Vídeo: Edward Bunker – Educação de um Bandido (Education of a Felon)

Fala, macacada! Hoje a resenha é em vídeo também, e desde já gostaria de agradecer imensamente ao feedback recebido e a todos vocês que se inscreveram no canal. Com um vídeo, já estamos beirando as 150 assinaturas, mas precisamos continuar pro Google e seu filhote YouTube levarem a gente a sério. Então, por favor se inscrevam no canal do Livrada! É super fácil, ó: primeiro, você clica na imagem aí embaixo, depois, logado com a sua conta do Google, você clica no retângulo vermelho embaixo do vídeo onde diz “Inscrever-se”, e pronto! Não custa nada pra você, mas é uma mão na roda pra gente!

Estão gostando do nosso humilde vlog filmado na minha humilde residência? Acho que vou tirar o meu wheyzinho do fundo nos próximos vídeos, alguns de vocês ficaram muito chocados com ele. Whey é vida, galera! Deixem de manha. Peço desculpas por eventuais falhas técnicas, estamos todos aprendendo a fazer isso ainda, e a ideia é melhorar sempre.

Mas enfim, não era isso que vocês vieram ler aqui. Vocês querem saber sobre o Ed Bunker (o Mr. Blue do Cães de Aluguel) nessa deliciosa dica literária que vos deixo para essa semana. De resto, já sabem: curtam o vídeo, compartilhem, discutam na caixa de comentários, se quiser eu até respondo por lá!

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Clica na imagem, abestado.

Juan Pablo Villalobos – Festa no Covil (Fiesta en la Madriguera)

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Surprise, motherfucker! O livro de hoje vai ser comentado em vídeo. Esse é o primeiro videolog do Livrada!, e nele dou uns pitacos sobre esse maravilhoso livro desse maravilhoso escritor mexicano. Espero que gostem!

O Livrada! agora é um site multicanais, e apesar de sermos antigos no WordPress, somos novos no YouTube, por isso qualquer tráfego por lá é bem vindo. De maneira que é extremamente importante que, para dar prosseguimento a esse troço (que dá mais trabalho do que escrever um texto, vai por mim), vocês se inscrevam no canal, curtam o vídeo e comentem por lá. Ou, sei lá, não precisa curtir, mas comentem, linkem, compartilhem. Como diria um certo banco falcatrua, vamos fazer juntos?

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Isso é só uma imagem, amigo. Mas é só clicar nela que você vai direto pro vídeo.

Nikolai Gógol – A Briga dos Dois Ivans (Повесть о том, как поссорился Иван Иванович с Иваном Никифоровичем)

nikolai gogolDeutschland übber alles. Copa do Mundo no Brasil hoje já é parte do passado. Bora se concentrar no assunto que interessa? Obviamente que estou falando dos nossos queridos livrinhos a quem nós, nerdões, recorremos quando o mundo parece demasiadamente douchebag, o que é quase sempre. Antes de falar do livro de hoje, porém, gostaria de começar comentando a coleção que ele integra. Trata-se da Arte da Novela, um projetinho originalmente criado pela Melville House Publishing com enfoque em novelas! Sim, novelas! Novelas, novelas, novelas! Basicamente é uma coleção como a da Penguin, mas ainda mais minimalista e ainda mais bem selecionada. Aqui no Brasil foi publicada pela Grua, essa editora tão simpática que já lançou gente do naipe de Hansjörg Schertenleib (já resenhado aqui), e eles mantiveram o projeto gráfico da coleção original, então é as real as it gets. Eu, que não vim nesse mundo a passeio, pedi pros simpáticos editores me enviarem uns exemplares dessa coleção quando vi que ela saiu porque queria dar uma olhada nessa beleza e olha, vou dizer que não me arrependi.

O livrinho é pequeno, bonitinho, extremamente gráfico, com cabeço e paginação lateral, boa fonte e bom papel. Mandaram pra mim quatro deles: Freya das Sete Ilhas, do Joseph Conrad, A Lição do Mestre, do Henry James, Bartleby, o Escrevente (já resenhado aqui), do Melville, e este A Briga dos Dois Ivans, do Gogol, que foi o que eu escolhi pra ler primeiro por razões óbvias, né, galera? Aqui no Livrada! russo, gordinha, idoso e gestante têm assento preferencial sempre, e olha, quer me deixar feliz, me dá um livro do Gogol de presente. Desde que eu li o Tarás Bulba (já resenhado aqui), conheci um dos meus grandes novos autores favoritos, por uma série de razões que dizem mais respeito ao meu coração do que necessariamente a seus méritos literários, embora esses também sejam bem válidos pra todos os efeitos. Mas deles já falei em outros posts. Neste, vou falar porque Gógol é um autor também divertido.

A Briga dos Dois Ivans é uma novela, gente, já falei isso? Pois é. É uma história curtinha que não se pretende nada além do que está contando. É claro que a gente pode encarar a coisa toda como uma parábola moral ou uma metáfora pra outras coisas, mas pra quê? Vamos pelo menos uma vez na vida aproveitar o livro pelo que ele é, e no caso, é uma história divertidíssima sobre dois vizinhos que se chamam Ivan. Um chama Ivan Ivanovitch (pra vocês que não tão familiarizados com a língua russa, esse segundo nome, que é sempre o segundo nome dos russos, chama patronímico, e é dado a partir do nome do seu pai. Tipo, se você chama Euzébio e seu pai chama Jacinto seu nome vai ser Euzébio Jacintovitch, ou algo assim. Tá explicado, continuemos), e o outro chama Ivan Nikíforovich. O primeiro é falastrão e gosta de causar boa impressão, o segundo é calado, curto e grosso. A briga a que o título se refere acontece quando o Ivanovitch vai na casa do amigo interessado numa arma velha que ele viu a empregada pendurar no varal (é isso mesmo, não me pergunte por que essas coisas acontecem), e o sujeito falastrão acaba insistindo mais do que deve em comprar a tal arma que acaba emputecendo o outro, que manda uma grosseria que o desestabiliza emocionalmente ao ponto de cortarem relações de décadas. A partir daí começa uma disputa judicial e um joguinho de sabotagem estilo Pica-Pau e Zeca Urubu, até que a cidade inteira se envolve na parada e as pessoas se mobilizam para tentar reconciliar os amigos.

