o livro, tente descobrir quais existiram de verdade. Garanto que terá uma surpresa ou duas.

Não podemos ignorar também o domínio do autor sobre o estilo literário da época do império. A escrita de A República dos Bugres é um show à parte. Também pudera, teve aula de redação com Machado de Assis (Opa, que maldade! Brincadeira, Sr. Tapioca!), que aliás faz ponta no romance. Pra quem curte uma erudição literária, essa obra-prima promete molhar a roupa de baixo de muita gente.

E também há o humor. A República dos Bugres é um livro engraçadíssimo. De gargalhar mesmo, como poucos. Aliás, por se tratar de uma ficção histórica sobre o Brasil que aborda o tema com esse humor e estilo rebuscado, gosto de fazer um paralelo com a portentosa obra Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Mas, João Ubaldo que me perdoe, mas A República dos Bugres bate as 700 páginas de Viva o Povo Brasileiro em muitos aspectos.

Com tudo isso, você deve estar pensando: Por que um livro desses não tá na boca de toda livraria do Brasil? Pois é, amigo, também não sei. Publicado pela editora Rocco, que, vamos concordar que não fez um bom trabalho na divulgação desse autor, o livro tem um projeto gráfico meio tosco, embora tenha sido impresso em fonte Minion, que eu acho irada e cuja versão genérica pode ser encontrada para download na internet. Com um papel offset podrão (ô gente, vamos parar com o offset!) e uma capa com uma pintura realista, uma estética que já saiu de moda na publicação de livros há pelo menos 20 anos. Então, ponto positivo pra Rocco, que publicou este que talvez seja o último dos autores de novos clássicos (e quem escreve ficção com mais de 400 páginas hoje em dia?), mas ponto negativo por não caprichar na publicação desse belíssimo livro, um dos melhores, aqui no Brasil, dos últimos trinta anos.

Comentário Final: 532 páginas pesadas de offset podrão. Se tacar na cabeça dá traumatismo.

Chimamanda Ngozi Adichie – Meio Sol Amarelo (Half of a yellow sun)

Devo confessar que minhas expectativas sobre esse livro quase foram a sua ruína antes da hora. Foi preciso que eu parasse, refletisse sobre a intenção dele, para então começá-lo de novo e dessa vez, sim, entender a proposta da jovem escritora Chimamanda Adichie com Meio Sol Amarelo. A escritora foi minha porta de entrada para a literatura nigeriana (não posso fazer nada se resolveram publicar um livro do Chinua Achebe só no ano passado), e por isso, esperava que o livro não só me apresentasse o estilo da literatura do país, mas também a identidade nigeriana. E foi burrice minha, já deveria saber que literatura nenhuma tem obrigação a buscar esse tipo de coisa para o leitor.

Por outro lado, como J.M. Coetzee muito bem colocou na segunda palestra do romance Elizabeth Costello, o romance africano é escrito quase que exclusivamente para estrangeiros, visto que a população de leitores no continente é muito baixa. Sendo assim, o romancista africano deve construir, em todo livro, uma imagem da África que seja coerente com a idealização que nós, não-africamos, temos do continente, seja ela qual for. E não que Adichie não tenha feito isso. O problema (para mim, em um primeiro momento, pelo menos) era que esse não fosse o foco da obra.

Meio Sol Amarelo conta a história de um grupo de pessoas — mais especificamente duas irmãs, Olanna e Kainenne, que, no final da década de 60, separaram-se ideologicamente por conta da guerra civil que culminaria com a fundação de Biafra, o estado independente do povo ibo que existiu por três anos, até sua dissolução, em 1970. Enquanto o grupo, que é formado também por um jornalista inglês e um menino do interior do país, luta para sobreviver, rolam umas brigas familiares e um troca-troca de casais que eu achava que não tinha nada a ver com a história.

Acontece que justamente a briga familiar e o troca-troca de casais é a verdadeira história do livro. A guerra civil foi o momento histórico que costurou todo o enredo e foi responsável pelo desfecho de cada um dos personagens, mas não era a intenção da escritora entrar em muitos detalhes sobre o episódio (embora haja sim, algumas discussões políticas). Para fazer um comparativo de fácil compreensão, eu estava irritado como um alemão que pega o Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo, para ler, e espera tomar conhecimento de cem anos de política nacional. Foi aí que percebi o porquê de Meio Sol Amarelo ser um Best-seller da língua inglesa (mais de 320 mil exemplares, se não me engano). Quem lia esse livro, o lia como um romance de amor em tempos difíceis, como um desses dramas de guerra ou algo assim. Um evento histórico que muda a vida de algumas pessoas. Mas nunca como uma análise sobre o episódio.  E assim, entendida essa questão, preciso dizer que a leitura da moça não é capaz de pegar na veia.