Микола ГогольViu só? Simples. Temos aí dois personagens, com um único traço marcante da personalidade de cada um, e a partir daí é possível desenvolver uma novela completa. Uma novela de menos de 100 páginas, mas uma novela. E o que é uma novela senão isso? Um conto de mais fôlego, uma coisa que se resolve em si, mas tem começo, meio e fim muito bem definidos, divididos em capítulos se for possível, e que não guarda maiores ambições do que ser uma boa história, via de regra. Assim é A Briga dos Dois Ivans, uma historia singela e engraçadinha. E Gógol, nessa levada, aproveita para esmiuçar aspectos da vida no interior – no caso, Mírgorod, a ciadade onde se passa a história. Lembram que comentei sobre Mírgorod quando resenhei Avenida Nievski? Mírgorod não só é a coletânea de histórias que ele escreveu (das quais Avenida Nievski e essa Briga dos Dois Ivans fazem parte, sendo esta a última história da coletânea) mas também uma cidade na Ucrânia, e sempre é mencionado nas novelas dele como a típica cidadezinha ucraniana, em oposição a Poltava, que é uma espécie de metrópole em eterna ascensão no imaginário das histórias, ou, sei lá, uma cidade maior a qual as pessoas do interior recorrem, tipo a relação entre Videira e Chapecó.

Peguem A Briga dos Dois Ivans e leiam numa sentada quando quiserem dar uma desopilada na cabeça. Afinal de contas, Gógol é um dos russos, e não é todo dia que você pode dar uma desopilada na cabeça lendo um russo. Primeiro que as pessoas fazem tudo menos ler quando querem dar uma desopilada, e segundo que, quando leem, preferem coisas estúpidas e muito mais levianas, e isso aqui é um Gógol. Isso é o equivalente a sofrer com o fim do relacionamento na Ilha de Caras. É coisa fina, pra gente fina. Pra quem pode, digamos. Faça como os famosos da Ilha de Caras e refresque a cuca com coisas finas. Falei, tá falado.

A Briga dos Dois Ivans cumpre a seguinte modalidade do Desafio Livrada 2014:

9- Um livro escrito em um alfabeto diferente do seu.

Comentário final: 91 páginas em papel pólen. Skavurska!

Bernardo Kucinski – K. – Relato de uma busca

Bernardo KucinskiNão sei quanto tempo faz que a gente não comenta um romance nacional aqui, e isso tem mais a ver com a minha pré-disposição para ler brasileiros contemporâneos do que propriamente com a qualidade da produção atual, embora saibamos desde já que nem um nem outro andam despontando exatamente pela excelência. Aí que uma leitora comentou aqui ainda ontem que tava sentindo falta desse tipo de livro por aqui e pensei, ora, por que não? Vamos ao que interessa, mas aviso desde já que tenho opiniões muito parciais sobre esse livro, e explico o porquê.

K. – Relato de uma Busca, o romance de estreia do jornalista Bernardo Kucinski, junta duas temáticas que eu, particularmente, odeio: história da ditadura militar e história de judeu. E odeio ambas não por uma falta de empatia com os protagonistas, pelo contrário, gosto deles, mas por uma overdose do gênero, já que são dois casos em que os sobreviventes são, hoje, o poder estabelecido no mundo. De qualquer forma, é meio complicado pra mim falar disso porque preciso ser sensível ao fato de que o romance de Kucisnki é, em grande parte, real, já que sua irmã desapareceu durante o período do regime burocrático-autoritário que vigorou neste país durante duas décadas, de modo que me perdoem desde já por ser insensível e analisar o livro como criação ficcional. Porque é a partir deste caso que o autor cria uma ficção que tem como protagonista seu próprio pai, que sai em busca da filha desaparecida e é enganado até se perder no labirinto engendrado da guerra psicológica militar contra os familiares dos subversivos.

É assim que ele sai e começa a receber pistas falsas de que sua filha está presa e depois não está mais presa, e ninguém nunca ouviu falar dela, e quem se propõe a ajudar na verdade é informante dos militares, e as notícias de que sua filha está na verdade em outro país ou em outra cidade começam a chegar pelo correio e todo mundo que se propõe a ajudar não consegue ou não quer mesmo ajudar e ele fica maluco tipo um personagem do Kafka – acho que é inclusive por isso que o protagonista do romance chama K., como os Kas do Kafka, perdidos em uma engenhoca burocrática kafkiana sem nenhuma esperança de sair dela algum dia. Ao mesmo tempo, lida com os sentimentos de culpa por ser um escritor meia-boca que escreve em íidiche, a decadente língua dos judeus pré-Estado de Israel e que por conta disso se afastou da família e não viu os filhos crescerem direito. O espanto de saber que a filha se envolvera com a luta armada e o desgosto por ser estigmatizado como parente de uma subversiva – até mesmo pelo rabino, que o impede de comprar um túmulo simbólico pra ela, e o pessoal da gráfica que não o deixa imprimir um livrinho em memória a ela.

Crédito: Carolina Ribeiro

Crédito: Carolina Ribeiro

Embora interessante, o livro traz muito pouca coisa nova na literatura da ditadura militar – bom lembrar que esse não é a primeira narrativa que parte do ponto de vista do familiar que busca o parente desaparecido. Além disso, há de se desconsiderar pensamentos extremados do autor, que em dados momentos insinua que a ditadura militar é pior do que o holocausto porque pelo menos os nazistas faziam registro de seus mortos, e dosar boa parte do maniqueísmo dos personagens, que são ou pobres vítimas do sistema dos militares ou sádicos que trabalham nessa por pura vocação e vontade imensa de fazer mal aos outros. Cada capítulo apresenta uma parte da engrenagem ou um tipo de personagem, e não posso dizer que a grande maioria deles é natural é bem construída.

Ainda assim, o livro se salva pela vida interna do protagonista e pela naturalidade com que expressa a angústia do pai que não sabe onde a filha está, e como a coisa é muito mais complicada do que parece. E pela coragem do autor em transformar um caso real e sofrido de sua história familiar em uma ficção.