Talvez esteja fazendo uma leitura muito simplória desse livro, mas acredite, já tentei fazer a leitura mais difícil dele também. Traduzido para 27 línguas, ganhador de alguns prêmios (entre eles o Orange Prize, que só dá prêmio pra esse tipo de livro, quase), uma belíssima publicação da Companhia das Letras que — pasmem vocês — não teve a capa feita pelo João Baptista da Costa Aguiar (foi uma artista chamada Mayumi Okuyama, que fez algumas outras capas, como o do livro A Outra Vida, do escritor Rodrigo Lacerda), tudo isso não fez a obra bater no coração. Mas tudo bem. Não deixa de ser uma boa leitura só porque não é especial.

Comentário final: Pesadas 502 páginas pólen soft. Quebra umas costelas facilmente.

Ismail Kadaré – Dossiê H (Dosja H)

Vou confessar que não sei nada, ou quase nada, sobre a vida de Ismail Kadaré. Mas é só olhar pra cara de Droopy (“sabe de uma coisa? Eu estou tão feliz…”) dele e ler um ou dois livros de sua vasta obra para perceber que o sujeito é meio amargurado, pra não dizer totalmente amargurado. Não se pode culpá-lo, afinal. O leste europeu de uma maneira geral, e a Albânia mais especificamente, já que tratamos da literatura de seu país, é triste e escaldado como o cão de rua que apanhou a vida inteira. Até se você for dar amor, ele se assusta e sai correndo, ou te morde achando que é mais porrada. É mais ou menos essa a animosidade de Dossiê H, escrito em 1989 e publicado pela Companhia das Letras, nesta minha edição (presente de natal da minha mãe), em 2001, parte da bela coleção que a editora fez para um dos únicos escritores albaneses a ganhar o mundo. Belíssimas fotos na capa (a deste livro são colinas que se sobrepoem, não sei se da Albânia porque foi tirado do site CORBIS) do esloveno Arne Hodalic, fotógrafo da National Geographic. E cada edição tem uma cor diferente, uma moda que a Companhia das Letras faz muito, e fica bonito mesmo. O miolo também agrada: pólen soft basicão e fonte Electra (sou paradão nessa fonte, um chicabon pra quem me descolar ela). E o melhor é o conteúdo.

A intenção do livro, tenho quase certeza, é mostrar que albanês da roça é mais jeca do que curitibano no Batel Soho. Para isso, ele usa como o tema a poesia homérica, aquela que é cantada e nunca escrita, passada entre as gerações de cantadores. Dois pesquisadores irlandeses vão para um fim de mundo lá da Albânia que dizem ser o último reduto dessa prática. Eles trazem consigo um gravador de fita magnética, o que, na época em que se passa o romance, era a última palavra em tecnologia de mídia. E claro que na Albânia não tem nada disso, então o povo fica rebuliçado achando que tem caroço no angu. O governador do lugarejo coloca um espião na cola deles, que por sua vez, se desespera para zelar por seu nome. Já a primeira-dama fica idealizando um romance com um dos pesquisadores, numa tensão sexual veladíssima à la Stendhal em O Vermelho e o Negro. Com tudo isso, a chance dos irlandeses saírem impunemente de sua expedição diminui a cada página. E a intenção deles, assim como a do desavisado que vai afagar o cachorro de rua, é das melhores. Mas a mordida é profunda e cheia de ziquezira.

Eu tenho quase certeza também (as certezas não são certas quando você lê um autor pela primeira vez) que esse livro era para ser uma comédia. Afinal de contas, tem todos os elementos: O estranho que chega, a cidade em polvoroça, a paranóia com estrangeiros que vem fazer-nã0-sei-o-que-aqui-nesse-fim-de-mundo, a mulher casada com fogo na periquita, o espião em fim de carreira, enfim, um cenário propício para uma comédia do interior no melhor estilo  O Bem Amado. Mas como eu disse, o sujeito é tão amargurado que a comédia dele saiu super triste. E escrever um romance de comédia (uma comédia que seja inteligente, vá lá), requer do autor uma sutileza e uma relação muito íntima com o humor, porque, na forma de palavras, todo o texto parece triste. E com esse não foi diferente. Se é, de fato uma comédia, vou dizer que é a comédia mais triste que eu já li.

Um PS: É louvável o trabalho desses tradutores que fazem chegar ao português obras escritas em línguas bizarras sem fazer ponte com outro idioma. O tradutor Bernardo Joffily, poliglota que só ele, se deu ao trabalho de aprender albanês e traduzir a obra de Kadaré. É esse tipo de coisa que dá o verdadeiro acesso à cultura do mundo. Então, Bernardo Joffily, um abraço pro senhor. Se eu te encontrar algum dia, te pago um suco.