A edição desse livro é uma beleza que só. Tem capa gráfica em papel cartão, umas fontes chamas Leitura e Tungsten, que não até que são boas à exceção dos itálicos, que deixam tudo muito ruim de ler, e um papel pólen soft de baixa gramatura pro miolo não ficar mais duro que a capa. O romance é cheio de notas de rodapé que explicam bastante o que não está ao alcance do leitor leigo, ou do leitor não-judeu, e de maneira geral, o texto é bem preparado. Ê!

Comentário final: 185 páginas em papel pólen soft. Ks do mundo, uni-vos!

Ian McEwan – Na Praia (On Chesil Beach)

on chesil beach

Bem-vindos ao post nº200 do Livrada! Tamo aí na atividade, contrariando as estatísticas.

Ian McEwan! Esse é o escritor que a garotada gosta de ler hoje em dia! E por quê, vocês me perguntariam. Por que um inglês metido a besta que escreve livros de títulos pomposos como Reparação (que no cinema vira Desejo e Reparação, uma vibe meio janeaustiana de fazer romances de saia frufru) e escreve esse romance curto de hoje faz tanto a cabeça da meninada? Vamos tentar responder a essa e a outras perguntas no post de hoje. E desde já, aviso: tem spoiler. Tem spoiler pra caralho, tem spoiler no teu cu, tem spoiler pra sempre.

Deixa eu ajeitar meu óculos aqui, botar minha cara de intelectual, e pronto. Bom, senhores, Na Praia poderia muito bem se chamar “Uma história sobre o casal mais travado do universo”, se os romances tivessem títulos explícitos assim. Mas não, o escritor sempre tem que colocar um título maneirinho, pra ser maneirinho e fazer maneirices enquanto escreve, de modo que você não sabe porque o livro chama Na Praia além do fato de se passar num balneário até mais ou menos o final dele, quando você mais ou menos saca porque ele chama Na Praia, mas também não tem muita certeza porque, por Deus, pro sujeito ter colocado um título enigmático desses, tem que ter mais de cinco significados pelo menos, não é? É mais ou menos assim que você pensa e aí está a parte do fascínio do autor, porque, tirando a parte do título, o resto do livro é bem fácil de entender, e você se sente lendo uma parada muito superior ao que você realmente acha que está lendo, mas acho que se eu explicitar a história um pouquinho vocês vão entender melhor do que eu tô falando.

Os dois personagens principais são Edward e Florence, um jovem casal que, no começo da década de 60, está em noite de núpcias e ambos são virgens. A partir daí, o escritor vai revelando o background dos dois, e quem lembra da minha última resenha, a do livro do Hemingway, pode trazer à baila aqui a questão da construção dos personagens. Pois bem, amigos, McEwan é um desses escritores que se empenham em construir personagens complexos pra caramba e partir deles, descrever uma única situação. Pois bem, ele é um underachiever sossegado na vida que tem muito pouca sorte com as mulheres em um momento de explosão de sexualidade e revoluções culturais a cada minuto. De modo que ele queria fazer parte da putaria, mas não pode porque não sabe chegar chegando. A mulher dele, por sua vez, Florence, é uma violinista esquisitona de uma família aristocrática. Ela é completamente assexuada e despreza a ideia de fazer sexo com alguém, mas hey, a sociedade bota pressão pra tanta coisa que vamo nessa, né? Só que a coisa dá tremendamente errado, o sujeito tem ejaculação precoce, a mina quase vomita de nojo de receber uma gozada na barriga e o que se segue é uma briga feia que bota em cheque tudo aquilo que eles deveriam gostar, mas não gostam. E aí aparece toda a questão de uma geração no meio do caminho da mudança, e o quanto esse negócio de mudança de paradigma e tradição faz uma bagunça na cabeça do peão quando os pilares vão caindo.

na praiaAcho que no final das contas, Na Praia é um livro que a galerinha curte porque 1- é curto. 2- fala de sexo. 3- é engraçado. 4- se pretende profundo e certeiro no recorte da geração. 5- tem personagens muito bem construídos e uma narrativa excelente. É impressionante a precisão da escolha de palavras dele para descrever as coisas mais complexas, é algo que eu gostaria de ter mas não tenho e todo mundo que lê esse site pode perceber isso sem maiores dificuldades.

Esse livro é da Companhia das Letras e tem uma capa linda assinada por um artista chamado Angelo Venosa, que na verdade é um escultor e tem um site legalzinho com as instalações dele, mas não tem essa pintura maneira (que eu espero que seja uma pintura, e não uma foto saturada), e por dentro é aquela coisa: fonte Electra (ainda adoro essa fonte, depois de todos esses anos) e pólen bold porque é isso o que você faz quando o livro é muito fino e o autor não é pouca merda. A tradução é do Bernardo Carvalho, que há de ser o que temos de melhor hoje em dia por essas bandas em termos de ficcionista, e se dão um texto pra um escritor consagrado traduzir é porque o sujeito não é pouca merda mesmo. Então fica aí a dica e a pressão que esse povo faz: leia McEwan.

Comentário final: 128 páginas em papel pólen bold. A propósito, li esse livro quando estava na minha terra natal: uma praia. Oh!

PS: ainda sinto falta dos comentários de vocês. Não apenas porque eu gosto de saber o que vocês pensam dos autores que eu resenho aqui, mas também porque isso ajuda a ranquear a página, então pense que o comentário é o riso pro palhaço 😀

Ernest Hemingway – Adeus às Armas (A Farewell to Arms)

farewell to armsSei que todo mundo vibra de emoção por aqui quando eu começo a falar de um clássico moderno da literatura. Quer dizer, saber, eu não sei. Eu suponho, já que geralmente são os comentários mais alardeados sobre o assunto, e não vejo ninguém vibrando por livros mais desconhecidos ou clássicos clássicos, desses que na grafia do português original é cheio de acento onde não deve. Bom, clássicos modernos são esses livros que todo mundo gosta de ler mas não necessariamente são tão bons assim. Alguns gostam mais e enchem de porrada quem fala mal e outros gostam menos e passam a vida esgueirando-se pelos cantos para não ser apontado e escurraçado na rua como “o sujeito que falou mal de Camus” ou “aquele cara que não curte Cortázar” e por aí vai. Fato é que é muito difícil identificar um clássico moderno como tal porque não há outro parâmetro a não ser o gosto popular e o quanto ele discutido em sala de aula por crianças que não têm idade para lê-lo. Mas, acredito eu, que Hemingway seja um desses autores clássicos modernos que alimentam a alma de pessoas intelectualmente díspares e frequentemente pelas mesmas razões.

Senão vejamos: Adeus às Armas foi publicado em 1929 e, salvo engano, foi um dos primeiros livros ambientados na Primeira Guerra Mundial, o que já mostra um delay grande da literatura em relação a outras artes representativas, porque o que surgiu de filme sobre o onze de setembro uns dois ou três anos depois não tá no gibi. Mas onde é que eu estava? Ah sim. Bom, Hemingway, no fim da Primeira Guerra, era um jovem mancebo de 17 anos, mas isso não o impediu de se alistar como motorista de ambulância na Itália. Coincidentemente, olha só, o protagonista do livro também é um americano motorista de ambulância na Itália a serviço dos italianos. Frederic Henry é um cara jovem e inacreditavelmente neutro para um protagonista. Não dá pra saber porcaria nenhuma sobre a personalidade dele pelas atitudes que ele tem, e isso não necessariamente quer dizer que ele seja imprevisível ou apático, apenas que o autor não teve muita preocupação com isso. Os personagens do Hemingway, de uma maneira geral, são muito rasos e levados pelos acontecimentos. Quase sempre têm um único traço de personalidade que é repetido ao extremo, mas não dá pra culpar o cara por isso porque primeiro que construir um bom personagem é uma tarefa tão difícil que tem escritor por aí que fica famoso só por causa disso sendo que a história em si é uma porcaria, e segundo que ele se interessa mesmo é em contar história.

Ernest HemingwayE essa história, que se passa na Primeira Guerra Mundial e tem como protagonista um motorista de ambulância americano a serviço do exército italiano chamado Frederic Henry, fala de um caso de amor entre esse cara em específico e uma enfermeira escocesa louca de pedra chamada Catherine Barkley depois que ele é ferido em campo de batalha. É basicamente isso, não tem muito pra contar da história além desse resumo básico. O que podemos dizer é que eles tentam viver juntos mas esse é um mundo enlouquecido pela guerra em que as pessoas fuzilam traidores que recuam e todos estão obcecados pelo poder e a Itália tá numa pior nessa guerra aí e precisando desesperadamente de ajuda e pra eles só resta a fuga para Suíça. E aí nesse parágrafo já coloquei mais spoiler do que vocês gostariam e não avisei que tem spoiler porque senão vocês ficam mal acostumados. Cresçam.

Bom, Adeus às Armas tem aquela coisa hemingwayniana de macho que também chora, macho que só quer ser feliz mas o mundo é mais macho que ele, macho machucado, macho derrotado porque não foi tão macho, macho que não tem medo de nada a não ser de outros machos mais machos e etc. Mas também é uma história singela e bonita, escrita naquele naturalismo maroto, sem qualquer retoque na narrativa, um troço meio jornalísitico que salta aos olhos e agrada a maioria das pessoas porque é muito fácil vencer 400 páginas assim. Eu mesmo que não ando dos leitores mais ágeis do mundo, li em uns três dias. Acho massa inclusive que o tom do livro é muito leve e meio que se antecipa à censura dos filmes americanos, já que o autor não menciona o sexo entre os personagens, mas apenas sugere com eufemismos e imediatamente corta pra cena seguinte. As cenas de morte, entretanto, são descritas muito bem. É, parece mesmo cinema americano. Inacreditável como os caras não têm problema nenhum com violência, mas não podem ver uma mulher pelada que saem gritando em nome da família e do bom comportamento. Mas isso é assunto pra outra hora.

A edição da Bertrand Brasil tá muito bonita, e finalmente faz jus ao autor. Fonte grande, capas gráficas, papel jornal amarelado e bonito, cabeço e paginação juntas no topo da página e a assinatura do mestre no lugar do nome dele. Achei bem melhor do que a coleção antiga, e parece que tá saindo mais. Vamos ficar de olho.

Comentário final: 402 páginas em papel jornal (ou tipo papel jornal, sei lá). Macho não vacila, macho arrasa, macho não leva desaforo pra casa.

Ivan Turguêniev – Rúdin (Рудин)

TurguênievEu ia começar esse texto fazendo uma menção ao fato de estar de volta ao Livrada! e tudo mais, mas aí me toquei que tenho começado muitos texto assim ultimamente, e isso porque passei por um período negro em que quase não estava mais lendo, e muito menos escrevendo, e que pular semanas tinha virado uma constante nesse site. Mas agora é, de fato, uma volta, já que é a minha volta das férias, e dessa vez eu li durante as férias (em meio a uma porção de loucuragens que eu fiz) e vou contar pra vocês sobre as minhas leituras, e só sobre elas. De maneira que esse nariz de cera não é o mais encerado da história da humanidade, mas quebra lá seu galho.

Russos, mais uma vez eles e dessa vez, cá estou preenchendo uma lacuna literária importante pra minha vida de leitor (nunca é tarde, não é o que dizem?): Turguêniev, amigos, essa é a bola da vez e é sobre isso que viemos falar hoje aqui. Não tem os cofres e as paredes pintadas de Pais e Filhos, mas tem sagacidade no ar e novelinha das seis de Rúdin, o primeiro romance publicado pelo sujeito, em 1856. Mas veja bem, não vá falar pras pessoas que Rúdin é estilo novelinha das seis porque isso pega mal e os intelectuais não vão te respeitar. Tem que falar termos como “romance de costumes” e coisas assim, mas do quê eu estava falando mesmo? Ah sim, 1856. Na época, Turguêniev já agradava a massa funkeira com os contos que publicava, e Rúdin veio pra coroar o cara como o escritor brilhante que ele não precisa provar muito que é. Mas vamos resumir um pouco a história pra depois falar dela.