Comentário final: 166 páginas em polém soft de gramatura baixa. Deixa um hematomazinho, no máximo.

João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas

Começo o blog com um livro que já havia comentado na malograda primeira tentativa de um espaço sobre livros. Não poderia começar de outra maneira, afinal de contas, Grande Sertão: Veredas é o meu livro favorito. Ganhei-o de aniversário, em 2008, do grande amigo Cássio Busetto, que tenho em alta conta e cujas indicações literárias sempre são acatadas. Li durante as férias do fim do ano e hoje digo com tranqüilidade que ler este livro é uma das poucas vantagens de ser brasileiro. É preciso ter as raízes bem fixadas na cultura do país.

Para quem sempre dormia na aula de literatura quando a professora entrava nesse assunto, o livro é um grande relato de um jagunço chamado Riobaldo “Tatarana” a um interlocutor oculto. Ele fala de suas aventuras no “sertão das gerais”, um território vasto que abrange parte dos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás, e de como conheceu e viveu com seu amigo Reinaldo “Diadorim”, um jagunço filho de Joca Ramiro, chefe do bando. Riobaldo, em sua ânsia por poder e sucesso, resolve fazer um pacto com o demônio, mas não sabe se o pacto foi consumado e passa a viver uma tortura psicológica enquanto tem de lidar com as reviravoltas de seu bando e a boiolagem latente que ronda sua amizade com Diadorim. Pronto, eis a sinopse. Se você não sabia do que esse livro falava, vergonha na sua cara, hein?

O problema de falar de um livro desses é que basicamente tudo já foi falado com muito mais categoria e conhecimento. A experiência lingüística é realmente o melhor da obra, e, somado à trama intensa, faz de Grande Sertão: Veredas o melhor livro que eu já li (até o momento, mas acho difícil achar algo melhor).

O leitor já deve ter lido de certos etílicos beatniks coisas como “eu escrevo com a alma, com o coração, com as bolas, com sangue, com porra, com merda” e bla bla blás semelhantes. É tudo mentira. O tal bebum escreve é com palavras e gramática, permeados por talvez algumas gírias e mau gosto. Porém, não seria nenhuma injustiça incorrer na suposição de que se algum autor realmente escreveu com a alma, esse autor foi o Guimarães Rosa. Ao contrário dos outros, Rosa conseguiu romper as correntes da sua escravidão à gramática e à semântica e, dando a volta por cima, tomou os elementos da escrita como seus escravos para conduzir sua literatura por veredas só imaginadas por ele e que nenhuma convenção linguística seria capaz de seguí-la. Não é a toa que o livro dá pano pra manga até os dias de hoje.

PROJETO GRÁFICO

A editora Nova Fronteira, que produziu a versão que eu li (vide imagem), cometeu o pecado de imprimir essa magnânima obra em um papel offset vagabundo. Em outras casas editoriais, o mais imprestável dos escritores é publicado no mínimo em um confortável pólen soft.

E isso não é pecado só com o Guimarães Rosa. As belíssimas ilustrações de nada menos que Poty Lazarotto mereciam ao menos uma capa dura. O número de vítimas aumenta se contarmos a excelente diagramação interna do cabeço (na vertical e alternando os cantos superiores e inferiores). O excelente projeto gráfico tem ainda o poema “Um Chamado João” escrito por Drummond sobre o amigo, com caligrafia do poeta. Tudo isso parcialmente arruinado pelo acabamento.  Não havia necessidade de se economizar tanto, afinal de contas, o livro por si só já é caro e a mesma editora Nova Fronteira possui uma versão “de estudante” que é menor e ainda mais desprovida de charme.

Claro que a versão chique do livro saiu, uma edição comemorativa de 50 anos (em 2006) que custava pelo menos cento e vinte reais e que durou uns três meses por aí (tiragem de dez mil exemplares). Quem viu sabe que era um pitéu, tinha o título bordado com fios soltos, capa dura, marcador de fita, isso sem falar no álbum de imagens e o DVD interativo (embora também tenha sido impressa também no maldito offset).

Pouco tempo depois, lançaram uma edição que era basicamente o mesmo projeto gráfico do meu exemplar mas com a capa que imitava a capa dura da edição de luxo. Também vinha em uma caixinha e acompanhava o álbum de imagens. Mas foi só. Um livro como esse merecia ser visualmente melhor representado, não acham?

Comentário Final: 624 páginas leves mas bem condensadas. Quebra alguns ossos.