Primeiro, a gente precisa analisar bem o título do livro. Rúdin tem esse título porque conta a história de um sujeito chamado Rúdin, que é quem chega botando banca numa sociedade rual nos cu do judas do Império Russo, em um núcleo rico de novela das seis que inclui uma senhora de terras toda poderosa, uma filha mocinha e sentimental, um puxa-saco criado por ela, um dono de terras supostamente rival e um séquito de gente sem muita importância mas que deixa a história mais engraçada. Rúdin chega aí no lugar de um Barão que todos estão esperando, e que deveria trazer algum tipo de texto sobre agronomia ou economia ou algo assim, não lembro. Sei que o sujeito chega lá com toda a eloquência dele e abala o pequeno mundinho de geral, inclusive desbanca o então intelectual do lugar, o patético e misógino Afrikan Pígassov, que tem a única função de dar alívio cômico pra coisa toda.

TurguenievMas Rúdin é um sujeito que é mais de falar do que de fazer. Ele é, na visão do autor, a personificação do homem da década de 40, um homem cosmopolita e sem força de vontade que é condenado pelas circunstâncias que o cercam. No caso, a circunstância é o atraso do povo que não concebe uma formação intelectual cosmopolita, sem uma raiz cultural ou etnológica. Isso mais ou menos representava a imagem dos eslavófilos à europeização da Rússia porque, veja bem, mesmo antes de qualquer União Europeia, os russos meio que já sabiam que europeu é tudo igual, só gosta de fingir que é diferente pra poder fazer guerra com os vizinhos.

A surpresa, entretanto, é que não é esse o pensamento do autor. Ele confessa que escreveu o personagem inspirado por Bakunin (aquele do anarquismo), então no fundo é uma pena que Rúdin seja tão fraco de caráter e que seja condenado por seu tempo. Mas isso tudo tá fora do livro. Por dentro, sempre fica boa a mensagem de que o sujeito que muito fala pouco faz, mas ah… como falar mais sem estragar a diversão dos próximos capítulos? Acho isso cada vez mais difícil, mas sempre tento o meu melhor.

O que gostaria de dizer sobre Rúdin, além de tudo isso que eu já disse, é que é uma prosa extremamente afiada, uma das mais afiadas que eu já vi, com palavras precisas e diálogos super inteligentes e engraçados. Li esse livro com muito gosto como um estimulante para o cérebro, e recomendo a leitura para todos (embora vocês podem ver que eu não tô nos meus momentos mais intelectualmente estimulados, mas veja, é meu último dia em Zagreb e preciso escrever esse texto porque vou deixar o livro emprestado). Discussões pertinentes sobre a vontade, a moral e provocações bestas sobre as mulheres (porque Turguêniev já sabia naquela época que todo machista é meio bestão) fazem de Rúdin o grande livro que é. E agora vou ler mais Turguêniev, e ia fazer aqui uma piadinha de que aceitava o Pais e Filhos de presente porque já tinha tentado fazer um financiamento da Caixa pra poder comprá-lo, mas nesse meio tempo minha querida mãezinha me deu ele de presente então não preciso de mais nada além do meu surf, minhas bongadas, meu dinheiro, meu fileto, meu skank, minhas gatas e meu Turguêniev de luxo.

Rúdin é um dos últimos lançamentos da Coleção Leste da Editora 34, que tem essa brilhante missão de trazer à baila os nossos queridos russos e adjacentes, e a formatação é padrão para todos eles, então nem vou comentar. A capa é que é legal, tem uma pintura à óleo do Vassíli Poliénov retratando o Ilia Repin, enfim, um pintor pintando o outro. Tem um quê de arte flamenga que é maneiro mas de resto são umas pinceladas meio brutas. O que também é legal.

Comentário final: 208 páginas em papel pólen. Grande garouto, tamo de volta na praça pra abalar os seus quintais!

Jack London – O Lobo do Mar (The Sea-Wolf)

The Sea WolfBrothers, Brothers, Hermanos e irmãos, represento todos aqueles com um livro na mão. E disso eu entendo bem, romance ou conto, romântico, modernista, clássico ou barroco. Estilo, linguagem, narrativa e autor, palavras que pro meu vocabulário são comuns. Pego o livro e viajo pelo meu pensamento. Começo rápido, rápido e leio leeeeento. Ok, essa deve ter sido a pior paródia de Planet Hemp já feita na história, e falei tudo isso só pra dizer que o livro de hoje ficou mais tempo na minha mão do que deveria, e durante muito tempo isso me intrigou, porque é um livro deveras interessante e nada difícil de ser lido. E depois que terminei, entendi. Demorei mais de um mês pra ler o Lobo do Mar porque acho que descobri um novo autor favorito.

Engraçado como esses caras sempre estiveram aí e mesmo assim a gente tem que descobrir eles por conta própria, às vezes já tarde na vida, às vezes sem razão, mas o importante é não abandonar a busca. E assim foi, quando bati o olho nessa edição da Zahar que dizia ser uma edição comentada (achei pouco comentada, na verdade, mas falemos disso depois), e vi que havia minhas razões para gostar desse livro. Em primeiro lugar, gosto de histórias que se passam no mar e em segundo lugar, gosto de histórias com um fundo levemente filosófico – quesitos a que O Lobo do Mar, do Jack London, atende. E por último, é o livro que baseou o filme italiano Il Lupo dei Mari, de 1975, que por sua vez, inspirou o Piratas do Carilha, na Tela Class, uma das melhores paródias-dublagens desse genial programa. Pra quem não tá ligado, assiste aqui:

 

 Mas vamos por partes.

O Lobo do Mar narra a história de um almofadinha chamado Humphrey van Weyden – e aqui já precisamos dedicar nossas felicitações ao autor pela excelência em escolha de nomes de almofadinhas, porque não dá nem pra falar isso sem parecer metido – que, depois de naufragar num navio de almofadinhas na costa oeste dos Estados Unidos, é resgatado pelo Ghost, um navio de caça às focas que ruma para o litoral do Japão. O sujeito, bem feliz achando que ia ser levado de volta à terra firme, se desespera quando descobre que vai ser uma espécie de trabalhador involuntário da tripulação comandada por um machão chamado Wolf Larsen. É neste senhor que reside o brilhantismo da história. Larsen, que é tido como um cara temido e cruel, como todo bom marinheiro deveria ser, é um desses sujeitos eruditos autodidatas, que aprendem pelos livros que caem nas mãos, mas ao mesmo tempo possui uma carga de vivências reais que lhe permitiu testar o que servia e o que não servia. Hump, como é chamado pela tripulação, fica animado de saber que o comandante do navio não é um sujeito de todo irracional e acha que isso pode livrá-lo dali, mas Larsen não quer saber, e acha que um trabalho braçal faria bem ao caráter do náufrago, para quem a vida foi sempre fácil.

Jack_London_youngAssim, Hump começa a se virar nos 30 no barco de pesca, e conhece a tripulação, uma cambada de degenerado que nunca ia arrumar trabalho em lugar nenhum a não ser naquele navio, mas isso só porque naquela época ainda não existia ChiliBeans (é lá que você vai trabalhar se fizer tatuagem no pescoço, jovem). E existem pequenos núcleos dentro do navio, que nem uma novela: o núcleo da fofoca, comandado por um escocês chamado Tommy (eu acho), um núcleo da revolta, capitaneado pelo Leach, que tenta matar o Wolf Larsen o tempo todo, e um núcleo do puxa-saquismo, que é o cozinheiro Mudridge, que logo de cara resolve tretar com o nosso protagonista. Aos poucos, o almofadinha vai subindo na vida até cair nas graças do capitão, e quando o navio pega outros náufragos, entre eles, uma mulher poeta chamada Maud, tudo muda de figura para o protagonista. E paremos de explanar a situação por aí.

Em sua forma, O Lobo do Mar é um excelente livro. É fácil de ler, tem uma história envolvente, discussões acaloradas e rasas sobre filosofia que qualquer zé mané consegue entender, e personagens carismáticos pra burro, além de um realismo tangível nas descrições dos comportamentos do barco e do mar que quem conhece sabe (e esses hipsters com tatuagem de âncora não aguentam 10 minutos de mar comigo). Ou seja, você não vai se entediar com esse livro, quase posso garantir – não posso garantir porque vai que você é um desses chatos que só leem livro sobre os Templários ou sei lá o quê.

Já em seu conteúdo, o romance acho que toca num ponto crucial de toda a experiência humana: o quanto da teoria que existe aí hoje pode ser válida no mundo real. Noções artificialescas como a ética e o valor da vida humana são colocadas a prova por Wolf Larsen apenas para provar um ponto para seu diletante interlocutor, e isso é legal pra caramba porque mostra, de alguma maneira simbólica, de que a vida está aqui fora, e não nos livros – muito menos no que você está lendo, Jack London diz sem dizer. Um sujeito que viveu muito – e viveu mesmo, conforme vocês podem ler na belíssima apresentação da vida do autor feita pelo Joca Reiners Terron – não quer que vocês vivam aí conhecendo as coisas pelas letrinhas, eu acho, a julgar pela agitação da maioria de seus livros (os poucos que conheço por filmes). Então, sei lá, fica a dica.

O projeto gráfico da Zahar é absolutamente demais e o tipo de coisa que você quer ter na estante. Apesar de achar a capa meio pueril, tenho que admitir que o design ficou agradável e orna com o resto da coleção Clássicos Zahar, e a capa dura é um a mais. A tradução é do nosso conhecido Daniel Galera, e por dentro é tudo dentro dos conformes: papel pólen, fonte boa e um marcador de livro bem bonito a partir da capa. Pros marujos de água doce da cidade, o livro ainda vem com um glossário quase completo dos termos náuticos utilizados no romance, pra você não ficar tão perdido assim.

Comentário final: 356 páginas papel pólen. Ande na prancha, marujo!

Recado 1: Para quem acompanhou a minha saga da semana passada mas não curte a página do Livrada! no Facebook, fiquem sabendo que o Rubens Figueiredo já me escreveu e ele é mesmo a simpatia que aparenta e tá tudo bem agora, obrigado, gente!

Recado 2: na próxima semana, estarei em terras longínquas curtindo merecidas férias. O blog fica parado um tempo, mas logo volta J

Nikolai Gógol – Avenida Niévski (Niesvki Prospiekt Невский проспект)

GógolE você veio aqui todo feliz em pleno feriado de Tiradentes e não achou nenhuma novidade, gritou “Ó senhor Nego Dito, por que nos abandonastes?”, e eu, calmamente, vos respondo: tava descansando. Também sou filho de Deus e também tenho direito a relaxar e eu não preciso de mais nada além do meu surf, minhas bongadas, meu dinheiro, meu fileto, meu skank e a minha gata, pra citar aqui o falecido Gabriel García Marquez. Mas vim aqui correndo no dia seguinte entregar um novo comentário, ou resenha, ou crítica, ou do que quer que você queira chamar essa conversa solitária que travo aqui com um livro na mão toda semana.

E o da semana é curtinho, mas instigante. Avenida Niévski, do Gógol, esse cara porreta que não nega fogo. A gente sabe que tá cheio de blog aí comentando nicholas sparks e meg cabot (em minúsculas) e adjacentes porque as pessoas têm medo de falar desses livros de gente grande. Mas aqui a gente não tem medo dessas coisas e, ainda que quebre a cara aqui falando merda, vou tecer um comentário de substância sobre esse conto que faz parte da série petersburguesa que Gógol escreveu entre 1832 e 1842.

Bom, a Avenida Niévski, para quem não sabe, é a Rambla, a Rua XV, a Champs Elyseés, a Unter den Linden de São Petersburgo, a cidade quente da Rússia e então, à época da escrita, em 1835, capital do império Russo do czar Nicolau I, aquele que fez miséria no Cáucaso e na Anatólia pra mostrar que não tava de brincadeira. São Petersburgo já havia sido capital do império Russo antes, e apenas por um breve período de quatro anos, entre 1928 e 1932, perdeu o posto pra Moscou, por conta de um certo Pedro II que não é o nosso, mas que também fez lá suas merdinhas por aí. Fato é que foi durante capital durante duzentos anos não consecutivos, de 1713 a 1918 – um ano em que a única coisa que continuou de pé naquelas bandas foi o idioma e a birita. De modo que, quando Gógol escreveu sobre sua principal via, São Petersburgo já era o point do império, que inspirava modernidade agitação e artificialismos, enquanto Moscou ficava com aquela aura do Rio de Janeiro, dominando a cultura mas ressentido da importância perdida. Essa edição, aliás, vem com um caderninho chamado Notas de Petersburgo de 1836, em que Gógol mais ou menos ilustra isso. Mas falemos disso depois.

Mesmo assim, o autor faz o elogio à Avenida Niévski como um lugar falso, rápido, místico e cosmopolita. Começa narrando o que se observa na via desde suas primeiras horas até o final da noite e, quando você menos espera, aparece um personagem aí, um pintor que morre de amor por uma mulher mimada e rica que não quer saber dele, a quem encontra por acaso na Avenida Niévski. A partir dessa história, emenda-se outra, sobre o policial que se apaixona pela esposa de um ferreiro alemão. E a coisa fica por aí, e termina com mais uma crônica pedrobialesca (não é pra ficar se achando não, Bial, tô só tirando uma com a sua cara) sobre o aspecto ilusório da rua. Isso é o que posso adiantar sem estragar parte da diversão pra vocês, e talvez seja o suficiente para comentarmos.

Микола ГогольBom, em primeiro lugar, qual é a do Gógol em descrever esse lugar que todo mundo já conhece há tempos como sendo tão especial assim? Bom, podemos parar aqui e traçar um paralelo com um dos grandes livros do autor, Tarás Bulba, que resenhamos aqui em algum dia do ano passado (provavelmente nessa mesma época, aliás). Acho que consegui entrever um elo de ligação entre essas duas histórias e isso pode fazer sentido pro comentário. Bom, em Tarás Bulba, temos um velho inconformado com a bunda-molice das novas gerações e resolve pegar os filhos recém-formados na universidade, montar uma milícia e começar uma guerra santa aí porque sim. Não é preciso nem ler o livro pra saber que uma ideia dessa só pode terminar em merda, e Gógol conta isso de uma maneira a ilustrar que o que fez o império russo não se sustenta mais na modernidade por razões civilizatórias altamente necessárias para o bom funcionamento de um império grande como aquele. Em Avenida Niévski, a própria avenida é um personagem (aí, me amarro quando a galera intelectual fala que o cenário é um personagem pela insistência do autor em descrever o lugar. Parece algo tão profundo e misterioso dizer que um lugar é um personagem, aposto que os críticos e os mediadores que falam isso comem muita mulher depois), e é uma avenida que promove encontros aleatórios entre pessoas diferentes, cria problemas e resolve problemas também. A Avenida é então símbolo do caos dos grandes centros e isso é assustador para o narrador. Mas, ao mesmo tempo, ele se mostra algo como compreensivo com as loucuras da Avenida, um lugar maravilhoso. Gógol se mostra então um cara que gosta dos tempos antigos, mas sabe que eles acabaram e que devem ficar no passado. Ele é um tipo nostálgico pé no chão, que não quer desenterrar as coisas, mas que também não deixa de ter medo dos novos tempos.

Os desencontros da Avenida Niévski estão representados nas duas histórias malfadadas de amor que o conto traz. A beleza e sabedoria do lugar é descrita no final da segunda história. O cosmopolitismo, no começo da narrativa. E, por fim, o medo que a cidade deixa na impressão do narrador, em seu comentário final. É bem impressionante esse caráter híbrido do livro, que é meio crônica, meio narrativa, principalmente porque é um livro bem curtinho. Por isso acho que ele capta bem o espírito que Gógol queria com seu tempo e com seu lugar. E acho que nessa descrição, ele conseguiu dar movimento pra um cenário estático para todos os efeitos. Bom, hein?

Agora, bom mesmo é o bagulho que os designers da Cosacnaify fumaram pra criar esse projeto gráfico. É uma das coisas mais ousadas que já vi em termos de livro, e olha que já li algumas coisas da Cosac bem diferentonas no formato. Bom, esse livro vem embrulhado em um jornal russo do ano em que o livro foi publicado (As notícias falam de um Duque da Áustria que quer viajar pra não sei onde e outras abobrinhas do tipo), e vem com a crônica anexa em um caderninho todo verde, em que Gógol fala sobre São Petersburgo em contraposição à Moscou, e mete o pau em umas coisas culturais da cidade. Não achei muito divertido de ler, mas talvez isso seja porque eu não conheço nenhuma das cidades, não sei. O livro em si tem o texto das páginas divididos em duas metades horizontais, uma laranja e outra azul, espelhada a essa primeira. A ideia é que você leia a metade de cima das páginas até o final, vire o livro de cabeça pra baixo e siga lendo a parte azul até o começo de novo, que é ilustrado com litogravuras dos dois lados da avenida em questão. Li no site da Cosac que isso é para ilustrar o fluxo de mão dupla da avenida, como se fosse uma caminhada até o seu final, ida e volta. Bom, eu é que não vou ficar azedando a trip dos outros, então vou falar que a ideia é maneira mesmo e achei divertido ler assim. O livro tem 134 meias páginas, ou seja, 67 páginas. Mas uma coisa me incomodou profundamente, que é a numeração invertida das páginas: as ímpares ficam na esquerda! Que mundo maluco é esse? Não gostei, não façam mais isso, por favor.

Ah, e o mais importante sobre o cuidado com o livro que a editora geralmente tem com suas obras é que ele tem tradução do Rubens Figueiredo, um cara de quem eu queria muito ser amigo pra poder conversar sobre essas coisas (quem sabe ele me ensinasse a não falar tanta besteira nesse blog). Por isso, queria começar aqui a campanha RUBENS FIGUEIREDO: SEJA AMIGO DO LIVRADA! Vou deixar uma imagem aqui embaixo pra vocês postarem nos seus respectivos Facebooks pra ver se a mensagem chega até ele. Quem sabe ele me escreve, me convida pra comer um pão de queijo da próxima vez em que eu estiver em Copacabana e é o começo de uma linda amizade? Só depende de vocês, gente, vamos lá!

Livrada

Avenia Niévski cumpre as seguintes modalidades do Desafio Livrada 2014:

9- Um livro escrito originalmente em um alfabeto diferente do seu

Comentário final: 134 meias páginas em papel munken pure rough. Espalhando papelzinho pela avenida, todo mundo, vai!

George Orwell – Na Pior em Paris e Londres (Down and out in Paris and London)

Down and out in Paris and LondonAntes de começar um post de hoje, queria fazer uma DR aqui com vocês. Vem cá, eu fiz alguma coisa pra vocês não comentarem mais nos posts? Todo mundo continua lendo que eu sei, e o espaço pra fazer comentários fica lá no final do texto, junto com as tags, se é essa a desculpa que vocês vão usar. Agora, se alguém está se sentindo com a liberdade de expressão tolhida neste espaço democrático, fazer o favor de assinar três vias, passar no setor de timbragem e começar a criar vergonha na cara porque comentário pra blog é que nem risada pra palhaço – a gente sabe que é pelos motivos errados, mas aceita de bom grado todos eles como fruto de um bom trabalho. Então, por favor, não se acanhem. Fim da DR.

Comecemos aqui a tecer  a genialidade de George Orwell em seu relato mais vanguarda, genial, duro, chocante, lindo e fedorento, o livro de memórias Na Pior em Paris e Londres. Diferentemente de livros que sugerem que o sujeito ficou na pior, tipo Paris é um Festa, Orwell, esse gênio subestimado da literatura (vou passar o texto todo chamando ele de gênio que é pra ver se alguém me ouve, já que não me ouvir parece ser o maior mal desse país), realmente comeu o pão que o diabo amassou nessas duas belíssimas capitais e destino certo de jovens adolescentes idiotas que querem, meo, fazer uma trip pela Europa, tá ligado? Pegar umas gringas e ficar muito lokooo uuuhulll.

Orwell já perambulava pela Europa quando era jovenzinho, tendo estudado aqui e ali em Londres, mas foi pra Paris pela aura mágica da cidade-luz para ver se vinha a inspiração que veio para tantos antes dele. Só que aí ele começou a se ferrar, primeiro teve uma tuberculose em 1929, depois foi roubado e começou a trabalhar de plongeur num restaurante de um hotel chique em Paris. Aí começa a saga do nosso Dante moderno pelo sétimo círculo do inferno (não acham um saco quando um crítico literário começa a falar coisas como “O nosso Dante moderno”, “Esta Beatriz da periferia”, “a Capitu do terceiro milênio”. Como se esse povo já não fosse metido o bastante). Orwell realmente passou fome, viveu com menos de dez centavos por dia e empenhou tudo o que tinha para viver a base de uma dieta de pão e cigarro. E a vida de lavador de prato era das piores, trabalhando dezesseis horas por dia em condições análogas a de escravidão. Agora digam vocês quantos dos seus veneráveis escritores da torre de mármore teriam culhão pra fazer um lance desses? Veja, ele podia pedir penico, voltar pra Índia e tudo mais, mas aguentou a barra ali pela vivência e pela determinação. Como não se admirar com esse gênio, que, além de tudo, é humilde ao traçar suas claras e simples linhas sobre o luxo, a pobreza, a fetichização do trabalho braçal e a vida do plongeur?

George OrwellDepois de Paris, ele vai pra Londres, onde, aparentemente, a mendigagem é uma prática institucionalizada, com profissionais do ramo, rota de albergues e manuais de como conseguir dinheiro na rua. Só que ser mendigo na Inglaterra não é um troço tão fácil de se aceitar na cachola por causa do calvinismo e da sua relação direta entre salvação e trabalho. A galera inglesa é doutrinada no workaholismo, e por isso ser mendigo em Londres requer um esforço a mais. Mesmo assim, lá foi o nosso gênio, nascido no protetorado britânico, provar que também aguentava mais essa, enquanto a grana de uns escritos dele ainda não chegava. Passou de albergue em albergue sentindo catinga de inglês (dividi um albergue com um velho londrino em Amsterdã uma vez. Até hoje sinto vontade de vomitar quando lembro do cheiro daquele coroa, e ele nem era mendigo!), comendo sopa rala e vivendo na sujeira sugismunda mesmo. Mas aguentou e escreveu um dos livros mais geniais que tive o prazer de ler este ano. Recomendo pra todo mundo a obra desse gênio.

E por que recomendo a obra desse gênio? Primeiro, pelo relato. Segundo, pelos insights. Terceiro, pelo ineditismo e pelo vanguardismo da coisa. Quarto, pelo spotlight. Quinto, porque eu gosto de recomendar coisas pra vocês. Depois vocês levam minha recomendação a sério e eu me sinto importante. Sexto, porque veio na edição nova da Companhia das Letras da coleção do Orwell, e antes disso era parte da coleção de Jornalismo Literário, e acho que a Companhia das Letras precisa de muito incentivo pra reimprimir livros velhos e maravilhosos e não tão vendáveis, já que estamos entrando na era da imbecilidade e muita coisa boa tá esgotando e não sendo mais reimpressa (quero os Cormac McCarthy e os John Updike de volta, dona editora!). Sétimo, porque é aquele caso raro em que a literatura brota da vivência, e de uma vivência vivida não necessariamente nem exclusivamente para servir à literatura, mas para edificar o espírito humano de quem escreve, o que só deixa tudo mais perfeito e genial. E oitavo, porque Orwell é um gênio, e não foi com 1984 nem com A Revolução dos Bichos que percebi isso, mas com Na Pior em Paris e Londres, desde já meu livro favorito dele. Mesmo sem discorrer muito sobre o livro, acho que dá pra perceber o porque eu gosto dele. É um livro tr00, sincero, singelo e cheio de aventuras e sabores só experimentados na extrema pobreza. É assim que ele conta, por exemplo, como aprendeu o truque de comer pão com alho, porque o gosto do alho fica na boca depois de um bom tempo, e isso dá a impressão de que você comeu recentemente. Ou como ele parava na frente de uma vitrine para esbofetear o rosto antes de pedir emprego, porque ninguém dava emprego para gente de rosto pálido, morto de fome. Era preciso fingir que se estava melhor do que se realmente estava. Enfim, essas pequenas malandragens do miserê total. Fica a dica (stay the dick).

Comentário final: 256 páginas em papel pólen soft. Gênio! Orwell Gênio!